Como as palavras foram a principal arma de Churchill na 2ª Guerra Mundial
‘Um verdadeiro líder pode ajudar a população a resistir ao trauma prolongado’, afirma ao Estadão o escritor e jornalista Erik Larson, autor de ‘O Esplêndido e o Vil’, que narra a resistência de Churchill à blitz alemã entre 1940 e 1941
Quando Winston Churchill assumiu o cargo de primeiro-ministro britânico, em maio de 1940, a situação do Reino Unido na 2ª Guerra Mundial era delicada: a Alemanha nazista havia acabado de invadir a Noruega, a Bélgica, a Holanda e Luxemburgo, e se preparava para ocupar a França. O bombardeio aéreo que devastou Roterdã em 14 de maio daquele ano levou à rendição dos Países Baixos e soava como um prelúdio do que a Luftwaffe, a força aérea alemã, pretendia fazer com a Inglaterra. Nessa “atmosfera de medo real” — conforme escreveu em seu diário o secretário Harold Nicolson, do Ministério da Informação — Churchill ascendeu ao poder e teve de usar a principal arma que tinha à sua disposição para se defender do arsenal de Hitler: a palavra.
Destroços da biblioteca particular da Holland House, casa do século 17 do Lorde Ilchester, em Kensington, Londres, após um bombardeio alemão em 23 de outubro de 1940 Foto: Hulton Archive/Editora Intrínseca
É o que descreve em detalhes o livro O Esplêndido e o Vil, do jornalista norte-americano Erik Larson. Na obra, o autor se debruçou sobre diários, cartas, discursos e papéis avulsos para narrar o período de um ano e meio entre a ascensão de Churchill e a entrada dos Estados Unidos na guerra, em dezembro de 1941. É notável que o principal objeto de estudo de Larson sejam documentos escritos, citados à exaustão para dar vividez ao relato histórico, porque seu livro parece defender a tese de que foi pelo poder da palavra que Churchill fez a Inglaterra resistir ao poderio bélico nazista.
Boa parte da narrativa compreende a chamada Blitz, período entre setembro de 1940 e maio de 1941 em que a Alemanha bombardeou o Reino Unido, provocando mais de 44 mil mortes de civis. Enquanto bombardeios castigavam Londres — que registrou quase 70% das mortes —, Hitler pressionava Churchill a assinar um acordo de paz, o que parecia a muitos a única alternativa restante com a Inglaterra acuada e sem o apoio dos EUA.
No entanto, se a irredutibilidade moral de Churchill, que se negava a barganhar com o nazismo, pode parecer óbvia 80 anos depois, isso não passa de anacronismo. Larson mostra não apenas que Churchill era duramente criticado por não se render a uma negociação, mas que praticamente ninguém concebia a ideia de que Hitler poderia ser vencido àquela altura do conflito. Essa era a principal razão pela qual os EUA se limitavam a observar a crise à distância: uma pesquisa de maio de 1940 mostrou que 93% dos americanos se opunham à entrada do país na guerra, praticamente o dobro do que foi registrado no início do combate, e o presidente Franklin D. Roosevelt tinha planos de se reeleger para um inédito terceiro mandato naquele ano, chegando a prometer não se envolver na guerra.
A convicção da iminente vitória alemã nesse cenário era tamanha que secretário Nicolson chegou a fazer um pacto com sua mulher, a escritora Vita Sackville-West, de que cometeriam suicídio para evitar serem capturados pelos alemães. O próprio Churchill carregava uma cápsula de cianeto na tampa de sua caneta-tinteiro. É com base nesse contexto de angústia que o título do livro pode ser explicado por uma opinião de Churchill, expressada em seu livro Their Finest Hour, de que desejar o poder pelo poder é uma busca vil, “mas o poder numa crise nacional, quando um homem sabe quais ordens devem ser dadas, é uma bênção”.
Do memorável “Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor” ao inquietante “Se a história antiga desta nossa ilha deve acabar enfim, que só acabe quando cada um de nós estiver no chão, afogando-nos no sangue deles”, Larson transcreve trechos inteiros de discursos de Churchill. Para cada ataque alemão, havia uma bomba equivalente do arsenal de palavras do primeiro-ministro. À época, ele já era reconhecido como um brilhante orador, e não é por acaso que em 1953 ele foi galardoado com o prêmio Nobel de Literatura “por sua maestria na descrição histórica e biográfica, assim como sua brilhante oratória na defesa dos valores humanos”.
O Esplêndido e o Vil evidencia como esses pronunciamentos foram capazes de alterar aos poucos a opinião pública e, com isso, os rumos da história. Se o atentado japonês na base naval de Pearl Harbor, entre as ondas do Havaí, foi a gota d’água que restava para a entrada dos EUA na guerra, o resto do copo havia sido preenchido pelas explosivas palavras transmitidas por Churchill pelas ondas do rádio.
Erik Larson respondeu às seguintes perguntas do Estadão por e-mail.
Em que medida os discursos de Churchill impactaram os eventos da guerra?
Para mim, o livro é uma história pessoal sobre como Churchill, sua família e seus conselheiros mais próximos conseguiram resistir à primeira e mais relevante blitz aérea alemã. Eu quis usar essa experiência para capturar a história maior de como a Inglaterra como um todo sobreviveu a isso. E aí os discursos de Churchill foram vitais. Ele começava fornecendo avaliações sóbrias dos eventos, mas então seguia com causas reais para o otimismo e, invariavelmente, encerrava com virtuosos floreios que elevavam a moral das pessoas e faziam todos se sentirem no mesmo barco. Como ele próprio disse, ele não deu coragem à Inglaterra; ele ajudou as pessoas a encontrar sua própria coragem.
Guerras são lutadas com armas, mas como Churchill usou suas habilidades oratórias para contra-atacar bombas com palavras?
Isso se deu porque seus pronunciamentos eram tão poderosos e tão belamente escritos, ou melhor, ditados. O que é realmente miraculoso sobre Churchill era sua habilidade de compor discursos intrincados e detalhados na correria, ditando, tipicamente enquanto andava ao redor de uma sala com um charuto na boca. Ajudava o fato de ele ser um escritor prolífico e um ávido leitor, e ter uma grande noção da história inglesa e mundial. Isso era importante, pois lhe dava uma perspectiva ampla sobre o que estava se passando. Ele entendia que o Império Britânico havia existido por um período de tempo muito grande e duraria muito tempo ainda. Seu truque era persuadir o público — uma tarefa na qual ele foi muito bem-sucedido.
A História não admite “se”, mas você consegue imaginar como a guerra poderia ter sido sem essas habilidades singulares de Churchill?
Eu tento evitar especular sobre a História! Dito isso, eu acho provável que outro alguém teria desempenhado esse papel caso Churchill não tivesse existido. Mas eu não posso imaginar alguém fazendo isso com tanta cor, humor, brio — e álcool!
Que lições sobre liderança Churchill oferece aos governantes lidando com a crise da pandemia de covid-19?
Eu creio que o livro seja útil ao mostrar como um verdadeiro líder pode ajudar a população a resistir ao trauma prolongado. Uma grande parte disso foi a habilidade de Churchill de expressar compaixão e empatia, de modo que as pessoas sentiam que ele compartilhava de seus medos e sofrimentos. Isso é vital. Ele também falava ao público com franqueza, porque ele entendia que as pessoas sabiam quão séria era a situação. Dizer o contrário provocaria uma dissonância entre essa fantasia e a realidade objetiva que teria erodido a moral das pessoas. Em contraste, nós tivemos Trump, que nunca ofereceu compaixão ou empatia, preferindo negar a severidade e até a existência da pandemia, e de alguma forma conseguindo tornar até o simples ato de usar uma máscara em um gesto político divisivo — com resultados infelizes, porém previsíveis.
Como foi o processo de pesquisa e por que você escolheu enfatizar e citar trechos de diários, cartas, telegramas e recados pessoais para recriar a atmosfera daqueles dias?
Para escrever o tipo de história que eu gosto de contar, eu preciso de todas essas coisas. Elas oferecem os vislumbres mais precisos e vívidos sobre como a vida realmente era vivida. E também servem como ferramenta narrativa para levar a história adiante. Alguns bons telegramas direto ao ponto ajudam a acelerar o ritmo. Sobre o por quê de citar certos documentos: eu sigo meus instintos. Se um diário parece particularmente vívido e cheio de insights, eu vou citá-lo. Por exemplo, o diário de Mary Churchill. Para mim, ele faz todo o livro, ao oferecer uma ideia tão rica de como os Churchills realmente resistiram àquele periodo. Ela foi uma mulher tão inteligente e articulada, seu diário não apenas nos dá vislumbres das grandes questões da guerra e da política, mas também sobre a vida de uma garota de 17 anos durante essa época. Ela foi perspicaz ao sentir o peso da guerra e teve compaixão pelos que mais sofreram, mas também queria se divertir! E ela o fez bastante. O que nos lembra que, mesmo nos piores tempos, ainda é possível haver experiências e eventos alegres.
Sem diários e correspondência impressa, será mais difícil documentar os nossos dias desse jeito intimista que você retratou aquela época?
É difícil dizer. Certamente as pessoas não escrevem mais o tipo de cartas que costumavam e esse era um recurso poderoso para compreender o passado. Mas nós temos tuítes, postagens no Facebook e em blogs, podcasts em abundância e uma pilha inacabável de fotografias de tudo — especialmente de gatos. Na verdade, eu sinto que tuítes poderiam ser particularmente preciosos para os futuros historiadores. De certa forma, são os telegramas de hoje. É interessante que os Arquivos Nacionais dos EUA agora armazenem grandes quantidades de tuítes, o que é particularmente importante para esse momento. Ninguém que tentar, no futuro, escrever sobre a era Trump será capaz de fazê-lo sem antes se debruçar sobre milhares e milhares de seu tuítes de sanidade questionável. Suspeito que os futuros historiadores vão lê-los e rir sobre o quão ridículos e patéticos esses tuítes eram.
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