quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

FESTAS NA BAHIA EM PORTO SEGURO AUMENTOU OS CASOS DE COVI-19 EM 20%

 

Depois de festas clandestinas no réveillon, casos de covid-19 no sul da Bahia crescem até 20%

Cidades da região, como Porto Seguro, foram cenários de aglomerações entre os últimos dias de 2020 e o início de janeiro. Agora, casos da doença avançam puxados pelo movimento de turistas

Fernanda Santana, Especial para o Estadão

SALVADOR – Diariamente, o trabalho sobre as águas do Rio Caraíva era regido pelo fluxo de turistas. Começava ao nascer do sol, com a chegada dos primeiros, e terminava no fim da tarde, com o retorno de outros para o continente. O canoeiro Benedito Borges, de 63 anos, transportava nove pessoas por vez até Caraíva, distrito de Porto Seguro, no sul da Bahia, nas dez horas de trabalho diárias. Repetiu a rotina até acordar doente. O ar não chegava mais aos pulmões e o corpo, antes firme, mal se aguentava em pé. Estava com o coronavírus.

O sul da Bahia foi cenário de aglomerações entre os últimos dias de 2020 e o início de janeiro. Uma briga judicial entre o governo da Bahia, promotores de evento e parte do setor turístico teve o Estado como vencedor – ficaram proibidos eventos de qualquer porte. As restrições, porém, couberam apenas nas laudas judiciais. Na prática, Borges, canoeiro há 15 anos em Caraíva, disse nunca ter visto o distrito tão cheio.

Festas causaram aglomerações na região durante o período de réveillon Foto: Reprodução

A conta chega agora, no sistema de saúde, com cada vez mais infectados pela covid-19. Dos 28 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) dedicados a pacientes graves de Porto Seguro, distribuídos entre a cidade e Eunápolis, a 55 quilômetros de distância, 70% estão ocupados.

Há três semanas, os primeiros sintomas da contaminação apareceram em Borges, apelidado de Dito. Como não tinha tempo para ter medo, e via naquele movimento de turistas uma oportunidade de passar o início do ano tranquilo, Dito se aventurava. Às vezes, um turista, no barco, teimava com ele, sem querer usar máscara. O canoeiro insistia e um armistício momentâneo era selado. “Saíam já rasgando a máscara. Eu usava sempre, acho que contraí o vírus de pegar dinheiro, e porque nem sempre tinha álcool em gel”, contou. Por pessoa, a travessia para chegar ou deixar Caraíva, um tipo de península, custa R$ 5.

A movimentação de turistas rumo ao sul da Bahia começou a crescer em 26 de dezembro do ano passado – e, com ela, o contato de nativos com aglomerações nas ruas. Um dia após o Natal, o Aeroporto Terravista, em Trancoso, distrito vizinho a Caraíva, onde só pousam aviões fretados, registrou até engarrafamento de aeronaves que esperavam autorização para desembarcar os passageiros. As festas clandestinas, na beira do rio, pousadas e casas em condomínios fechados, passaram a invadir madrugadas em Caraíva e Trancoso.

Porto Seguro tinha, de março de 2020 até aquele momento, 4.346 casos da doença, mostra o boletim diário divulgado pela Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab). Pouco mais de duas semanas depois, em 15 de janeiro, foram contabilizadas 4.779 notificações de covid-19. Até o último boletim, divulgado nesta segunda-feira, 1º, a cidade tinha 5.373 casos – 1.027 a mais, um crescimento de 12%.

O distrito de Caraíva tem  uma só Unidade Básica de Saúde (UBS). Lá vivem, segundo os próprios nativos, em média, mil pessoas. Entre o fim do ano passado e janeiro, eles estimam que a população fica até sete vezes maior. Esse fluxo não foi mudado pela pandemia, já que os turistas desembarcaram, ainda assim, na região. Sem estrutura de saúde robusta, Dito não conseguiu nem acesso a medicamentos no distrito.

“Sorte foi que não precisei ser transferido, nem nada, e me isolei aqui. Como moro sozinho, e minhas filhas vem na janela e deixam a comida que preciso”, falou. Um dos sete filhos de Dito precisou atravessar o rio que isola geograficamente o distrito para conseguir os medicamentos dele. Quando conversou com o Estadão, ele dava pausas para respirar, antes de responder ou durante uma fala, sinal de que os pulmões ainda se recuperavam do baque.

Dito teve um tio que, aos 96 anos, também contraiu o vírus em janeiro e precisou ficar internado em Porto Seguro. Mas os casos se tornaram frequentes em toda a vizinhança, relatou o nativo, não só entre seus parentes. “Teve um monte de gente que pegou”, afirmou. Conforme os boletins diários divulgados pela prefeitura de Porto Seguro, Caraíva tinha 28 casos de coronavírus no dia 26 de dezembro. No dia 1º de fevereiro, eram 56. Os moradores acreditam ainda que esse total de casos ainda esteja subnotificado.

A prefeitura de Porto Seguro respondeu, por meio da assessoria de comunicação, que não comentaria o aumento do número de casos. A gestão municipal também não detalha as ações voltadas para conter o avanço do vírus na cidade e nos distritos, pois disse que estava empenhada no início da vacinação.

PM dispersou ao menos 70 festas ilegais em uma semana

As aglomerações entre o fim de dezembro passado e janeiro aconteceram, principalmente, em Caraíva, Trancoso e Arraial D`Ajuda, três distritos de Porto Seguro. Entre 28 de dezembro e 3 de janeiro, a Polícia Militar da Bahia diz ter encerrado 70 festas ilegais – a maioria aconteceu em Trancoso e Arraial D`Ajuda. Uma delas, em 29 de dezembro, foi na casa da cantora Elba Ramalho, em Trancoso, então alugada para um empresário, que reuniu 400 pessoas. Ela negou saber do evento.

Menos de um mês depois, tanto Trancoso quanto Arraial viram o número de infectados saltar. No primeiro vilarejo, saiu de 143 para 230; no segundo, de 324 para 482. A guia de turismo Cátia Campanholo, 45 anos, circula todos os dias pelos três distritos, além das praias urbanas de Porto Seguro. Ela recebe os turistas nos aeroportos, os acompanha até os hotéis e, depois, nos passeios por praias e outras atrações.

“No final do ano, início de janeiro, parecia carnaval. Só funcionários com a máscara. Os turistas que eu acompanhava até usavam máscara na van. Mas, na praia, não existe isso”, relatou. O medo de trabalhar existia, mas a necessidade era maior. “O turismo foi o primeiro a parar e o último a retornar, a gente precisava voltar a trabalhar”, completou.

Logo depois do Réveillon, em 4 de janeiro, Cátia percebeu que poderia estar contaminada pelo coronavírus. “No trabalho, troco a máscara, mas não foi o suficiente.” Numa Unidade de Pronto Atendimento (UPA), receitaram um combo de medicamentos – incluindo o vermífugo ivermectina, comprovadamente ineficaz contra a covid-19. Àquela altura, ela já sentia falta de ar e dores no corpo.

Ela pediu que fosse testada, mas não foi atendida. O mal-estar permaneceu e, em 9 de janeiro, depois de pagar por teste privado, recebeu a confirmação de que estava infectada. Hoje Cátia ainda apresenta disfunções no paladar – sente quase nenhum gosto – e falta de ar. Ainda estava ofegante enquanto conversava com a reportagem. Mas teve de voltar a trabalhar, após receber o diagnóstico da cura, porque o movimento de turistas permanece, embora menor.

Carnaval é temido por secretária de Saúde

Em Cairu, onde o Estadão denunciou a ocorrência de festas clandestinas em barcos, para driblar a fiscalização, os resultados também são sentidos. Eventos ilegais aconteciam principalmente na Ilha de Boipeba, pertencente ao município, na região conhecida como Costa do Dendê. O número de casos de covid-19 saltou de 661, em 26 de dezembro, para 796 em 1º de fevereiro deste ano, em Cairu. Isso significa alta de 20% dos infectados – a cidade tem 18,4 mil habitantes.

A secretária de Saúde e vice-prefeita de Cairu, Cíntia Rosemberg, acredita que não só as aglomerações do fim do ano passado tenham repercutido no aumento do número de casos, reconhecido por ela. A gestão municipal do ano passado foi substituída pela atual, vitoriosa nas eleições de novembro. “Incrementamos a vigilância em saúde. Antes estávamos com duas pessoas treinadas para realizar testes, hoje temos dez. Também estamos fiscalizando mais, notificando irregularidades”, afirmou.

A preocupação agora, segundo Cíntia, é com o carnaval, mesmo após o governo estadual cancelar o ponto facultativo no Estado, para evitar aglomerações. Isso porque, tradicionalmente, o litoral sul da Bahia é destino certo para quem quer relaxar durante ou depois da festa. Ao menos oficialmente, a folia foi cancelada.

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