Decisões absurdas
No curso da pandemia, vidas poderão ser salvas se bobagens deixarem de ser cometidas.
O desastre de Manaus, uma tragédia dentro da tragédia, foi construído por uma sucessão de ações e omissões das autoridades locais, do governo federal e de parte da população. Se os erros fatais que lá foram cometidos não forem prontamente reparados, não apenas a situação da capital amazonense piorará muito antes de começar a melhorar, como Manaus será apenas o prenúncio do que pode acontecer no restante do País.
E nada indica que as chamadas autoridades passaram a agir com mais cuidado diante da situação calamitosa.
Veja-se a espantosa decisão da juíza Jaiza Fraxe, da 1.ª Vara Federal do Amazonas. Diante de alguns casos de desrespeito à fila de vacinação no Estado, a magistrada ordenou a suspensão de todo o envio de vacinas para Manaus até que o governo local passasse a publicar uma lista diária com os dados dos vacinados. Também proibiu que os fura-filas recebam a segunda dose da vacina. Seria inacreditável se este país não fosse pródigo em decisões judiciais que desafiam o bom senso e até mesmo a lei.
Por qualquer ângulo que se a analise, a decisão da juíza Fraxe é um descalabro. Em primeiro lugar, obviamente, é consenso que apenas a ampliação do número de vacinados no País, o mais rápido possível, é capaz de conter o avanço do novo coronavírus e diminuir o número de casos e mortes por covid-19. Interromper uma campanha de vacinação em seus primeiros estágios, ainda que por alguns dias, ou mesmo por horas, é jogar a favor do vírus e contra a vida dos cidadãos. É tão simples quanto isso. Segundo, exigir uma lista com dados dos vacinados viola o sigilo do prontuário médico. A rigor, não importa se os pacientes que terão seus dados divulgados furaram ou não a fila de vacinação, são pacientes. A magistrada deveria ser a primeira a saber que não se corrige um erro cometendo outro.
No dia 27 passado, a mesma juíza determinou que a vacinação de idosos tivesse início “imediatamente” no Amazonas após a apresentação de um plano do governo para aplicação de doses da vacina Oxford/AstraZeneca, importadas pela Fiocruz. A elaboração da tal lista consta deste plano.
Mas decisões absurdas não são privilégio do Poder Judiciário. O Poder Executivo também faz das suas. Está em plena circulação no Amazonas uma nova cepa do coronavírus, a chamada variante P.1, que é mais infecciosa do que as cepas já conhecidas (ver editorial A tempestade perfeita, de 1/2/2021). Hoje, a variante P.1 já é detectada em cerca de 90% dos casos de covid-19 no Estado da Região Norte.
E o que faz o governo local? Transfere os pacientes mais graves para outros Estados da Federação, elevando o risco de disseminação da nova cepa pelo restante do País. Não por acaso, governos de nações desenvolvidas já manifestaram profunda preocupação com a falta de cuidado das autoridades brasileiras para lidar com a variante P.1. É preciso ficar claro de uma vez por todas que uma pandemia, por definição, não é um problema local.
Evidentemente, seria muito mais seguro para todos – sobretudo para os enfermos – que o governo estadual e a prefeitura trabalhassem para que a ajuda médica fosse enviada a Manaus, e não que os pacientes fossem levados para outras cidades. Transferências de doentes em condições críticas são sempre arriscadas.
Não menos importante, está-se diante de uma nova cepa que ainda está sendo estudada, mas que já é reconhecida como mais transmissível e também pode ser mais mortal. Com base em dados de registro de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) do Ministério da Saúde, o Estado tabulou que 20% do número de mortos por covid-19 no Amazonas não apresentavam qualquer fator de risco associado. No restante do País, apenas 7,4% dos mortos não tinham as chamadas comorbidades.
No curso da pandemia no Brasil, muitos erros foram cometidos pelo poder público e por cidadãos. Não se chega a um total de quase 230 mil mortes por acaso. Vidas poderão ser salvas se bobagens deixarem de ser cometidas.
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