sábado, 10 de outubro de 2020

GOVERNO TEM DIFICULDADES DE CONTROLAR O TETO DE GASTOS PREVISTO NA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

 

Tesouro admite dificuldade para interpretar artigo que 'susta' LRF

 

Idiana Tomazelli

 

BRASÍLIA - Responsável pelas normas contábeis da administração e pela sustentabilidade das contas públicas, o Tesouro Nacional confirmou ao Estadão/Broadcast que há dúvidas sobre como interpretar o artigo que livra os gestores de cumprir em 2020 o dispositivo que exige caixa suficiente para bancar as despesas contraídas em fim de mandato.

Segundo o órgão, a lei que criou o socorro federal a Estados e municípios afastou as punições para quem deixa o caixa no vermelho, além de outros limites e sanções, “desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública”. “Há dúvida sobre como interpretar o afastamento das vedações relacionadas a esse dispositivo (disponibilidade de caixa), tendo em vista que não envolve arrecadação de recursos”, diz o Tesouro.

 

© Marcos Oliveira/Agência Senado Prefeitos correm risco com ‘liberou geral’, diz José Roberto Afonso.

Segundo o órgão, seria necessária uma interpretação jurídica para definir se a exigência de caixa está suspensa apenas para as despesas relacionadas à calamidade realizadas nos últimos oito meses do ano ou se vale para outros gastos que deixaram de ter fonte financeira devido à queda de arrecadação na esteira da crise ou ao redirecionamento de recursos para o combate à pandemia.

Uma terceira possibilidade, ainda segundo o Tesouro, seria entender que a exceção prevista pelo socorro abarca toda e qualquer insuficiência de caixa, inclusive as derivadas de rombos nos anos anteriores.

Segundo apurou o Estadão/Broadcast, o temor de técnicos do governo é que cada um interprete do jeito mais favorável, sob a chancela dos tribunais de contas.

Um dos criadores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o economista e professor do IDP José Roberto Afonso entende que a lei não abriu nenhuma exceção para gastos sem relação com a calamidade e que “cabe aos tribunais de contas assegurar a correta aplicação”.

“Eu acho muito difícil que os tribunais de contas, mais os ministérios públicos estaduais de contas, venham fazer uma leitura de que o artigo 42 da LRF foi suspenso de forma generalizada por essa lei complementar. E acho que os prefeitos que apostarem que liberou geral correm sério risco de problemas com prestação de contas”, afirma Afonso. Segundo ele, prefeitos com que ele tem conversado demonstram preocupação em atender às exigências de caixa da LRF.

TCU

A apuração do cumprimento ou não do artigo 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que cobra a existência de caixa em fim de mandato, é feita pelos Tribunais de Contas Estaduais (TCEs) ou municipais (TCMs) no momento da análise das contas de governo e depende ainda de uma interpretação jurídica do texto legal. Esses tribunais, preenchidos por indicações políticas, até hoje não motivaram nenhuma condenação de gestor por deixar rombo no caixa, embora a situação já tenha sido verificada em anos anteriores.

Para barrar a ameaça de descumprimento da LRF, os prefeitos que já verificavam desequilíbrio no caixa em 2019 precisariam conter despesas ou cancelar gastos de anos anteriores que ainda aguardam pagamento.

Além de descumprir a lei, quem deixar dívidas descobertas ainda vai pressionar o caixa dos sucessores num momento já de dificuldade. A procuradora do MP de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane lembra que a insegurança na arrecadação tributária no momento de retomada e a expansão dos gastos supostamente extraordinários no enfrentamento da pandemia levarão ao aumento da dívida dos governos regionais.

A prefeitura de Diadema informou que, do rombo no caixa no fim de 2019, pouco mais de R$ 100 milhões vinham do déficit previdenciário diante da dificuldade do município em honrar a alíquota patronal suplementar de 19,26% (além dos 11% regulares) para sustentar as aposentadorias. Neste ano, a previsão de restos a pagar com fornecedores e prestadores de serviços é de R$ 35 milhões, fora o déficit na Previdência. A prefeitura não respondeu sobre como interpreta o artigo que afastou a necessidade de ter dinheiro em caixa para suas obrigações. As demais prefeituras não responderam até o fechamento desta edição

A discussão sobre a manutenção do teto do gasto público gerou forte divisão no governo. De um lado estão os que propõem furar o teto com o objetivo de aumentar os investimentos públicos para alavancar o crescimento da economia em 2021 e implementar um programa mais robusto de transferência de renda para incluir os grupos que perderam sua fonte de renda com a pandemia. De outro estão os que se colocam como objetivo obedecer ao teto e persistir na trajetória de buscar a sustentabilidade da dívida pública.

A saída via furar o teto parece a estratégia socialmente mais adequada. Segundo seus defensores, significaria aumento do investimento, da ocupação e da renda das pessoas, evitando o aumento da pobreza decorrente da pandemia. Afinal, diante da forte recessão e do aumento do desemprego gerados pela pandemia, a reação do Brasil foi criar um orçamento paralelo para contabilizar separadamente os gastos com a doença e, desta forma, furar o teto já em 2020.

Ainda que a reação dos investidores tenha sido bastante negativa – forte desvalorização do real (mais de 30% no ano), aumentos das taxas de juros dos títulos do governo de vencimento mais longos, dificuldade de financiar a dívida e queda acentuada dos preços das ações, com saída de cerca de R$ 90 bilhões de recursos externos da Bolsa de Valores –, para alguns analistas essa reação foi menos intensa do que se deveria esperar, dado que os programas implementados significarão um aumento de gastos de mais de R$ 800 bilhões no ano, o teto não será cumprido e a dívida pública sairá de um patamar de 70% para quase 100% do Produto Interno Bruto (PIB).

 

© Daniel Teixeira/Estadão Impasse em torno do teto de gastos ainda vai causar muita tensão na relação entre governo e investidores.

Não cabe neste espaço discutir se a reação foi fortemente negativa ou não. O importante é que ela teria sido ainda mais negativa sem o teto. A existência do teto manteve um mínimo de credibilidade na dívida pública e evitou que os investidores demandassem taxas de juros ainda mais elevadas para financiá-la e uma saída mais intensa de recursos do País.

Furar o teto seria um sinal de que o compromisso com a sustentabilidade da dívida não será mantido, rompendo o frágil elo de credibilidade ainda existente entre os investidores e o governo brasileiro. Os resultados seriam fuga de investimentos, desvalorização cambial, aumento das taxas de juros de mercado, provável rebaixamento da nota do Brasil por agências de classificação de riscos e pressão inflacionária. Recessão, desemprego e queda da renda real dos trabalhadores, ao contrário do que acreditam os defensores do rompimento do teto. Já seguimos este caminho em 2011/2015.

O comportamento dos preços dos ativos financeiros nos últimos 15 dias, quando a ameaça de que o teto poderia ser furado entrou no radar, é uma antecipação de como deverão se comportar caso o teto seja rompido. A proposta de financiar o programa Renda Cidadã com o adiamento do pagamento de precatórios – que significaria financiar o programa com mais dívida, o que, do ponto de vista econômico, é como furar o teto – gerou forte reação negativa entre os investidores, e o Banco Central indicou que, caso essa decisão se materializasse, teria de mudar a trajetória da política monetária, sinalizando aumento da taxa de juros.

Somente após anunciar que essa possibilidade estava fora de cogitação, enfrentar uma discussão pública com o principal defensor do rompimento do teto dentro do governo, receber o apoio explícito para a manutenção do teto do presidente da Câmara dos Deputados e do presidente da República, o ministro da Economia acalmou, em parte, os investidores. A declaração do presidente da Câmara de que a prioridade é aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Emergencial ajuda.

A discussão não terminou. Isso provavelmente só vai acontecer quando o Senado aprovar as PECs do Pacto FederativoEmergencial e dos Fundos, indispensáveis para reduzir despesas obrigatórias e criar espaço para a aprovação do programa assistencial do governo, sem furar o teto. Até lá, a volatilidade vai dominar os mercados.

*PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC/RIO, É ECONOMISTA-CHEFE DA GENIAL INVESTIMENTOS

 

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