'Outras pandemias virão', alerta infectologista Carlos Starling
Paulo Henrique Silva
Bactérias super-resistentes podem ser problema maior do que o coronavírus, aponta o infectologista mineiro
A rotina começa às 5h, quando pratica uma das atividades preferidas: pedalar. “A gente precisa de um subterfúgio, senão enlouquece”, atesta Carlos Starling, um dos mais renomados nomes da infectologia no Brasil e, hoje, integrante do Comitê de Combate à Covid-19 em Belo Horizonte. Com o fôlego de quem roda semanalmente 100 quilômetros de bicicleta, na região do aeroporto de Confins, ele avisa, usando o linguajar dos ciclistas, que o novo coronavírus é uma pandemia para maratonista.
“Esse vírus vai nos dar trabalho pesado nos próximos dois anos. Nós não vamos conseguir ficar livres com a rapidez que gostaríamos”, alerta Starling. Tanto sobre a “magrela” quanto na luta de quase 40 anos contra epidemias, o médico mineiro revela um currículo invejável. De um lado, participou duas vezes do Tour de France, principal competição mundial de ciclismo, e foi vice-campeão brasileiro, na categoria master. Do outro, tornou-se nome de referência internacional no controle de infecções hospitalares.
Depois de passar por epidemias de meningite, cólera, dengue e H1N1, ele não foi pego de surpresa com o coronavírus. “O problema é que ele é agudo e acomete o mundo inteiro. Nós estávamos esperando outros problemas de saúde pública tão graves quanto. Outras pandemias virão. Este problema que estamos enfrentando não é o primeiro e não será o último”, analisa.
Essa pandemia se
espalhou com rapidez pelo mundo, paralisando os países. Imaginava-se encarar um
desafio deste tamanho?
Ainda no tempo da faculdade, comecei a trabalhar com pesquisa em doenças
infecciosas. Estava no segundo período de Medicina quando ganhei a minha
primeira bolsa de iniciação científica para trabalhar com uma das doenças mais
complicadas que existem, que é a esquistossomose. Depois, trabalhei com a
epidemia de meningite, no fim da década de 1970 e início dos anos 80. Depois,
foi a epidemia de cólera. Mais tarde, dengue e H1N1, quando participei do
comitê de enfrentamento. A minha vida foi sempre lidar com epidemia, via controle
de infecção hospitalar, enfrentando as bactérias multirresistentes. É um dos
maiores desafios epidemiológicos que temos e vamos continuar enfrentando ao
longo das próximas décadas.
Diretor e ex-presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, Starling trabalha nos hospitais Life Center, Vera Cruz e da Baleia, coordenando as equipes de vigilância e controle de infecções hospitalares
Por que?
A superbactéria é um dos maiores problemas de saúde pública do mundo. Nós não
temos vacina para isso. Nós vamos ter vacina para corona nos próximos anos,
mas, para infecção hospitalar, a vacina é o comportamento, é a educação das
pessoas e dos profissionais de saúde. É lidar com infraestruturas do sistema de
saúde. A Organização Mundial de Saúde projeta uma mortalidade e um custo
assistencial trilionário nos próximos dez a 20 anos. As superbactérias são um
problema que já estamos enfrentando hoje. Certamente, serão um problema maior
ainda que o coronavírus. O problema do coronavírus é que ele é agudo, que
acomete o mundo inteiro. As bactérias super-resistentes são um problema
crônico, com uma tendência de piora até 2050. É importante dizer que há mais de
30 microorganismos sendo monitorados continuadamente pelos centros de controle
de doenças no mundo afora. O coronavírus furou esta fila. Nós estávamos
esperando outros problemas de saúde pública tão graves quanto. Outras pandemias
virão. Este problema que estamos enfrentando não é o primeiro nem será o
último, com certeza absoluta.
E como minimizar a
ação destas pandemias?
Com vigilância. Precisamos ter sistemas de vigilância em saúde muito sensíveis.
Os nossos processos de vigilância epide-miológica, que vão do centro de saúde
mais básico até os hospitais mais sofisticados, têm que ser extremamente
sensíveis e capazes de identificar surtos precocemente. Nós temos que investir
tanto na formação da vigilância epidemiológica quanto na formação das pessoas
que trabalham nessa área. Investir em sistemas de informação que vão permitir
um diagnóstico ultrarrápido dos problemas de saúde que vamos enfrentar nos
próximos anos.
“BH teve uma adesão excepcional (ao isolamento social), e continua tendo, apesar do aumento de circulação (de pessoas). Claro que há o desrespeito de segmentos da população, algo que acontece em todas as classes sociais”
E já se sabe
bastante sobre o novo coronavírus?
O volume de trabalhos científicos publicados sobre coronavírus em cinco meses é
quase inacreditável. É um vírus que, com cerca de dez dias, já estava mapeado
geneticamente. A evolução do conhecimento em relação ao coronavírus foi muito
rápida, a partir da mobilização mundial nos centros de ciências mais avançados
no mundo. Uma evolução muito rápida também em termos de estratégia, de
prevenção de controle, sobre a importância do distanciamento e do isolamento
social e do uso de máscara. Entretanto, esse vírus ainda vai ficar na nossa
pauta durante muito tempo. Ainda vamos ter muita coisa para estudar e entender
sobre esta epidemia. O conhecimento durante a epidemia é similar a você trocar
o pneu com o carro andando. Você tem que ir ajustando desde o aspecto clínico
até as condutas do ponto de vista da saúde pública.
E a população,
quando ficará livre desta doença?
Esse vírus nos vai dar trabalho pesado nos próximos dois anos. Nós não vamos
conseguir ficar livres desta epidemia com a rapidez que gostaríamos. Costumo
dizer que ela não é uma epidemia para sprintista, usando a linguagem do ciclismo.
É uma epidemia para maratonista. É uma epidemia que você tem que ter paciência
para passar por ela com o mínimo de sofrimento. Seja em termos de perdas de
vidas, que são enormes, seja nas perdas econômicas, que são dramáticas também.
Perda de emprego, perda de vidas, tudo isso afeta o futuro de milhares de
pessoas. Todo mundo deve tomar cuidado extremo, porque a nossa mortalidade é
bem superior do que vinha sendo relatado na China e na Europa, principalmente
na faixa etária acima de 50 anos. Pacientes com hipertensão e diabetes têm uma
mortalidade muito significativa. Higienizar as mãos e manter o distanciamento
social farão parte de uma nova forma de relacionarmos, algo que deve durar um
bom tempo. Algumas dessas coisas devem permanecer como parte de uma cultura de
relacionamento e de respeito entre as pessoas.
Infectologista foi o responsável pela implantação do controle de infecção hospitalar no Brasil e na América Latina, tendo treinado mais de cinco mil pessoas só em Minas Gerais
O senhor falou de
uma mortalidade maior no Brasil na faixa etária acima de 50 anos. Por que isso
está acontecendo no país?
A gente tem que ter o entendimento desta epidemia no Brasil. Ela começa nas
classes A e B. Depois, progride para as classes C, D e E. Esse é lado social da
epidemia. Nós temos uma epidemia que caminha dos grandes centros,
principalmente São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Manaus, para o interior.
O Brasil, enquanto país continental, não tem um só vírus, mas várias epidemias.
Vários momentos epidemiológi-cos em regiões distintas. Minas Gerais é uma
exceção: ao invés de a epidemia sair de Belo Horizonte e ir para o interior,
ela vem do interior para a capital.
Por que aconteceu
esta inversão em Minas?
Belo Horizonte usou medidas de distanciamento e isolamento social e de
fechamento de atividades não essenciais de uma semana a dez dias antes da
grande maioria das outras capitais. Isso fez com que a epidemia ficasse
controlada em Belo Horizonte. Além de vários outros fatores, como a própria
estrutura de atenção primária no sistema de saúde, que é muito boa, muito
melhor do que das outras cidades. BH começou a se preparar, é bom lembrar, para
a epidemia em janeiro. As medidas que estamos vendo em BH surgiram por conta da
lucidez do secretário municipal de Saúde, Jackson Pinto. Quando o Comitê de
Combate à Pandemia começou os trabalhos, já tinha muita coisa feita. Isso
facilitou muito. A epidemia aqui se comportou ao contrário. Ela chega por São
Paulo e invade o Triângulo Mineiro e o Sul de Minas e vem para a capital. Nós
estamos hoje sofrendo as consequências – e isso vai ocorrer nos próximos meses
– da expansão da epidemia no interior do Estado. Vai ficar num pingue-pongue
por um bom tempo, com várias ondas epidêmicas ao longo dos próximos 12 meses.
Outra coisa importante é a estrutura assistencial no interior do Brasil, que é
muito precária, especialmente, no Norte e Nordeste. Ainda não vimos a face mais
cruel no nosso país. Só está começando. Não adianta ter respirador se não tem
uma equipe de pessoas capacitadas para lidar com pacientes em estado grave. É o
grande gap que nós temos.
O senhor acredita
que a decisão de liberar parcialmente o comércio em Belo Horizonte foi
precipitada, tomada mais em função da pressão dos comerciantes?
Pressão sempre existiu. Ela existe de vários lados. Mas tem uma coisa que o
prefeito não faz, que é ceder à pressão. Ele assumiu a orientação que foi dada
pelo comitê. A flexibilização em BH aconteceu porque estávamos com a capacidade
assistencial e com a velocidade da epidemia dentro dos limites de segurança.

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