Cálculo político revelador
Rogério L. Furquim Werneck
Não lhe bastassem a pandemia e a recessão, o
presidente decidiu abrir uma terceira frente, ao deflagrar grave crise política
que poderá até lhe custar o mandato.
Tendo se permitido incorrer nos custos de destituir
Mandetta em meio à pandemia, Bolsonaro não se deu por satisfeito. Três dias
depois, aceitou ser protagonista de grotesca manifestação antidemocrática, em
frente ao QG do Exército, em Brasília. E, em seguida, não teve melhor ideia do
que armar novo pandemônio político que culminou na renúncia do mais popular de
seus ministros.
Diante de tantos despropósitos, é natural que
muitos analistas estejam tentados a crer que o presidente já não se pauta por
considerações racionais. E é até possível que estejam certos. Mas, por ora,
parece mais realista presumir que o presidente continua tentando ser racional,
ainda que com objetivos muito estreitos, péssima assessoria e manejo lamentável
dos seus recursos políticos. É uma perspectiva analítica mais promissora,
porque permite vislumbrar elementos cruciais do cálculo político do Planalto
que escapariam a análises baseadas na presunção de irracionalidade.
Já é hora de passar a entender Bolsonaro &
Filhos como um grupo político indissociável. Tendo conquistado a Presidência da
República nas condições especialíssimas da eleição de 2018, o grupo atravessou
2019 cada vez mais convicto de que o feito poderia ser repetido em outubro de
2022.
Tal convicção viria a ser fatalmente abalada pela
pandemia e seus complexos desdobramentos econômicos e sociais. E, para o grupo,
a brusca reversão de expectativas seria traumática.
Mandetta caiu, em parte, por ter mostrado mais
sucesso do que deveria. Mas, primordialmente, por ter insistido numa linha bem
fundamentada de combate à epidemia que eliminava qualquer esperança de que a
economia pudesse vir a ter, em 2020, desempenho compatível com o projeto de
reeleição de Bolsonaro.
Ao erro crasso da destituição de Mandetta
seguiram-se novos e graves equívocos. Inseguro com a extensão do desgaste que a
troca do ministro da Saúde provocara, o presidente foi convencido a ter
desastrosa participação na demonstração antidemocrática de domingo, 19, em
Brasília. O que lhe rendeu, já no dia seguinte, solicitação da
Procuradoria-Geral da República, ao STF, de instauração de inquérito sobre os
patrocinadores da demonstração.
E aqui vem a questão crucial. Por que Bolsonaro
& Filhos não pararam por aí? Por que, tendo já incorrido em tanto desgaste,
decidiram desencadear, em momento tão inconveniente, a disputa pelo controle da
Polícia Federal (PF), que redundaria na renúncia de Moro?
Na resposta a tal indagação, faz toda diferença
supor que Bolsonaro & Filhos ainda tomam decisões racionais ou que já estão
entregues à inconsequência. Se a decisão de enfrentar Moro adveio de um cálculo
político racional, é porque os benefícios esperados superavam com folga os
custos envolvidos.
Salta aos olhos quão enormemente custosa para o
Planalto foi a renúncia de Moro. É difícil que Bolsonaro & Filhos tenham se
surpreendido com as proporções do desgaste político que lhes foi imposto. Se,
mesmo assim, foram em frente com a decisão, é porque os benefícios que
esperavam auferir com o controle da PF lhes pareciam largamente compensadores.
Como é fácil perceber, a simples suposição de que a
decisão de desafiar Moro decorreu de um cálculo político racional é o que basta
para entrever quão alarmado estava o Planalto com sua vulnerabilidade. E quão
urgente lhe parecia assumir controle imediato e absoluto sobre a PF.
Com a suspensão da nomeação do novo diretor da PF,
por liminar do STF, o oneroso episódio que redundou na renúncia de Moro
converteu-se no que no mundo anglo-saxão se rotula de all-cost operation. Só
custos, nenhum benefício. Por ora, Bolsonaro & Filhos voltaram a se ver tão
vulneráveis como antes se viam.
É assombrado por essa vulnerabilidade que o
governo, agora, terá de lidar com o avanço da pandemia e a brutal crise
econômica e social que o País tem pela frente.
*ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, É
PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO
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