O Estado pós-crise
Novas
ideias além dos paradigmas teóricos, ideológicos e políticos
Na última semana falamos da mudança brusca do papel
do Estado na gestão da crise sanitária e econômica derivada da pandemia do
coronavírus. Havia uma onda liberalizante e conservadora, temperada com o
chamado “populismo autoritário”, a partir de diversos governos liderados por
Donald Trump, Boris Johnson, Jair Bolsonaro, entre tantos outros.
De repente, todos os governos, independente de
orientação ideológica, foram impelidos a adotar políticas keynesianas,
ampliando gastos e dívida pública, para suportar o necessário aumento das
despesas com a saúde e com programas de sustentação do emprego e da renda.
Entre as diversas mudanças que ocorrerão no pós-crise, certamente ganhará corpo
a discussão sobre o papel do estado e o nível ideal de intervenção
governamental. A crise reforçou a ideia da necessidade de um governo forte,
ágil, eficiente e que tem um papel central nas ações que o mercado e a
sociedade não dão conta de forma descentralizada realizar. Nada que se confunda
com um Estado inchado, obeso, onipresente e perdulário.
Esse debate tem raízes históricas e teóricas que
vale a pena revisitar. Durante todo o século XX ocorreu um embate entre as
concepções do Estado mínimo liberal, o Estado do bem-estar socialdemocrata e
o Estado máximo do socialismo real. A configuração concreta dos modelos de
intervenção governamental não seguiu um figurino rígido. A história foi desenhando
o caminho dependendo do grau de desenvolvimento e maturidade de cada economia,
do perfil cultural e histórico de cada país, do desenvolvimento das
instituições nacionais e do processo político resultante da disputa de
interesses na sociedade.
Desde a Revolução Industrial, no final do século
XVIII, a evolução da nascente economia capitalista exigia o rompimento com a
herança feudal e mercantilista, quebrando barreiras alfandegárias, monopólios
coloniais, condenações morais ao lucro, intervenções governamentais inibidoras
da livre iniciativa. Quanto maior a liberdade, maior a perspectiva de
desenvolvimento. Talvez a melhor representação da utopia liberal tenha sido a
famosa “mão invisível” de Adam Smith. O indivíduo, ao procurar maximizar
seus ganhos, involuntariamente estaria produzindo o maior bem-estar possível
para a sociedade. O Estado deveria se limitar a assegurar o império das Leis e
da Constituição, garantir a defesa nacional e a segurança pública e defender a
estabilidade da moeda.
Durante todo o século XIX e início do século XX,
apesar das inúmeras guerras que traduziam a luta por mercados e a luta dos
trabalhadores denunciando as iniquidades sociais produzidas pela nascente
economia de mercado, predominou a concepção derivada da Lei de Say
– a oferta gera sua própria demanda, e as teorias de equilíbrio geral. Ou seja,
não haveria crises de superprodução e subconsumo, deficiência de demanda
efetiva, ciclos e recessões. As crises seriam pontuais e passageiras, e as
próprias forças de mercado superariam desequilíbrios momentâneos. Essa escola
de pensamento se manteve viva no pensamento de Von Mises, Hayek e Milton
Friedman, que sempre advogaram a necessidade de que a ação estatal se resumisse
ao mínimo necessário, não devendo o governo procurar protagonismo nem na
dinamização da economia, nem no combate às desigualdades sociais. O mercado
cuidaria de quase tudo.
No início do século XX surgiram dois movimentos
alternativos à concepção clássica liberal. A experiência soviética de Estado
Máximo, a partir da revolução de 1917, que naufragou na dissolução da URSS e na
queda do Muro de Berlim, ao final do século XX. E a experiência socialdemocrata
do Estado do Bem-Estar Social, que combinava compromisso com a democracia
política, combate às desigualdades via políticas públicas ativas e respeito à
economia de mercado socialmente regulada. No campo do pensamento econômico, as
teorias de Keynes e muitos outros, nascidas no enfrentamento da Grande
Depressão de 1929, legitimou a intervenção estatal já que a realidade tinha
derrotado a Lei de Say e a ideia do equilíbrio geral automático e foi o
pensamento hegemônico até a década de 1970, quando a crise fiscal começou
revelar os limites da intervenção estatal.
Hoje, a partir das crises globais de 2008 e do
coronavírus, um mundo novo se abre. Um mundo novo exige ideias novas. O
esgotamento dos três paradigmas teóricos, ideológicos e políticos, dominantes
no século XX, abre um vasto campo para uma nova formulação criativa e inovadora
sobre o funcionamento da economia e da sociedade contemporâneas. Haverá um
retorno ao protecionismo e um recuo na globalização? E o capitalismo de Estado
da China? Quais são seus limites e suas vantagens? Como se comportarão os
governos que foram pegos pela Covid-19 em momento de fragilidade fiscal e
tiveram que ampliar gastos e endividamento? Como conciliar democracia, economia
de mercado e combate às desigualdades sociais?
Antes que o atual ambiente brasileiro de
polarização medíocre reproduza confrontações sectárias recentes de coxinhas
versus mortadelas, bolsominions versus isentões versus “comunistas”, cabe
aprender com a história, desarmar espíritos, abrir corações e mentes. O grande
pensador liberal Milton Friedman que fazia uma defesa apaixonada do Estado
Mínimo e da economia de mercado, nem por isso propunha governo nenhum. Tanto
que defendeu o imposto de renda negativo, um programa de renda mínima,
para garantir a sobrevivência da população mais pobre. Por outro lado, Keynes
nunca propôs que todo aumento de gasto público e toda intervenção estatal, em
qualquer circunstância histórica, fossem sempre positivos. Falava de uma
depressão profunda, aonde era preciso incrementar a demanda efetiva,
neutralizar a preferência pela liquidez e garantir renda e investimentos
visando à superação do desemprego e a retomada do crescimento rumo ao pleno
emprego.
O
pensamento humano sempre avançou nas crises.
Há aqueles que desprezam os fatos e ficam dogmaticamente presos às suas
convicções. Mas um tempo novo exige novas ideias que iluminem a realidade e
descortinem novos horizontes. Com a palavra a inteligência brasileira!
Nenhum comentário:
Postar um comentário