Mulheres que
fizeram aborto relatam momentos de medo e desespero
Agência Brasil
Em um país marcado
por abismos socioeconômicos, uma questão polêmica de saúde pública, como o
aborto, acaba revelando privilégios. No Brasil, onde a interrupção da gravidez
só é permitida em casos específicos, abortos seguros são prerrogativa de
mulheres ricas que podem arcar com preços cobrados por médicos ou clínicas
ilegais espalhadas pelo país.
As mulheres pobres,
em geral, recorrem a métodos perigosos em casa ou em clínicas de péssima
qualidade. Muitas delas morrem devido a hemorragias graves causadas por
procedimentos mal feitos. Também são elas as mais atingidas pela criminalização
da prática.
De acordo com a
publicação 20 anos de Pesquisa Sobre Aborto do Brasil, do Ministério da Saúde,
a criminalização do aborto atinge especialmente mulheres jovens, desempregadas
ou em situação informal, negras, com baixa escolaridade, solteiras e moradoras
de áreas periféricas.
Levantamento
conduzido pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro no ano passado, mostrava
que ao menos 42 mulheres que fizeram aborto no estado, entre 2005 e 2017, foram
processadas e respondiam a processo criminal. A maioria delas era negra, pobre,
tinha entre 22 e 25 anos e já era mãe.
Entre 2006 e 2015, o
Ministério da Saúde contabilizou 770 óbitos de mulheres por complicações após
procedimentos de aborto. De acordo com a pasta, o aborto é a quarta causa de
mortalidade materna no país. Especialistas acreditam que esses números sejam
ainda maiores.
De acordo com o
Código Penal, o aborto é crime no Brasil, com pena de um a três anos, salvo em
situações em que há risco de vida para a mulher ou para o bebê, em casos de
estupro e de anencefalia do feto. A partir de hoje (3), a questão da
criminalização do aborto estará em debate durante audiências públicas no
Supremo Tribunal Federal (STF).
A Agência Brasil
entrevistou duas mulheres de diferentes perfis que optaram pela interrupção de
uma gravidez indesejada. Sob a promessa de anonimato, elas relataram à
reportagem suas histórias de vida e o motivo que as levaram a decidir pelo
aborto. Medo, desconhecimento, falhas na educação sexual, desespero e, muitas
vezes, desamparo. As situações e condições a que as duas mulheres foram
submetidas são bem distintas. Em comum, apenas o entendimento da necessidade de
uma política integral de atendimento à mulher que evite mortes desnecessárias.
Desencanto com o
amor
"Neste mês de agosto, está fazendo um ano que eu fiz esse procedimento. Eu tinha 31 anos, na época. Eu me relacionei com um rapaz que conheci através da internet. Eu já o conhecia, na verdade. Ele é escritor e eu o seguia [nas redes sociais], era muito fã dele."
"Neste mês de agosto, está fazendo um ano que eu fiz esse procedimento. Eu tinha 31 anos, na época. Eu me relacionei com um rapaz que conheci através da internet. Eu já o conhecia, na verdade. Ele é escritor e eu o seguia [nas redes sociais], era muito fã dele."
Foram com essas
palavras que Lara* iniciou seu relato sobre a decisão de fazer um aborto.
Quando concedeu a entrevista, ela estava a mais de 2 mil km de sua casa,
localizada no interior de Alagoas, e cuidava, a pedido de um amigo, de uma
mulher que havia acabado de interromper uma gravidez, em outra região do
Brasil.
Segundo ela, foram
os constantes pedidos por dinheiro emprestado, sob alegação de dificuldades
financeiras, que provocaram nela o desencantamento que se instalou de forma
definitiva. Os apelos não eram feitos exclusivamente a ela, que descobriu
que o rapaz tinha o mesmo histórico com outras mulheres. "As
circunstâncias foram essas, decorrentes de um relacionamento que existiu para
mim, em que eu me apaixonei, mas o cara só se aproximou para tirar coisas de
mim. Quando eu entendi isso, eu fiquei deprimidíssima e, logo depois, eu
descobri a gravidez", afirmou.
Para ela, um
componente que contribuiu para que engravidasse foram as falhas em sua educação
sexual, comuns a muitas brasileiras. "Eu estudei em escola particular, no
interior do Alagoas, onde as cabeças são bem fechadas. A minha família não é
religiosa, mas alguns temas, simplesmente, não eram tratados. Eu não fui
educada para conhecer meu corpo, para frequentar médico", disse.
"Então, com uns dois meses, eu tinha uns sangramentos que eu achava que
eram menstruação, mas não eram", acrescentou, suspirando.
Decepcionada com um
afeto que não encontrava reciprocidade, Lara procurou focar na solução, da
forma mais objetiva possível, já que não pretendia ter filhos de um homem com
comportamentos que condenava. "Eu decidi no ato, imediatamente. Só que eu
não sabia como fazer. Sabe aquela coisa sobre a qual ninguém fala, que ninguém
sabe onde conseguir, com quem falar? Fiquei totalmente desesperada",
declarou.
Determinada, Lara
encontrou no próprio círculo social uma mulher que informou um local onde o
aborto poderia ser feito. "Essa pessoa, uma grande amiga, me indicou três
possibilidades: uma clínica em Salvador, que seria a mais cara, a compra de
medicamento pela internet, que chegaria no endereço para fazer auto-aplicação,
ou uma moça, na capital [Maceió], que fazia na casa dela", contou.
Lara conta que,
primeiramente, comprou o medicamento pela internet, mas a caixa veio vazia.
Desesperada, tentou ir a clínica em Salvador, mas não tinha todo o dinheiro
necessário. Foi então que ela resolveu recorrer à opção mais barata: uma moça
que fazia abortos na própria casa, em Maceió, e cobrava R$ 2 mil.
Ela resolveu seguir
no plano B sozinha, percorrendo, de carro, o caminho de sua cidade até Maceió.
"Eu tinha muito, muito, muito medo. Eu sabia que eu ia à casa de uma
mulher, mas não sabia o que ela ia fazer comigo. Então, a gente tem, primeiro,
o medo de morrer. Segundo, o medo de não morrer e ir para um hospital e, de
repente, ser presa ou ser submetida a algum tipo de violência e
constrangimento."
Ela conta que tremia
muito antes de chegar à casa, localizada em um bairro bem humilde da capital
alagoana. “Era uma rua bem estreitinha, os vizinhos na porta e eu pensando
comigo: 'Todo mundo sabe o que eu vim fazer aqui.' Cheguei lá e já comecei a
chorar. Ela conversou muito comigo. Ela já era uma senhora. E, pronto, aplicou
o remédio na parede do útero, me dando algumas unidades para colocar debaixo da
língua. Aí, eu fui pra casa."
Sem o efeito
esperado, Lara teve que retornar ao local, uma semana depois. "Da segunda
vez, não fez efeito. Eu fiquei desesperada. Tentamos a terceira vez e eu com
medo de tanto remédio no meu organismo, sem saber o que estava acontecendo,
muito assustada. Na terceira vez, ela me deu uma dose maior para ingerir, duas
horas depois, quando eu estivesse em casa.”
A partir disso, Lara
teve contrações que duraram nove horas e, hoje, define o sentimento associado à
experiência como alívio. "Eu estava me sentindo duplamente lesada por esse
cara. Eu tive um prejuízo financeiro de mais de R$ 15 mil e um prejuízo
emocional que não tem preço", declara.
Ambiente de elite
Jasmin*, 68 anos, foi criada em bairros nobres do Rio de Janeiro. Casada pela primeira vez aos 18 anos, já grávida de seu primogênito, ela disse que suas escolhas estavam limitadas, por valores morais impostos pela família.
Jasmin*, 68 anos, foi criada em bairros nobres do Rio de Janeiro. Casada pela primeira vez aos 18 anos, já grávida de seu primogênito, ela disse que suas escolhas estavam limitadas, por valores morais impostos pela família.
"Não quis fazer
aborto e minha solução era ou ser mãe solteira, o que, para minha família, era
pesado demais admitir na época, ou o casamento. Como era um namorado, uma
pessoa com quem tinha um relacionamento, o casamento foi uma consequência
natural, e ele queria ter o filho também. Um ano e três meses depois, eu tive
outro", revelou.
Aos 22 anos, Jasmin
recorreu a uma clínica clandestina de aborto, para interromper a gestação de
seu terceiro filho. "Eu tive duas filhas. No meu segundo casamento, a
relação já estava ruim e eu engravidei pela terceira vez. Nem meu marido, nem
eu queríamos [ter a criança]. Eu achava que não tinha muito sentido ter [um
bebê] quando tudo estava ruim", contou.
"A opção foi
fazer aborto num clima de segurança, num ambiente que atende à elite. Agora,
para mim, foi uma experiência muito traumática. Eu me arrependi depois, mas é
uma questão de foro íntimo."
Segundo ela, que foi
acompanhada de uma amiga ao endereço, também em um bairro nobre da cidade,
próximo à sua residência, o procedimento era considerado normal entre as
pessoas de sua faixa etária. "Foi um homem [quem fez o aborto]. Como era
muito caro, ele me tratou muito bem", destacou. "Quase todo mundo da
minha geração fez algum aborto."
De acordo com a
Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2016 pela Anis Instituto de Bioética,
uma em cada cinco mulheres já decidiram interromper uma gravidez não desejada.
Ela reconhece que
foi uma mulher privilegiada por conseguir se dirigir a uma clínica que, além de
preservar sua identidade, ofereceu um atendimento de qualidade. Jasmin defende
que as políticas de saúde da mulher no Brasil sejam aprimoradas, a fim de que
esse público não fique tão suscetível.
"Hoje em dia,
[a mulher] acaba tendo que fazer um aborto em que são usados métodos medievais.
Muitas vezes, as meninas morrem e são muito maltratadas quando chegam lá [ao
hospital]", afirma.
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