Prisioneiras
da violência: mulheres agredidas abrem mão da liberdade para viver
Tatiana Lagôa
Após conviver com
ataques verbais e físicos do marido, Milena* foi esfaqueada e fugiu; hoje ela
está confinada em um hotel de BH
Longe de casa, sem
contato com a família ou amigos nem autorização para sair, trabalhar ou
estudar. Confinadas por dias ou até meses. A rotina, cheia de regras, é vivida
por mulheres que precisam de acolhimento em abrigos após serem ameaçadas por
ex-companheiros. Enquanto a maior parte dos agressores vive livremente, elas
ficam trancafiadas sob tutela da Rede de Proteção às Vítimas de Violência do
Estado.
Para algumas, abrir
mão do direito de ir e vir é a única forma de não morrer. É o caso de Milena*,
de 36 anos. Escondida em um hotel na capital, custeado pelo governo mineiro,
ela é uma das prisioneiras da violência. Depois de anos convivendo com ataques
verbais e físicos do marido, foi esfaqueada e fugiu.
“Na minha cidade não
tinha abrigo. Fiquei uma semana num albergue para morador de rua. Foi horrível,
era a única mulher lá. Tinha que acordar cedo e não podia sair. Depois, me
trouxeram para BH”.
Na metrópole, Milena
também vive presa no quarto, contando o tempo para ter a liberdade de volta. O
encontro com a reportagem foi um dos raros momentos com pessoas diferentes. Ao
fim da entrevista, uma esperança surge.
Mesmo sabendo a
resposta, ela pergunta para uma das profissionais que zelam pela segurança se
poderia ir à igreja. “Fica muito perto. Assim que acabar a missa, volto
correndo. Prometo”. Não custava nada tentar. Porém, como manda o protocolo,
teve que rezar entre as quatro paredes do local onde estava há dias.
BH tem dois espaços onde é possível procurar ajudar em casos de
violência contra a mulher. Um deles é o Cerna (avenida Amazonas, 558, no
Centro. Telefone: 31-3270-3235). O local atende moradoras de todo o Estado. O
outro é o Benvinda (rua Hermilo Alves, 34, no Santa Tereza. Telefone: 31-
3277-4380). Lá, a assistência é apenas para vítimas da capital.
Alternativa
Em Minas, oito casas
fazem esse tipo de acolhimento. Elas recebem vítimas encaminhadas pela rede,
formada por delegacias, batalhões de polícia, tribunais de Justiça e
instituições municipais e estaduais. Nos esconderijos, as mulheres e os filhos
menores têm alimentação, dormitório e proteção até que se sintam prontos para
retomar a rotina.
Porém, o custo a
pagar é alto. “Quem vai para esses lugares fica com a vida muito restrita. O
monitoramento é tempo integral, não pode usar o celular, elas precisam ‘sumir
do mapa’. Em alguns casos, são até encaminhadas para outros Estados. É como se
estivessem presas mesmo”, diz a coordenadora do Centro de Atendimento Risoleta
Neves (Cerna), Lúcia Helena Apolinária.
À distância
Luíza*, de 27 anos,
sabe bem o que é ter os planos paralisados enquanto “assiste” à distância
aquele que a espancava seguir a vida. Ameaçada de morte pelo ex-namorado, que
andava armado, saiu do interior do Estado e foi recebida em um abrigo em BH.
Por cinco meses, a
jovem manteve a rotina: acordava cedo, fazia os serviços domésticos na
instituição, dividia o quarto com pessoas desconhecidas e negociava para
assistir ao canal de televisão que queria. “Uma vez comi brócolis 15 dias
seguidos, era o que tinha. Hoje não consigo nem olhar para esse alimento”.
Quando achou que
estava livre, Luíza alugou uma casa. Mas recebeu uma ligação ameaçadora do
ex-companheiro. Teve que ir, novamente para um abrigo, dessa vez com regras
ainda mais restritivas. Ela não aguentou.
A mulher preferiu
arriscar morrer do que abrir mão de viver. “Fiquei lá só 24 horas. No primeiro,
ainda podia estudar e trabalhar. Nesse último não, e eu já estava na faculdade.
Isso me deu um desespero”.
Após ficar um tempo abrigada, Luíza decidiu alugar uma casa e cursar
faculdade
Retorno à rotina
depois do isolamento ainda é desafiador
Depois do longo
isolamento, o retorno à vida é outro desafio. Muitas mulheres saem dos
alojamentos sem uma casa para onde ir nem emprego, vulneráveis emocionalmente e
com a sensação de distância do tão esperado “viver feliz para sempre”.
Após seis meses em
uma dessas casas, Luciana*, de 43 anos, começou a ser questionada se já estava
preparada para sair. “Caiu a ficha da desordem que estava minha vida”. Ela
precisou do apoio em 2016, quando decidiu dar um basta às surras diárias que
levava do marido. Ao sair de casa, Luciana perdeu a guarda dos quatro filhos.
Hoje, trabalha como ambulante nas ruas da capital e mora em uma ocupação.
Apesar da gratidão
que tem pelo abrigo, a mulher lembra que não foi uma fase fácil. “Não há
privacidade. Uma vez ganhei uma indenização e decidi comprar mercadorias para
ter uma renda. Mas como tive que passar a noite com o dinheiro, não preguei o
olho com medo de ser roubada. Você não conhece quem divide o quarto com você, e
algumas pessoas parecem muito perturbadas. Dá medo”, diz.
Centro de Atendimento Risoleta Neves atende, em média, 300 vítimas por
mês
Desafio
O desamparo após o
rompimento do ciclo de agressões desafia até mesmo as autoridades. “A Lei Maria
da Penha já foi um grande avanço, mas as políticas voltadas para coibir a
violência de gênero é muito recente. Ainda falta dar condições para que a
vítima recomece a vida”, avalia a gerente do Centro de Apoio à Mulher Benvinda,
Kate Rocha.
Mais de 50 mil ações
de violência contra a mulher tramitam no Judiciário mineiro. O número poderia
ser maior, mas a questão econômica também é um entrave. “Dentre as situações
que não chegam à Justiça estão as de vítimas que dependem financeiramente do
homem”, frisa o titular do 2º Juizado de Violência Doméstica da capital, Marcelo
Gonçalves de Paula.
Em alguns casos, diz
o magistrado, o agressor não permite que a companheira trabalhe ou estude
justamente para exercer essa influência sobre ela. Na tentativa de dar maior
suporte para as que buscam ajuda, o Plano Decenal Estadual de Políticas para as
Mulheres está sendo debatido em Minas. O documento contempla ações para serem
executadas de 2019 a 2029, segundo a coordenadora do Centro de Atendimento
Risoleta Neves (Cerna), Lúcia Helena Apolinária.
“É difícil falar de superação. Saí do abrigo há quatro meses, e olha
como estou, longe do meu filho. Moro em um cômodo sem fogão, e convivo com o
medo” (Luíza, vítima de agressão)
Denúncias
Não é apenas a
agressão física que pode ser denunciada. A Lei Maria da Penha inclui também
violências patrimonial, sexual, moral e psicológica. “É muito importante pedir
ajuda. Muitas mulheres sofrem anos caladas e aguardam chegar no nível mais
grave”, afirma a delegada da divisão Especializada de Atendimento à Mulher em
Belo Horizonte, Ana Paula Balbino. O órgão fica na avenida Augusto de Lima,
1.942, no Barro Preto, Centro-Sul da capital.
Já nos casos em que
há necessidade de acompanhamento mais de perto, a Companhia Independente de
Prevenção à Violência Doméstica, da Polícia Militar, é uma opção. “Fazemos
contato com as vítimas, visitas surpresas e contactamos o agressor”, explica a
major Cleide Barcelos dos Reis Rodrigues. De janeiro a maio, 625 famílias já
foram atendidas pela unidade.
*Nomes fictícios
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