Crise econômica se
aprofunda e trava até o trabalho por conta própria
Cássia Eponine e Tatiana Lagôa

Com um contigente recorde de 11,4 milhões de desempregados, o mercado de
trabalho brasileiro dá sinais de esgotamento do que se tornou a válvula de
escape da crise: o trabalho autônomo – também conhecido como trabalho por conta
própria.
No trimestre encerrado em maio, o número de trabalhadores por conta própria era
de 22,97 milhões de pessoas no país, 314 mil pessoas a menos do que no três
meses anteriores, ou retração de 1,3%. Foi a maior queda desde o período de
fevereiro a abril de 2014, segundo o IBGE.
O motivo mais óbvio desse encolhimento é que a crise tornou menos favorável
empreender. Trabalhadores que abriram o próprio negócio com recursos do
seguro-desemprego e o FGTS podem ter simplesmente fechado.
“A questão agora é até que ponto esse canal (do trabalho por conta própria0)
vai se estreitar. Será preciso esperar e acompanhar”, coordenador de Trabalho e
Renda do IBGE, Cimar Azeredo.
Os trabalhadores autônomos têm as mais diferentes profissões: pedreiros,
camelôs, contadores, dentistas, jornalistas. Eles não têm funcionário ou
qualquer auxiliar remunerado, segundo a metodologia do IBGE.
Uma das possíveis consequências da redução dessa válvula de escape é aumento do
número de pessoas na fila de emprego.
Frente ao mesmo período de 2015, esse tipo de ocupação (autônomo) cresceu 4,3%,
absorvendo 952 mil trabalhadores. Permanece um contingente grande, mas
insuficiente para ocupar as pessoas que perdem o emprego formal.
“O conta própria é um canal que absorve as pessoas que perdem o emprego. Quando
1,5 milhão de pessoas perdiam emprego formal, o conta-própria crescia em ritmo
igual. Isso não acontece mais. Essa saída está mais complicada”, disse Azeredo.
A taxa de desocupação ficou em 11,2% no trimestre móvel até maio, igual à
registrada no trimestre encerrado em abril. Mesmo com flexibilidade na hora da
procura, as dificuldades só crescem.
Rosângela Soares, de 25 anos, foi demitida há apenas um mês do consultório
odontológico onde trabalhava, mas já sente dificuldade para se recolocar, mesmo
com flexibilidade quanto ao tipo de trabalho. “Eu posso trabalhar de muita
coisa. Já trabalhei em casa de família, tentei ser porteira, já prestei
concurso público. Quero é trabalhar”, afirma lembrando que, em tempos de crise,
não dá para escolher o emprego.
Efeito sobre a renda
A renda média real do trabalhador foi de R$ 1.982,00 no trimestre até maio de
2016. O resultado representa queda de 2,7% em relação ao mesmo período do ano
anterior.
A massa de renda real habitual paga aos ocupados somou R$ 175,6 bilhões no
trimestre até maio, queda de 3,3% ante igual intervalo do ano passado.
Desde janeiro de 2014, o IBGE passou a divulgar a taxa de desocupação em bases
trimestrais para todo o território nacional. A nova pesquisa substitui a
Pesquisa Mensal de Emprego (PME), que abrangia apenas as seis principais
regiões metropolitanas. [PE_BIOG](Com agências)
Por que temos desemprego?
É importante para a estabilidade do sistema que a magnitude relativa das
reservas de trabalho não deve cair abaixo de um certo nível. Isto equivale a
dizer que a dimensão do "exército de trabalho de reserva" em relação
ao exército activo (ou o total) tem um piso abaixo do qual não pode cair
O desemprego tornou-se um fenómeno tão persistente nos tempos actuais
que há um sentimento comum de que se trata do estado "natural" das
coisas, que nada pode ser feito quanto a isso e de que o único meio de ter
maiores oportunidades de emprego no futuro é a oposição ao sistema de
"reservações" de emprego para os segmentos necessitados da população
ou pedir que a sua própria "casta" ou "comunidade" seja
incluída na categoria do elegíveis para tais "reservações".
Mas esta visão de que o desemprego é um estado "natural" das
coisas baseia-se ou na ignorância ou na perda de memória, pois há pouco mais de
um par de décadas havia sociedades, um grande conjunto delas, encabeçadas pela
União Soviética, que foram tão persistentemente caracterizadas por escassez de
trabalho – o que é exactamente o oposto do desemprego – que muitos volumes
foram escritos para analisar as características do seu único e notável modus
operandi. O mais célebre economista-crítico do sistema socialista da Europa do
Leste, Janos Kornai, ao analisar estas economias argumentou realmente que o
pleno emprego, ou mesmo a escassez de trabalho, era uma característica central
destas economias. Dizer simplesmente que isto se deve ao facto de termos uma
economia capitalista não é suficiente; temos de examinar os nexos causais
cuidadosamente.
NEXOS CAUSAIS
Há duas possíveis razões próximas para que exista desemprego numa
economia: ou há stock de capital inadequado para empregar toda a
gente desejosa de trabalhar, ou há procura inadequada na economia para empregar
toda a gente desejosa de trabalhar; neste último caso o desemprego deve
coexistir com stock de capital não utilizado. Dentro da primeira razão temos de
distinguir entre dois factores: pode haver inadequado capital
constante (incluindo o fixo); ou pode haver inadequado capital variável, isto
é, bens de consumo (wage-goods), para empregar toda a gente no nível
"habitual" de subsistência.
A primeira razão, de escassez de capital, nunca foi decisiva. Mesmo que
possa haver ocasiões em que tal escassez possa surgir, tal como por exemplo no
topo de algum boom (embora mesmo isso seja duvidoso), elas certamente não
explicam a existência perene de desemprego. De facto, como disse Michal
Kalecki, o eminente economista marxista polaco, "a condição típica de uma
economia capitalista desenvolvida" é que os "recursos da economia
estão longe de serem plenamente utilizados". E esta é agora a situação
mesmo de economias como a nossa onde, sob o regime neoliberal, o stock de
capital não utilizado e o excesso de stocks de cereais (o principal bem de
consumo) tornaram-se uma característica mais ou menos permanente.
A existência perene de desemprego em conjunto com stock de capital não
utilizado e de cereais não vendidos na economia indiana, na sua configuração
actual, deve portanto ser atribuída à inadequada procura agregada na economia.
A procura agregada, por sua vez, é constituída por quatro diferentes
componentes: consumo, investimento, gastos do governo e exportações
líquidas (isto é, o excesso de exportações sobre importações). Para uma dada
distribuição do rendimento, isto é, a fatia do excedente económico que vai para
as classes que se apropriam do produto total, a própria procura para consumo
depende do nível de emprego e de produto, ou seja, do nível da procura
agregada. Portanto se a procura para consumo deve ser aumentada, então
(excluindo medidas transitórias como maior crédito para consumo) a distribuição
do rendimento deve ser alterada de uma maneira igualitária, isto é, através de
um aumento da participação dos trabalhadores no produto total, ao que os
capitalistas obviamente resistiriam.
Da mesma forma, o investimento geralmente depende do crescimento
esperado do mercado. Naturalmente estas expectativas por vezes são eufóricas e
por vezes nem tanto, mas elas dificilmente podem ser "por encomenda".
E a visão de que uma redução da taxa de juro provoca aumentos significativos no
investimento não é confirmada pelos factos; o investimento é de facto bastante
insensível à taxa de juro.
A despesa governamental era considerada a principal ferramenta autónoma
através da qual a procura agregada, e com ela o produto e o emprego, podia ser
aumentada. John Maynard Keynes, o qual preocupava-se em que altos níveis de
desemprego empurrariam o capitalismo à sua ruína, e portanto advogava a
"administração da procura" pelo Estado para manter as economias
capitalistas próximas do pleno emprego como um meio de salvar o sistema, punha
as suas esperanças nestes instrumento. Mas sob o neoliberalismo, quando se
espera que governos mostrem "responsabilidade orçamental", isto é,
adaptem sua despesa à sua receita e incidam apenas num pequeno défice
orçamental que seja aceitável para a finança globalizada, este instrumento
deixou de ser importante. Se o produto é baixo, então a receita do governo é
baixa (e arrecadar maior receita através de impostos sobre os ricos é evitado
sob o neoliberalismo) e portanto a despesa do governo também é baixa, o que
significa que o produto não pode ser acrescido através deste instrumento. Ele
já não é mais um instrumento autónomo através do qual o Estado possa intervir
para elevar a procura agregada.
Finalmente, as exportações líquidas dependem do estado da economia
mundial: quando a economia mundial está em expansão, economias
individuais podem exportar mais e portanto haverá mais emprego e produção em
cada uma delas. Mas uma vez que a própria economia mundial consiste apenas de
economias individuais, ela só se pode expandir se algumas economias
individuais, nomeadamente uma grande como a dos EUA, começarem a expandir-se.
Segue-se portanto que numa configuração neoliberal o nível da procura agregada
e portanto do emprego em cada economia depende de [saber] se expectativas eufóricas
são geradas numa grande economia como os EUA, isto é, se os EUA têm uma
"bolha" ou não. A "bolha dotcom" nos EUA nos anos noventa,
assim como a "bolha habitacional" nos EUA nos primeiros anos do
século actual, foram em grande medidas responsáveis pelo crescimento da
economia mundial ao longo daquele período e portanto em última análise estão
subjacentes a qualquer geração de emprego verificada durante o regime
neoliberal no nosso próprio país. Aquelas "bolhas" estão agora
ultrapassadas e não há perspectivas de que surjam quaisquer outras
"bolhas" no futuro imediato previsível. A economia mundial continuará
portanto a estar atolada na crise e o desemprego na nossa própria economia – o
qual estava a aumentar (embora não de uma forma aberta) mesmo durante os anos
de alto crescimento – aumentará drasticamente nos próximos anos.
A conclusão que se seguiria da análise a este nível é sem dúvida
esclarecedora, mas ainda é insuficiente. Esta conclusão pode ser declarada como
se segue: se pudéssemos destacar a nossa economia da economia
global, através da imposição de controles sobre fluxos de capital para dentro e
para fora do país, como costumávamos ter nos tempos que antecederam o
neoliberalismo, e com isso tornar a política orçamental do Estado independente
das loucuras e caprichos do capital financeiro globalizado, então a
"administração da procura" como nos velhos tempos poderia ser
retomada; a procura agregada poderia ser promovida e, portanto, o emprego
poderia aumentar.
SOLUÇÃO DIRECTA
Isto certamente é verdadeiro e importante. Também constitui uma solução
directa para a crise do desemprego. Mas mesmo que isto pudesse acontecer, o
desemprego ainda não seria eliminado. Isto acontece porque uma redução no
desemprego, ou mais precisamente na magnitude das reservas de trabalho (uma vez
que o desemprego não existe apenas de uma forma aberta), fortaleceria a posição
negocial dos trabalhadores, os quais exigiriam salários monetários mais altos.
Se a exigências salariais fossem concedidas mas os preços fossem ascendidos em
consequência de tais aumentos do salário monetário, então haveria uma espiral
inflacionária pressionada pelos custos, com salários monetários e preços a
perseguirem-se um ao outro. Isto desestabilizaria o valor da moeda sob o
capitalismo. E se forem concedidas as exigências salariais e os preços não
ascendidos em consequência de tais aumentos salariais, então a fatia dos lucros
cairia, o que certamente não agradaria aos capitalistas. Portanto é importante
para a estabilidade do sistema que a magnitude relativa das reservas de
trabalho não deve cair abaixo de um certo nível. Isto equivale a dizer que a
dimensão do "exército de trabalho de reserva" em relação ao exército
activo (ou o total) tem um piso abaixo do qual não pode cair.
Se o desemprego tem de ser eliminado, isto é, se a dimensão do exército
de reserva tiver de cair abaixo deste piso, então a fixação dos preços dos
produtos não pode ser deixada às empresas capitalista (pois, como vimos,
provocaria uma espiral salários-preços). Deve então haver intervenção do Estado
na forma de uma "política de rendimentos e preços". Assim, numa tal
economia, o Estado deverá não só executar a "administração da
procura" como também empenhar-se na "administração da
distribuição". Quando, após anos a perseguir políticas keynesianas de
"administração da procura", economias capitalistas começaram a
experimentar graves espirais custos-preços, muitos governos tentaram por algum
tempo introduzir "políticas de rendimentos e preços", de modo a que
os altos níveis de emprego pudessem ser mantidos enquanto [ao mesmo tempo] a
inflação pudesse ser controlada. Mas estes esforços demonstraram-se fúteis.
A razão porque se demonstraram fúteis é que os capitalistas opuseram-se
a qualquer intervenção extensiva do Estado na economia que não fosse
intermediada por eles, isto é, uma intervenção que não lhes proporcionasse
"incentivos" para melhorar o estado da economia e sim tentativas de
fazê-lo directamente. Isto minava a legitimidade social do capitalismo: se o
Estado é tão extremamente necessário para aumentar o emprego, o povo começava a
perguntar, então porque o Estado não toma o comando da própria economia
retirando-o dos capitalistas? Para a legitimidade social do sistema é essencial
que os capitalistas devam ser encarados como indispensáveis. E para preservar
este mito a intervenção do Estado deve ser mediada através deles através da
melhoria dos seus "incentivos", promovendo seus "espíritos
animais" e a "euforia"; e assim por diante.
Voltando à questão do porque temos desemprego, segue-se portanto que sob
o capitalismo neoliberal, onde o nível de actividade exige "bolhas"
para se manter, a escassez da procura agregada como característica geral
constitui a explicação óbvia. Mas mesmo numa economia onde o Estado recapture a
sua capacidade para promover a procura agregada ao insistir na política
orçamental que deseja, por meio da tributação e do défice orçamental, a
manutenção de um alto nível de emprego exige aumento da intervenção por parte
do Estado, desde a "administração da procura" a uma "política de
rendimentos e preços", e assim por diante – o que mina a legitimidade
social do sistema capitalista e que portanto é impossível de se manter dentro
dos limites do sistema capitalista.
Dizer isto não significa que não deveríamos exigir emprego mais alto sob
o sistema existente ou que não possamos mesmo alcançar através das nossas lutas
emprego mais elevado sob o sistema existente. O que significa de facto é
exactamente o oposto, nomeadamente que uma luta persistente pelo emprego dentro
do sistema é um meio de transcender o próprio sistema. E isto constitui uma
razão todo-poderosa para o nosso empenhamento nesta luta.