A MORTE
DEVAGAR
Martha
Medeiros
“Morre lentamente quem não troca de ideias, não troca de
discurso, evita as próprias contradições.
Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos
os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de
marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre lentamente quem
faz da televisão seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um
livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem e, ainda assim alienam-se
diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não
deveria, mesmo com 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto
no branco e os pingos nos ís a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente
as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços,
sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no
trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se
permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música,
quem não acha graça de si mesmo.
Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser
depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada
dia quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na
maioria das vezes isso não é opção e, sim destino: então um governo omisso pode
matar lentamente uma boa parcela da população.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte
ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de inicia-lo, não
respondendo quando lhe indagam o que sabe.
Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e
traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados
para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia.
Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos evitar a
morte em suaves prestações, lembrando sempre, que estar vivo exige um esforço bem maior do
que simplesmente respirar”.
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