sexta-feira, 30 de julho de 2021

TRIBUNAIS GASTAM BILHÕES COM PAGAMENTO DE PENDURICALHOS

 

Por
Lúcio Vaz – Gazeta do Povo

Fachada do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre.| Foto: Diego Beck/TRF4

Os tribunais de Justiça aproveitaram a “sobra de caixa” durante a pandemia e pagaram R$ 2,3 bilhões a juízes com “penduricalhos” como retroativos, indenização de férias e exercício cumulativo. Dinheiro suficiente para comprar 45 milhões de doses de vacina. Em dezembro do ano passado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (JMG) pagou numa bolada R$ 104 milhões de retroativos. Naquele mês, 600 magistrados tiveram renda bruta acima de R$ 200 mil. O juiz José de Anchieta recebeu R$ 618 mil – o equivalente a 2,5 mil auxílios-emergenciais.

Os maiores pagamentos foram feitos pelo TJMG – cerca de R$ 400 milhões, sendo R$ 326 com retroativos e R$ 75 milhões com indenização de férias. No mesmo mês, os Tribunais Regionais Federais pagaram mais RR 129 milhões em retroativos. A desembargadora Silvia Maria Goraieb, do TRF4, teve renda bruta de R$ 482 mil. O desembargador Leonardo Meurer Brasil, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, recebeu R$ 573 mil, sendo R$ 520 mil de retroativos – gerados por dívidas antigas dos tribunais para com os juízes. São pagos quando há sobras no orçamento.

Na soma dos 30 maiores tribunais – incluindo os tribunais de Justiça dos estados, regionais federais e do trabalho – as despesas com pagamentos retroativos somaram R$ 810 milhões de março de 2020 a junho deste ano. Os gastos com indenização de férias chegaram a R$ 525 milhões. As gratificações por exercício cumulativo somaram R$ 509 milhões, enquanto as substituições renderam R$ 103 milhões.


Boladas de R$ 300 mil no TJMG
O maior volume de pagamentos extras no TJMG durante a pandemia foi de retroativos – R$ 326 milhões. O tribunal afirmou ao blog que os pagamentos efetuados nas folhas de dezembro de 2020 (R$ 104 milhões) e abril de 2021 (R$$ 96 milhões) referem-se à Parcela de Equivalência Salarial (PAE) – correspondente ao valor do auxílio-moradia pagos aos parlamentares federais, entre setembro de 1994 a dezembro de 1997, e estendido aos magistrados.

Cerca de 20 desembargadores aposentados do TJMG receberam mais de R$ 600 mil em retroativos de março de 2020 a junho de 2021. Luiz Carlos Biasutti levou R$ 681 mil. Paulo Tinoco, 690 mil; e Caenato Carelos, R$ 729 mil.

As maiores “boladas” num único mês resultaram das indenizações de férias-prêmio. O juiz Célio Marcelino da Silva recebeu um total de R$ 390 mil com essas indenizações, sendo R$ 350 mil em março deste ano. Naquele mês, ele recebeu R$ 426 mil bruto e R$ 411 mil líquido. Como a maior parte é relativa a indenizações, pagou apenas R$ 6,4 mil de imposto de renda. O juiz Calvino Campos ganhou R$ 389 mil de férias prêmio, sendo R$ 336 mil em novembro de novembro de 2020. A sua renda bruta chegou a R$ 426 mil bruto e R$ 409 mil líquido.

O juiz José de Anchieta foi recordista de renda bruta (R$ 618 mil) porque recebeu R$ 334 mil de férias-prêmio, R$ 189 mil de retroativos e R$ 19,6 mil de indenização de férias em dezembro do ano passado. O seu subsídio (salário base) é de R$ 35,5 mil. A renda líquida naquele mês foi de R$ 575 mil.


Pagamento de férias é rotina
O TJMG afirmou que a PAE é um “passivo devidamente reconhecido, conforme previsão legal, que vem sendo pago, parceladamente, observada a disponibilidade orçamentária/financeira deste tribunal”. O tribunal acrescentou que “a suspensão de férias regulamentares neste tribunal ocorre por imperiosa necessidade e conveniência do serviço público e, não havendo possibilidade de fruição, são indenizadas”, observada a legislação (Resolução 133/2011 do CNJ e Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e a disponibilidade orçamentária/financeira do Tribunal.

Em resposta enviada ao blog em abril do ano passado, o TJMG afirmou que “a conversão de férias e/ou férias-prêmio em pagamento em espécie está prevista na legislação e é efetuada rotineiramente pelo TJMG, mediante requerimento dos magistrados. É comum, ainda, que alguns magistrados acumulem as férias-prêmio a que têm direito ao longo da carreira para receberem junto com o ato da aposentadoria, o que gera, eventualmente, valores mais expressivos”.


A gastança da Justiça Federal
Os cinco Tribunais Regionais Federais também gastaram bastante com penduricalhos durante a pandemia – um total de R$ 427 milhões. A maior parte foi aplicada em gratificações por exercício cumulativo (R$ 266 milhões) e nos pagamentos retroativos (R$ 133 milhões), onde foram registradas as maiores “boladas”.

Em dezembro do ano passado, 206 magistrados do TRF da 4ª Região receberam um total de R$ 30 milhões em retroativos. A desembargadora aposentada Silvia Maria Goraieb recebeu R$ 412 mil. A sua renda bruta chegou a R$ 482 mil, mas pagou R$ 111 mil de imposto de renda.

No mesmo mês, no TRF da 3ª Região, 183 magistrados receberam um total de R$ 31 milhões em retroativos. Trinta e dois pagamentos foram acima de R$ 200 mil. O desembargador aposentado Fábio Prieto de Souza recebeu R$ 399 mil. A sua renda bruta chegou a R$ 434 mil.

No TRF da 2ª Região, o desembargador Aluísio Gonçalves de Castro Mendes recebeu R$ 338 mil em dezembro do ano passado. Sua renda bruta alcançou R$ 400 mil, mas o “leão” comeu R$ 58 mil. Nesse TRF, 116 magistrados receberam um total de R$ 20,9 milhões naquele mês – quase a totalidade de tudo o que foi pago desde setembro de 2017 – R$ R$ 22,1 milhões com retroativos.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) gastou R$ 160 milhões com retroativos e R$ 127 milhões com indenizações de férias. O tribunal afirmou ao blog que os pagamentos retroativos se referem às diferenças salariais não recebidas à época em que foram reconhecidas. “À vista das restrições orçamentárias do Judiciário paulista, os pagamentos de valores devidos são realizados de forma parcelada. Vale ressaltar que, dentre as medidas adotadas pelo TJSP para o enfrentamento da pandemia do coronavírus, foi determinada a redução de 50% nos pagamentos de verbas retroativas creditadas aos magistrados e servidores, no período de 8 meses (maio a dezembro de 2020).

O tribunal acrescentou que o acúmulo de saldo de férias se deve pelo “indeferimento de seu usufruto por absoluta necessidade de serviço. Assim como as verbas retroativas, os pagamentos são efetuados de forma parcelada por conta das restrições orçamentárias, de modo que os pagamentos de férias também sofreram corte de 50% no período de maio a dezembro de 2020”.


De onde vêm as “sobras”
Os TRFs foram questionados por que esses pagamentos extras foram concentrados justamente no período da pandemia da Covid-19. O TRF5 afirmou que alguns casos, dependem de “sobra orçamentária” do tribunal e das seções judiciárias: “No caso do TRF5, essa sobra orçamentária foi possível devido ao regime de teletrabalho adotado durante a pandemia. Por estarem trabalhando de suas residências, magistrados e servidores colaboraram com uma economia bastante significativa nas despesas administrativas das unidades judiciárias da 5ª Região”.

Pesquisa elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que o Poder Judiciário, em 2020, gastou R$ 2,98 bilhões com contratos de vigilância, limpeza, água e esgoto, energia elétrica, motoristas, manutenção de veículos, impressões e telefonia; com compras de papel, água envasada e copo descartável.

Em 2019, os gastos haviam chegado a R$ 3,5 bilhões. Assim, houve uma economia de R$ 541 milhões em 2020 – 15,4% em comparação ao gasto do ano anterior. É bem menos do que foi gasto com os penduricalhos, mas ainda daria para comprar mais de 10 milhões de doses de vacina.

Como exemplo, o consumo de papel em 2020 ficou em 507 milhões de folhas – uma redução de 679 milhões de folhas em relação ao ano anterior. O gasto com água mineral caiu de R$ 15 milhões para R$ 6 milhões. O consumo de energia elétrica caiu de R$ 824 milhões para R$ 591 milhões. As despesas com serviços de limpeza caíram de R$ 915 milhões para R$ 813 milhões. Os gastos com contratos de vigilância, de R$ 1,04 bilhão para R$ 958 milhões.


Economia teria permitido pagamentos
O TRF5 afirmou que “foi justamente essa economia que possibilitou o pagamento de despesas de exercícios anteriores que se encontravam pendentes de liquidação até dezembro/2020, bem como grandes investimentos na área de tecnologia da informação, que garantiram o trabalho remoto e a não interrupção dos serviços prestados aos cidadãos”.

Sobre os R$ 33 milhões gastos com gratificação por exercício cumulativo, o TRF5 afirmou que existem 68 cargos vagos na 5ª região, que não podem ser preenchidos por maio de concurso: “O acúmulo de funções ocorre em razão disso”.

O TRF3 justificou o acúmulo de pagamentos de retroativos em dezembro de 2020. Afirmou ao blog que o CNJ liberou naquele mês o orçamento para o Poder Judiciário quitar o retroativo da PAE. “Essas parcelas deveriam ter sido pagas anteriormente.

O blog perguntou ao TRF2 por que houve essa concentração de pagamentos no final de 2020. O tribunal respondeu que o pagamento de eventuais passivos administrativos devidos a servidores e magistrados é realizado de acordo com normas do Conselho da Justiça Federal (CJF). “Ocorre que, desde 2018, nenhum pagamento neste sentido ocorreu, gerando o acúmulo dos passivos administrativos citados. Somente em dezembro de 2020, três anos após o último pagamento, o CJF efetuou a liberação dos recursos financeiros para dar quitação aos passivos devidos”.


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É PRECISO TOLERAR A DESISTÊNCIA

 

Por
Luís Ernesto Lacombe – Gazeta do Povo

A ginasta Simone Biles antes do salto sobre a mesa, única prova de que participou na final olímpica por equipes.| Foto: EFE/EPA/How Hwee Young

Fui um atleta errático, confesso. Gostava mais do aspecto lúdico do esporte, do divertimento, do convívio com os companheiros de tatames, quadras, raias… Andei por muitas modalidades, tendo levado mais a sério a vela, com passagens por três classes. Foram os plantões como jornalista nos fins de semana que me afastaram de vez desse esporte. E foi o jornalismo que me aproximou dos atletas de alto nível, olímpicos, quase semideuses. Por muitos anos, mergulhei na história de supercampeões, e nenhum deles me falou de um caminho coberto por pétalas de rosa, de vitórias que não tenham sido construídas sobre derrotas, muita dor e muito sofrimento.

É uma gente diferente. O que nós, pessoas comuns, precisamos ter em doses mínimas esses atletas têm em doses cavalares: talento, determinação, disciplina, entrega, resistência, superação, garra, técnica, força… São, o tempo inteiro, competidores, é a competição que os alimenta, que os move. Querem ser, a cada dia, melhores do que eles próprios, querem ser melhores do que todos os outros. É natural neles, é legítimo, não há como condená-los por isso, nem pelo desejo nem pela proporção. Eu também quero me superar e superar os outros, mas, num nível olímpico, isso é mesmo para poucos.

É irreal um mundo sem competição, sem meritocracia, seria como um esporte em que só fossem distribuídos prêmios de consolação

A questão é que continuam sendo pessoas aqueles que buscam um lugar no Olimpo, estão sujeitos a esbarrar em limites, técnicos, físicos, emocionais… Nem todos querem se arrastar até a linha de chegada, nem todos veem nisso uma vitória. É uma questão pessoal, interna. Até grandes atletas podem querer, podem decidir se afastar, mesmo que momentaneamente, do peso da competição. Fato é que jamais viveremos longe dela, e relativizar vitórias e derrotas, isso também tem seu limite.

Não sei que gerações sucederão à minha, com tanta gente nova levada ao coitadismo, ao vitimismo, protegida insanamente e falsamente, claro, de dores e sofrimento. É preciso tolerar a desistência, mas não enxergar nela um ato de bravura, coragem e heroísmo. A vida tem fardos, e há desejos que não serão realizados. A perfeição sempre escapará, o que se deve buscar é o mérito. E nunca será fácil, ninguém falou que seria. É irreal um mundo sem competição, sem meritocracia, seria como um esporte em que só fossem distribuídos prêmios de consolação. Um mundo sem derrotas é um mundo sem vitórias. E um mundo feito apenas de empates jamais existirá.


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ATIVIDADE ECONÔMICA AUMENTA E OS EMPREGOS TAMBÉM AUMENTAM

 

Economia

Por
Alexandre Garcia – Gazeta do Povo

Reforma trabalhista completa um ano, mas geração de empregos é baixa. A reforma trabalhista passou pelo Congresso Nacional com a garantia que a modernização das leis que regem o mercado de trabalho era necessária para que o país voltasse a gerar empregos e reduzir a informalidade. Foi aprovada em julho do ano passado e passou a valer em novembro. Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Caged, do Ministério do Trabalho, com as novas regras foram criados 372,7 mil postos de empregos formais em todo país. Na foto: Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). Foto: Ana Volpe/Agência Senado

Somente em junho foram criados 309.114 postos de trabalho formais.| Foto: Ana Volpe/Agência Senado

O presidente Jair Bolsonaro vai a Presidente Prudente neste sábado (31). Presidente Prudente é uma cidade da pecuária, com um grande parque onde se realizam exposições fantásticas. O prefeito, que é do Partido Socialista Brasileiro, organizou uma recepção para o presidente neste parque.

No entanto, o Ministério Público reclamou e um juiz da Vara da Fazenda proibiu a manifestação. O juiz argumentou que e evento tem que se enquadrar nas ordens do Governo de São Paulo, do governador João Doria, que proíbe aglomerações.

Esta decisão aconteceu no mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) fez um publicação dizendo que é falso que tenha tirado poderes do presidente da República para atuar na pandemia. Isso o Supremo disse, pôs na rede social. Então, Bolsonaro pode chegar lá em Presidente Prudente e dizer “não, eu baixei um decreto dizendo que está valendo aglomeração, e a manifestação aqui no parque”.

Será que pode? Não. Porque o Supremo decidiu em abril do ano passado, com nove ministros presentes, que o presidente não pode atropelar competências federativas. E que as normas gerais da União devem prestigiar a legislação local. Os Estados e Municípios podem estabelecer quais são as atividades essenciais.

O exercício da competência da União tem que resguardar a autonomia dos demais entes federativos, não pode definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos sem observar a autonomia dos entes locais porque isso afrontaria o princípio de separação dos poderes.

Ou seja, o que o Supremo está dizendo é um sofismo porque afirma que “não, o presidente não foi proibido de nada, ele só não pode contrariar governadores e prefeitos, inclusive em questões de cláusulas pétreas da Constituição”. A Corte chegou a dizer que prefeitos podem afrontar a liberdade de culto, o direito de reunião, o direito de ir e vir e o direito ao trabalho, que está tudo no artigo 5º.

Mas, na hora em que o Poder Executivo entrou no STF dizendo “poxa, mas espera aí, a Constituição dá todos esses direitos pétreos”, recebeu como resposta um “não”. Faz tempo que não entendemos o Supremo.

Qual será o desfecho do caso Joice
Mulheres acabaram de esclarecer os mistérios envolvendo a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP). Eu vi uma demonstração claríssima disso com a Bárbara, do “Te atualizei”. Ela comparou a primeira versão dada por Joice em entrevista ao SBT, com as outras versões que ela vem, sucessivamente, apresentando em outras entrevistas.

A Bárbara concluiu que Joice está protegendo alguém, escondendo alguma coisa ou alguém. Ela, supostamente vítima, estaria protegendo alguém. Ouvi também outra entrevista, desta vez da deputada Janaína Pascoal, dizendo que não queria entrar neste assunto, porque é uma questão íntima.

Segundo ela, não dá para ter a Polícia Federal ou o Ministério Público Federal envolvidos no caso, justamente por ser uma questão íntima. Aí eu lembrei: “Delegacia da Mulher”. Fico pensando: “elementar, caro Watson”.

Emprego tem saldo positivo
Os dados divulgados nesta quarta-feira (28) sobre emprego são uma consequência da recuperação da atividade econômica. Foram 309 mil novos empregos de carteira assinada no mês de junho.

Mais de 1,5 milhão de recuperação, de saldo, entre demissões e admissões no primeiro semestre. Este é o melhor resultado da recuperação da economia. A volta da renda a pessoas que ficaram desempregadas, ficaram na rua, depois da campanha que se fez para fechar tudo.


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CPI DA COVID UM VERDADEIRO DESASTRE LEGISLATIVO

 

Opinião
Por
J.R. Guzzo – Gazeta do Povo

Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia (CPIPANDEMIA) realiza oitiva do ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. Ele foi exonerado do cargo em junho, depois da denúncia de que teria pedido propina para autorizar a compra da vacina AstraZeneca pelo governo federal. Mesa: vice-presidente da CPIPANDEMIA, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP); presidente da CPIPANDEMIA, senador Omar Aziz (PSD-AM); relator da CPIPANDEMIA, senador Renan Calheiros (MDB-AL). Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Trio que dirige a CPI da Pandemia no Senado se reúne| Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Se o Brasil tivesse instituições que valessem uma nota de 2 reais, e políticos com a qualidade profissional de um flanelinha, não teria acontecido uma aberração tão miserável como essa CPI da Covid. Tendo acontecido, não poderia ter nomeado um presidente investigado por corrupção alguns anos atrás pela Polícia Federal – sua própria mulher e três irmãos foram para a cadeia sob a acusação de meterem a mão em verbas da saúde. Também não teria um relator como esse que está aí, com nove processos penais no lombo e a fama pública de ser um dos políticos mais enrolados do Brasil diante das leis criminais. Não poderia, igualmente, ter como vice-presidente um indivíduo que não entendeu até agora o que é uma investigação parlamentar séria, que já deu provas repetidas de histeria e trata como criminosos e inimigos da pátria todos os depoentes que fazem parte da sua listinha negra pessoal.

A CPI do Senado não investiga nada – existe unicamente para a mídia e a oposição conduzirem, há três meses, um show contra o governo. Centenas de depoimentos, diligências, perícias e tudo o mais foram se amontoando uns sobre os outros sem deixar claro, com um mínimo de competência no trabalho investigatório, o que houve realmente de errado, quem errou, quando, onde, no que e como. Não há um único inquérito penal que possa levar à condenação de alguém, mesmo porque não há nenhuma prova decente a respeito de nada ou de alguém até agora. Milhões de reais de dinheiro público são queimados em troca de literalmente coisa nenhuma.

O vice-presidente da CPI, que desde o começo do espetáculo quis disputar a boca de cena com os outros dois, parece ter encontrado de algum tempo para cá o papel que mais lhe satisfaz; talvez, sem saber, esteja tendo a grande oportunidade de colocar para fora, à vista de todos, o que realmente sempre quis ser e até agora esteve escondido nas dobras da sua estrutura psicológica. Está se revelando, talvez mais que os outros, um policialzinho frustrado e subitamente portador de uma farda desses – que sempre sonhou com um revólver na cinta e uma carteirinha escrita “Polícia”, para intimidar as pessoas e se comportar como o pequeno ditador de quarteirão que tanta gente conhece e lamenta.

Nada deixa o senador mais feliz do que chamar os jornalistas para ameaçar alguém de prisão – como no caso de um empresário acusado por ele de “evadir-se”, para não comparecer à um interrogatório na delegacia de polícia que está armada no Senado Federal. É o seu jeito de ser “autoridade” – através da repressão, como sonha boa parte da esquerda neste país. É o seu jeito de aparecer no noticiário. É um retrato acabado desta CPI.


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STF ENTRA EM COLISÃO COM O EXECUTIVO

 

STF x Bolsonaro

Por
Madeleine Lacsko – Gazeta do Povo

Estátua A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, praça dos três poderes, Fachada do Supremo Tribunal Federal (STF)

STF publicou hoje em suas redes vídeo que tenta desmentir Fake News, mas a emenda fica pior que o soneto.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Eu estava toda radiante com a medalha de prata da Rebeca Andrade, daí me mandaram um link com uma postagem do STF. E eu só fiquei pensando por que cargas d’água alguém resolve cometer um desatino desses e justo hoje. Posto aqui o vídeo e depois explico por que é inadequado institucionalmente e completamente arcaico e ineficiente sob o ponto de vista técnico.

Fiz parte da equipe que criou as redes sociais do STF, durante a presidência do ministro Gilmar Mendes, entre 2008 e 2009. A documentação interna produzida pela equipe para atuação nesses canais tinha a maior preocupação com institucionalidade. Ali não é o canal do Felipe Neto ou do MBL, é a Suprema Corte de um país. Aliás, fosse canal de YouTubber, pelo menos a edição, sonorização e locução do vídeo postado hoje seriam mais profissionais.

Há um conceito que aprendi naquela oportunidade profissional, o da magnanimidade na posição institucional. Ministros do STF são pessoas e, embora não seja o que se espera deles, podem entrar em embates pessoais de todo tipo de natureza, inclusive pela imprensa. A Suprema Corte de um país jamais entra em bate-boca ou intitula-se dona da verdade. É um caminho kamikaze numa hora grave.

A magnanimidade é o posicionamento necessário tendo em vista que o STF deve ser o guardião da Constituição Federal e é peça chave no sistema de freios e contrapesos dos Poderes da República. É fato que há uso político da disseminação de uma mentira sobre decisão do STF. No entanto, uma investida atabalhoada e pouco institucional só piora as coisas.

O presidente da República adotou a lenha botada na fogueira e já jogou mais gasolina. Diz que o STF cometeu crime. Ou seja, o STF virou ator político e o presidente da República virou juiz. Você pode odiar o STF e os ministros, mas a instituição Suprema Corte é o que garante o equilíbrio de um sistema político.

Num exemplo prático: qual a diferença entre a Venezuela e a Bolívia? Hugo Chávez conseguiu convencer o povo a implodir o “STF” deles, Evo Morales tentou mas não conseguiu. A Suprema Corte venezuelana tinha problemas sim, aliás bem piores que os nossos. Ocorre que poder não admite vácuo. Assim que se retiram os freios e contrapesos, os políticos ocupam este espaço de poder sem pedir licença. O resultado é sempre imprevisível.

O vídeo começa dizendo uma frase do propagandista do nazismo, Joseph Goebbels: uma mentira repetida mil vezes vira verdade. Questiona a afirmação e responde de forma absolutamente pueril que isso não acontece. Então não aconteceu no Holocausto? As mentiras repetidas mil vezes não viraram verdade? Seria cômico se não fosse trágico.

Termina com uma hashtag que nem sei como comentar, foi como jogar álcool em gel nos meus olhos: #VerdadesDoSTF. Em primeiro lugar, o STF não decide o que é verdade, decide o que é constitucional. Depois, o STF não é dono da verdade. A hashtag pode induzir a leitura dúbia, a de que alguns fatos seriam verdadeiros só para o STF.

O grande problema do vídeo, no entanto é o negacionismo científico. Há publicações científicas mostrando que duas coisas não funcionam na era da Cidadania Digital, a que vivemos hoje:

  1. Contrapor fatos para estabelecer a verdade em grupos que já divulgam Fake News.
  2. Utilizar interlocutores em que um grupo não confia para constestar suas “verdades absolutas”.
    O vídeo do STF faz as duas coisas e com dinheiro público.

Fosse uma peça poderosa de comunicação, capaz de acabar com a lenda urbana mentirosa do STF tirando poderes do presidente da República, talvez até valesse avaliar o risco institucional. Ocorre que a peça é um tiro no pé, só serve para gerar mais suspeição sobre a Suprema Corte nos grupos que já não simpatizam com ela.

Isso não sou eu quem estou dizendo, é a ciência. Ignorar fatos científicos porque eles não encaixam na nossa narrativa nunca acaba bem. Todo mundo tem um amigo ou parente que entrou em paranóia por causa de grupo de Whatsapp ou de internet. Eles cismam com uma coisa e danem-se os fatos. Na comunicação há um grupo parecido, aquele que acredita na possibilildade de desmontar Fake News com fact checking.

A ineficácia de fact checking para quem acredita ou compartilha Fake News é um fato científico, não uma opinião minha ou de outra pessoa. Poderia passar o dia empilhando estudos feitos com método científico que comprovam este fato. Vários deles estão compilados no livro Psychology of Fake News, da editora Routledge, que custa quase mil reais mas está de graça no Kindle do Brasil.

Como já trouxe aqui na coluna o último estudo do Jay Van Bavel sobre o tema, além de inúmeros outros, trago hoje o da Briony Swire-Thompson. Ela é uma pesquisadora das universidades Northwestern e Harvard dedicada exclusivamente a compreender por que algumas pessoas não podem ser convencidas por fatos e quais as melhores formas de abrir os olhos desses indivíduos para a realidade.

O estudo publicado há 15 dias traz novidades sobre as formas de trazer à realidade pessoas que acreditam em Fake News. Um ponto importante é que desinformação depende da formação de um grupo fechado. Pessoas que não são respeitadas pelo grupo simplesmente não serão ouvidas. O STF não será ouvido pelas pessoas que distorcem o resultado de um julgamento. É necessário outro interlocutor.

Além disso, falar antes a desinformação para depois corrigir dificulta o processo cognitivo da correção pelo fenômeno da familiaridade. Explico. O vídeo utiliza a negação “é falso que o Supremo tenha tirado poderes do presidente da República”. Quem acredita nisso vai ouvir “Supremo tirado poderes” e “presidente da República”. O cérebro registra como um conceito familiar e a pessoa agarra-se ainda mais a essa convicção. Familiaridade é mais importante do que os fatos. Campanhas de convencimento utilizam frases afirmativas sempre.

O estudo chamado “Os efeitos de tiro pela culatra após a correção da desinformação estão fortemente associados à confiabilidade” diz que checadores de fatos jamais devem evitar publicar a checagem ou compartilhar com um grupo. É importante que os fatos sejam colocados e a maioria da sociedade tem abertura para evoluir em posicionamentos individuais quando percebe que a questão é mais complexa ou descobre novos fatos. Ocorre que o STF não tem a reputação social de checador de fatos, é de Suprema Corte mesmo, de quem delibera, opina.

Desmentir informações chama-se “debunking” no jargão técnico. É muito menos eficiente em esquemas de desinformação do que o “prebunking”, algo que não foi feito. A vacina aqui é mais eficiente que remédio porque o remédio até cura, mas não impede sequelas. É impossível prevenir que se crie uma mentira sobre uma pessoa, um fato ou uma instituição. Restabelecer a verdade, no entanto, não se faz no grito nem no improviso.

Os Poderes da República entram numa guerra infantil sobre quem tem razão e colocam-se uns contra os outros de uma forma cada vez mais assustadora. Não importa quem começou a briga, importa quem entrou nela sem lembrar da responsabilidade que tem. Aprendi em Angola um ditado que nos serve agora: “em briga de elefante, quem sofre é o capim”.


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quinta-feira, 29 de julho de 2021

GAMERS E AS CRIANÇAS

Cyberespaço

Por
Madeleine Lacsko – Gazeta do Povo

| Foto: Unsplash / Reprodução

Preciso começar respondendo a pergunta: quem são os gamers? Quase todo mundo. É gente de todas as idades, países, classes sociais, ideologias e religiões. Estima-se que há 2 bilhões e 700 milhões de gamers no mundo. Eu tenho um em casa e você deve ter também. Ano passado, a indústria de games faturou US$ 179 bilhões, mais que a combinação de Hollywood com a indústria esportiva dos EUA.

O que vemos ser chamado de “gamer” é uma visão estereotipada, que tem como base os grupos sociais vistos como mais fanáticos por videogame. Conheço senhoras de tailleur mais fanáticas e dedicadas, mas a ideia de “gamer” está no nosso imaginário, é algo parecido com a nossa sensação diante da palavra YouTubber. Sabemos racionalmente que é gente de todo tipo, mas formamos um estereótipo.

É justamente nesse estereótipo do gamer que estão interessadas a grande mídia e tudo quanto é político, não nos gamers em si. Talvez imaginem que podem atrair a pujança e a abundância de uma indústria que só cresce inserindo games de qualquer forma tosca no contexto. Às vezes dá certo.

Foi o caso do Gamergate, nos Estados Unidos. Já havia uma confusão enorme entre os gamers mais badalados, produtores de jogos, jornalistas de games e streamers. Ao resolver apoiar com seu Breitbart News o lado dos gamers, e não das mulheres atacadas, ganhou aderência política no grupo.

A vantagem de ter apoio dos gamers mais badalados, seja na política ou na mídia, é que eles sabem como funciona a internet e o poder psicológico da manipulação online. Desde o Gamergate até hoje, as técnicas para subjugar a vontade e a pauta dos grandes formadores de opinião é a mesma. Funciona há 8 anos e continuará funcionando porque o mainstream subestima a inteligência e o poder dos gamers.

Sou da época em que se fazia a discussão arcaica sobre a relação entre games violentos e comportamentos violentos. Muita coisa mudou. Antes, a gente jogava só ou com pessoas no mesmo aparelho. Hoje, é possível formar comunidades enormes e jogar junto com diversas pessoas ao redor do mundo. O balanço entre socialização e dedicação aos games passou a ser a baliza da sanidade.

Gamers que já têm uma vida social satisfatória, gostam dos jogos e querem conhecer mais pessoas tendem a ter melhora na sociabilidade, cognição, rapidez de raciocínio e coordenação motora. Isso com qualquer jogo. O problema está nas pessoas que precisam do estilo de vida que a sociedade estereotipou como gamer para construir sua identidade social. Conseguirão criar uma persona e viver essa fantasia o tempo todo.

Agora também estamos diante de uma questão geracional. O universo gamer une, em fóruns fechados, adultos e crianças. Como proteger as crianças? Hoje, a idade média do gamer é 34 anos. Os maiores de 50 anos são 26% do público e os menores de 18 anos são 25%. Ocorre que, entre crianças e adolescentes, 97% jogam frequentemente e o tempo de uso de games é maior.

Videogames são armas poderosas, não são brinquedos. Foram criados inicialmente para dessensibilizar soldados que seriam mandados à II Guerra Mundial. Os jogos preferidos das crianças são aqueles que conectam o grupo todo e possibilitam vivências em que eles formam times ou equipes. Brincam juntos e resolvem conflitos entre si, o que foi excelente para a socialização durante a pandemia.

A abordagem das crianças sobre os games é diferente porque trata-se da primeira geração genuinamente digital, que enxerga o cyberespaço como parte da vida, não como universo à parte. É um recurso para socializar com os amigos, desafiar-se e divertir-se em qualquer hora e lugar. Os problemas estão em quem tem toda sua vida, socialização e identidade girando em torno do universo gamer. São os que fazem o caminho inverso, começam nos games e vêem a vida como auxiliar.

Adultos e crianças já estão no mesmo espaço na vida real. Minha geração sumia de manhã para brincar na rua sem celular. Agora é a mesma coisa, mas sem altercações físicas e joelhos ralados. A turma está junta no game e os pais não fazem a menor ideia de onde eles estão nem o que estão fazendo. É saudável e normal do crescimento. O problema sempre foi quando um adulto desconhecido quer se enfiar no grupo de crianças sem autorização dos pais. Continua sendo.

A diferença é que a minha geração sabia muito bem o que dava status e poder para adultos e como eles podem manipular as crianças. A nossa enfrenta um desafio complicado. Não compreendemos quem são os adultos cuja vida e identidade foram construídas em torno da vivência gamer. É muito diferente de jogar e até de jogar muito e ser apaixonado, é de só entender o próprio valor humano neste universo.

Crianças amam games porque é a possibilidade de brincar e interagir o tempo todo com os amigos. Quase todos jogam e é sinônimo de socialização. Já os adultos que adotam o estereótipo do gamer como identidade são justamente esses apontados como mais provavelmente problemáticos. O que acontece quando damos poder a esses adultos no mundo real, com base naquilo que representam no universo gamer?

O SBT criou recentemente um programa com gamers. Jair Bolsonaro tem seus gamers. Depois Boulos também. Agora Lula e Ciro terão seus gamers de estimação. Todos são adultos e não é possível saber o que farão tendo poder sobre crianças. Já vi um pregando assassinato de adversários políticos. Agora surgiu o que usa o poder para abusar sexualmente de menores.

O influenciador de Fortnite Raulzito já tinha status neste nicho específico, dos gamers e streamers. Ganhou a chance de brilhar no mainstream e transformou isso em poder. Segundo denúncias feitas por várias mães à Polícia Civil de Santa Catarina, a fama facilitava sua aproximação de atores mirins com idades entre 10 e 14 anos. Ele prometia que iriam trabalhar na televisão como desculpa para aproximar-se deles. Está preso inicialmente por 30 dias.

Em janeiro deste ano, aconteceu algo parecido com o time de LoL do Flamengo Sports. Guilherme “Kake” Braga foi banido após acusações de assédio sexual. No mesmo dia, outra estrela do LoL, Gabriel “MiT” Souza também foi acusado da mesma prática, caso que é debatido na Justiça até hoje.

Foi um 5 de janeiro inesquecível para os gamers. Houve ainda mais uma acusação, essa envolvendo algo que pode acontecer em todas as melhores famílias. Uma moça de 16 anos relatou que um gamer famoso e maior de idade teve conversas sexuais com ela quanto tinha 15. Giselle Esquina postou as conversas que teve com Filipe “pancc” Martins.

Sabe aquelas histórias que a gente sempre ouviu de famoso utilizando o poder que tem para seduzir menores que nem imaginam tratar-se de um abuso? Isso pode entrar em casa agora. Estamos preparados para proteger as crianças ou ainda temos uma mentalidade analógica que não enxerga esse problema? Segundo o Conselho de Direitos Humanos da ONU, é preciso avançar muito ainda.

Hoje, a identidade de uma pessoa começa a ser construída quando a gente compartilha a foto do bebê após o parto. Pode ser com a família, pode ser com o mundo todo. Temos de começar a pensar na importância da privacidade e da preservação da imagem das crianças. Não são elas quem optam pela exposição, isso é feito por quem deveria resguardá-las.

Longe de mim condenar quem quer mostrar seu bebê maravilhoso para todo o mundo. Eu sei como é ser mãe, dá a impressão de que ninguém nunca teve filho antes. Ocorre que estamos diante de um mundo cuja lógica de relacionamentos e memórias é regida por uma tecnologia ainda nova para nós. Precisamos pensar no impacto das nossas ações na construção da história dos nossos filhos. Hoje, tudo se constrói também online.

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O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES (PARTE 1)

 

Por
Flavio Gordon

Imagem ilustrativa.| Foto: rperucho/Pixabay


“O Cristianismo é a religião das religiões porque, em sua plenitude, esclarece e revela a natureza, a essência peculiar, de todo sistema religioso” (M. Bakunin)

O sentido usual da palavra “religião”, compreendida como esfera autônoma em relação a outros domínios (política, ciência, economia etc.), e sobretudo como questão de escolha individual e privada, tem origem cristã. Encontramo-lo, por exemplo, num dos mais antigos e originais documentos de apologética cristã, a Epístola a Diogneto, texto de autoria desconhecida, provavelmente endereçado ao imperador Adriano, arconte de Atenas por volta do ano 120 d.C., que demonstrara curiosidade crescente pela maneira com que os cristãos aparentavam desprezar o mundo, não temer a morte e os deuses pagãos. Em atenção à perplexidade de Adriano, o cristão anônimo autor da epístola descreve a própria religião nos seguintes termos:

“Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por sua língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e a especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em casas gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis”.

A ideia de “ultrapassar as leis” seria absolutamente impensável no universo religioso greco-romano, como também nas demais religiões abrâamicas, mais baseadas na lei do que na fé. Temos aí sistemas religiosos totais, nos quais a lei transcendente se aplica a todos os aspectos do mundo dos homens, tanto ao nível individual quanto ao coletivo. Incide sobre a vida privada e familiar, sobre a prece, sobre os rituais, sobre as normas de etiqueta, sobre os negócios, sobre a legislação, sobre a política, sobre as práticas sanitárias e alimentares, e assim por diante. Não há, pois, como falar em “religião” nesse contexto, precisamente porque não há nada que se lhe escape. Se tudo aí é religião, o próprio termo perde o sentido.

Sobre o contexto muçulmano, por exemplo, Bernard Lewis explica em A linguagem política do Islã (1988): “Quando nós, no Ocidente, usamos as palavras ‘Islã’ e ‘islâmico’, tendemos a cometer um erro natural, pressupondo que religião tem para os muçulmanos o mesmo sentido que para o mundo ocidental, a saber: um compartimento da vida reservado a certas questões, separado, ou ao menos separável, de outros compartimentos equivalentes. Não é assim que funciona no islamismo… A distinção entre igreja e Estado, tão profundamente enraizada na cristandade, simplesmente não existe no Islã. No árabe clássico, bem como em outros idiomas que dele herdaram o seu vocabulário político e intelectual, não há um par de termos que corresponda a espiritual e temporal, leigo e eclesiástico, ou religioso e secular… Não há aí algum equivalente à palavra laicidade, uma expressão sem sentido no contexto islâmico”.

No Cristianismo, com efeito, a esfera religiosa está, desde o início, conceitualmente apartada da sociedade dos homens e da vida terrena. Ao contrário de judeus e muçulmanos, os cristãos – como diz a epístola – não se distinguem por sua terra, língua ou costumes, adaptando-se facilmente a qualquer cultura e organização social. A unidade do Cristianismo se dá exclusivamente noutro plano, autônomo e transcendente em relação à existência mundana, e que, por isso mesmo, pode ser propriamente definido como religioso.


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O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES (PARTE 2)

 

O Cristianismo e o conceito de religião (parte 2)

Por
Flavio Gordon – Gazeta do Povo

| Foto: awsloley/Pixabay

Em todas as grandes religiões anteriores ao Cristianismo, encontrava-se, mutatis mutandis, a seguinte configuração: a cristalização de uma cosmologia geral numa dada estrutura social. Sendo a ordem social uma expressão da ordem cósmica, não havia nesse contexto possibilidade de contato direto com a transcendência, acessível somente por intermédio da natureza, da sociedade, da polis ou do Estado. O Cristianismo rompe essa mediação, dessacralizando, por um lado, as forças naturais (características das religiões cosmológicas anteriores), e, por outro, a comunidade e a crença coletiva, instituindo com isso a soberania da consciência individual autônoma, e oferecendo aos homens o acesso direto à revelação, através de sua encarnação na figura de Jesus. Como explica Fustel de Coulanges em A Cidade Antiga (1864): “Enquanto outrora se haviam fabricado deuses da alma humana ou das grandes forças físicas, começou-se agora a conceber Deus como sendo, por sua essência, verdadeiramente estranho à natureza humana, por um lado, e ao mundo, por outro lado”.

O Cristianismo é simultaneamente supracósmico, universalista e individualista. Ele não se dirige nem a uma comunidade particular, nem a uma sociedade genérica, mas a todos os indivíduos solitários (representados por Jesus de Nazaré), desafiando com isso a autoridade civil e os cultos estatais. Desafiando em última análise as próprias noções tradicionais de política, sociedade, história e natureza. Como escreve o historiador Peter Brown: “Os cristãos adoravam um Deus que, sob muitos aspectos, estava acima do espaço e do tempo”.

Como explica Eric Voegelin em A Nova Ciência da Política, os germes da inovação cristã apareceram, de fato, antes do Cristianismo, num momento da história que o filósofo Karl Jaspers denominou de “período axial”, entre os anos 800 e 300 a.C. Desenvolveram-se nesse período conceitos como os de Tao (na cultura chinesa clássica), Brahman (na tradição védica do hinduísmo), Yahweh (entre os antigos hebreus) e Agathon ou “o Bem” (na filosofia platônica). Mutatis mutandis, todos eles remetiam à ideia de uma verdade última, transcendente, alheia à realidade da sociedade humana. Isso desafiava a concepção de verdade comum aos impérios cosmológicos do passado (China pré-confucionista, Egito, Babilônia, Assíria etc.), em que a sociedade como um todo era tida como encarnação da ordem cosmológica.

Aquilo que Sócrates e Platão propuseram originalmente a um grupo restrito de filósofos foi universalizado pelo Cristianismo a todos os homens

O “período axial” é marcado pela intensa atividade intelectual e espiritual de homens como Sidarta Gautama (Buda), Confúcio, Heráclito, Sócrates, Platão, o profeta Isaías, entre outros. Esses homens testemunharam a verdade da transcendência e a soberania do espírito individual em sua busca por apreendê-la. Temos, portanto, duas visões de mundo rivais, uma que postula uma verdade sociocósmica (coletiva), e outra que introduz o conceito de verdade metafísica transcendente, independente da sociedade, que só pode ser buscada pelo espírito individual do profeta, sábio, teólogo ou filósofo, tipos que o historiador Arnold Toynbee chamou de “filósofos autossuficientes”, por terem confrontado a comunidade e questionado sua autoidolatria.

Aquele momento histórico singular já havia sido destacado também por Henri Bergson, que cunhou os conceitos de “sociedade fechada” e “sociedade aberta” para contrastar as duas visões de mundo. Inspirando-se no filósofo francês, Voegelin denomina a passagem histórica de “abertura da alma”. Embora tenha surgido independentemente em diversas civilizações, essa novidade metafísica e espiritual, diz o autor, teve sua mais completa elaboração na Grécia, com Sócrates e Platão. Contrapondo-se a Protágoras, Platão ensina em As Leis que a medida de todas as coisas é Deus, não o homem ou a ordem social. Ou seja, a realidade empírica (acidental) não pode ser medida imanentemente com referência a si própria, mas apenas por uma verdade transcendente necessária, capaz de ser acessada pelo filósofo cuja alma (psyche) se mantenha aberta à transcendência.


O Cristianismo contra o Estado
A “abertura da alma” é também o tema central do famoso Mito da Caverna (Livro VII da República), que descreve a conversão do filósofo e a sua ruptura com a ilusão da existência humana (materializada, na visão platônica, pela cultura sofística de Atenas) em direção ao mundo das Ideias. Antes de Platão, os deuses gregos não eram outra coisa que a corporificação de forças cósmicas, que andavam, por entre os homens, nos templos e nas praças. O Deus platônico, o Bem supremo (Agathon), torna-se absoluto, inacessível ao homem social, conhecido apenas pela intelecção filosófica do indivíduo. Sócrates nunca pretendeu fundar uma religião ou qualquer culto público. Ele apenas testemunhou, enquanto indivíduo, a existência de uma verdade universal transcendente à opinião (doxa) comum e à verdade coletiva.

Aquilo que Sócrates e Platão propuseram originalmente a um grupo restrito de filósofos foi universalizado pelo Cristianismo a todos os homens. A partir daí, a transcendência deixa de ser apenas metafísica e passa a ser soteriológica. Deixando de lado a intenção hostil, Nietzsche não estava de todo errado ao caracterizar o Cristianismo como um “platonismo para os pobres”. Radicalizando a conquista da filosofia grega, o Cristianismo cortou transversalmente a oposição entre o cosmos e a história (ou entre a natureza e a cultura) por meio de um eixo vertical que liga diretamente a alma humana individual à transcendência.

Como mostra Olavo de Carvalho em O Jardim das Aflições, a partir do momento em que assistimos à negação desse eixo vertical (a “morte de Deus”), tem início, na imanência espaço-temporal, uma disputa contínua para ver quem conquista o reino deste mundo: ora sacraliza-se o cosmos, ora a história; ora o mundo, ora o homem; ora o objeto, ora o sujeito. Toda reação à religião, voluntária ou involuntária, consiste, portanto, numa espécie de combate à transcendência tal qual conceitualizada pelo Cristianismo, uma tentativa de “retorno” à imanência espaço-temporal. É por isso que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, a história da revolta, no mundo ocidental, é inseparável da história do cristianismo.


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