Após dois anos, a metamorfose do governo Bolsonaro
em três pontos
BBCNEWS
Eleito com uma agenda econômica liberal e um discurso crítico ao
Congresso Nacional e ao Poder Judiciário, o presidente Jair Bolsonaro chega à
metade do seu mandato metamorfoseado: em dois anos, pouco entregou das
promessas de privatização e redução do Estado e, a partir de meados de 2020,
sua gestão passou a buscar uma aliança com políticos do Centrão e com a ala
mais garantista (menos punitivista) do Supremo Tribunal Federal (STF).
Para analistas ouvidos pela BBC News Brasil, a mudança de postura do
presidente na relação com Supremo e Congresso reflete um maior pragmatismo do
presidente, conforme aumentaram os obstáculos no seu caminho, como as
investigações criminais contra seus filhos e o risco de sofrer um processo de
impeachment.
Mas isso não significou um abandono total da retórica radical
bolsonarista, ressalta o cientista político Rafael Cortez, da Consultoria
Tendências: com a pandemia de coronavírus, o presidente intensificou sua
disputa com os governadores, em especial o paulista, João Doria, visto como um
provável adversário na eleição presidencial de 2022.
Outro impacto da pandemia foi uma forte expansão dos gastos públicos, na
contramão da agenda de austeridade do ministro da Economia, Paulo Guedes. Para
os analistas ouvidos, porém, a falta de avanços na prometida agenda liberal
reflete mais a ausência de compromisso de Bolsonaro com essas propostas.
"É nítido o isolamento do Ministério da Economia", afirma a
economista Zeina Latif.
Entenda melhor a seguir as três metamorfoses do governo Bolsonaro, na
relação com o Congresso, com o STF e na sua política econômica.
Entre tapas e beijos com a velha política
© REUTERS/Adriano Machado Em foto
de setembro de 2018, Bolsonaro fala com a imprensa em corredor do Congresso;
ele foi eleito com agenda 'antipolítica'
Apesar de ter sido deputado federal por quase três décadas antes de
chegar ao Palácio do Planalto, Bolsonaro iniciou seu governo se colocando
contra a "velha política" e rechaçando negociar cargos com partidos
políticos para construir uma base no Congresso.
"Graças a vocês, eu fui eleito com a campanha mais barata da
história. Graças a vocês, conseguimos montar um governo sem conchavos ou
acertos políticos, formamos um time de ministros técnicos e capazes para
transformar nosso Brasil", discursou a seus apoiadores em sua posse.
O resultado dessa estratégia foi um governo minoritário no Congresso
Nacional, com dificuldade de avançar suas propostas legislativas. Apesar disso,
a retórica contra os políticos tradicionais foi insistentemente repetida pelo
presidente, seus filhos e aliados políticos, culminando em uma série de atos
antidemocráticos nos primeiros meses de 2020, aos quais Bolsonaro compareceu a
despeito dos pedidos dos manifestantes pelo fechamento do Congresso e do STF.
Até que entre maio e junho, nota o cientista político Antonio Lavareda,
o presidente passou a buscar com mais consistência uma aliança com políticos do
Centrão — grupo de partidos sem clara identidade ideológica que costumam aderir
ao governo, seja ele qual for, em busca de cargos e verbas para sua base
eleitoral.
Para Lavareda, essa mudança marca a passagem do "governo Bolsonaro
1" para o "governo Bolsonaro 2", em que o presidente se aproxima
do presidencialismo de coalizão — uma administração que negocia apoio no
Congresso para formar uma base política que lhe dê governabilidade.
"Eu acho que o governo Bolsonaro 1 é uma tentativa curiosa de se
fazer um presidente antissistema. O Bolsonaro 2 é um governo que paulatinamente
avança na direção da gramática do presidencialismo de coalizão, que é
imperativo em um país de regime presidencialista com multipartidarismo. Não é
questão de escolha", ressalta Lavareda, que é presidente do conselho
científico do Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ipespe).
"Seu governo ainda não entrega ministérios de porteira fechada
(para os partidos ocuparem os cargos livremente), mas já vai cedendo (o comando
de alguns) órgãos, entregando mais cargos", exemplifica ainda.
O próprio Bolsonaro reconheceu a distribuição de cargos entre partidos
políticos: "Tem cargo na ponta da linha, segundo ou terceiro escalão, que
estava na mão de pessoas que são de governos anteriores ao (do ex-presidente
Michel) Temer. Trocamos alguns cargos nesse sentido. Atendemos, sim, a alguns
partidos nesse sentido (de cargos)", disse o presidente, em uma
transmissão ao vivo no final de maio.
Um exemplo dessa ocupação de escalões inferiores por indicados políticos
ocorreu em junho no Ministério da Educação, quando Marcelo Lopes da Ponte,
ex-chefe de gabinete do senador Ciro Nogueira (PP-PI), foi nomeado presidente
do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Outros cargos dentro
do órgão foram para indicações do PL — Paulo Roberto Aragão Ramalho assumiu a
Diretoria de Tecnologia e Inovação do FNDE, enquanto Garigham Amarante Pinto
assumiu a Diretoria de Ações Educacionais do fundo.
Outro marco da mudança de postura foi a recriação do Ministério das
Comunicações em junho, cujo comando foi dado ao deputado Fábio Faria (PSD-RN),
genro do empresário e apresentador do SBT Silvio Santos.
No capítulo mais recente da aliança com o Centrão, Bolsonaro se esforça
para que o deputado Arthur Lira (PP-AL) seja eleito presidente da Câmara em
fevereiro. A negociação envolve mais cargos e culminou em dezembro na demissão
do então ministro do Turismo, Álvaro Antônio, depois que ele acusou o ministro
da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, responsável pela articulação do
Planalto junto ao Congresso, de querer entregar sua pasta ao Centrão.
Com isso, o comando do ministério passou para as mãos do até então
presidente da Embratur, Gilson Machado.
Para Lavareda, Bolsonaro passa a negociar com partidos políticos devido
ao "vislumbre do insucesso do presidente antissistema", já que sua
adesão a atos autoritários no início do ano gerou uma "uma articulação do
campo democrático" contra ele, com aumento dos pedidos de impeachment e a
abertura de um inquérito pelo STF para apurar os organizadores dessas
manifestações, investigação que se aproximou de seus filhos Carlos Bolsonaro
(vereador do Rio de Janeiro/Republicanos) e Eduardo Bolsonaro (deputado federal
por São Paulo/PSL).
Paralelamente, avançaram as investigações contra Flávio Bolsonaro
(senador pelo Rio de Janeiro/Republicanos), acusado de ter desviado recursos do
seu antigo gabinete de deputado estadual, em um esquema de rachadinha operado
pelo seu ex-assessor e amigo pessoal do presidente Fabrício Queiroz, que foi
preso em junho.
"Com os filhos envolvidos com problemas no Judiciário,
provavelmente (Bolsonaro) percebeu que a melhor forma de administrar esses
problemas não seria no conflito com as instituições. No conflito, não viriam
soluções melhores para seus filhos, viriam um avolumar dos problemas",
acredita Lavareda.
Embora o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, nunca tenha indicado que
poderia iniciar um processo de cassação do mandato de Bolsonaro, "o
impeachment no nosso modelo político está sempre no horizonte quando o governo
não tem base parlamentar", afirma o cientista político.
Sai Sergio Moro entra Nunes Marques: a 'guinada garantista'
© REUTERS/Adriano Machado Bolsonaro
surpreendeu em sua escolha para a vaga aberta no Supremo com a saída de Celso
de Mello
Rafael Cortez, da Consultoria Tendências, também vê na maior proximidade
com o Centrão uma tentativa de Bolsonaro de "minimizar algum risco mais
relevante" para seu mandato e sua família. Na sua visão, porém, a maior
guinada provocada por essa estratégia de autoproteção ocorreu na relação do
presidente com o Poder Judiciário.
Bolsonaro foi eleito com um forte discurso anticorrupção, na esteira do
desgaste causado pela operação Lava Jato sobre a credibilidade dos partidos
políticos. Durante a campanha e o início do seu mandato, ele e seus filhos eram
fervorosos defensores da prisão após condenação em segunda instância e do fim
do foro privilegiado — ao se tornar investigado, porém, Flávio Bolsonaro passou
a recorrer na Justiça para garantir seu foro especial.
O apoio retórico de Bolsonaro a pautas anticorrupção foi materializado
com a escolha de Sergio Moro, então juiz de grande parte dos casos da Lava
Jato, para ministro da Justiça e da Segurança Pública. No entanto, no final de
abril deste ano, Moro deixou o governo fazendo fortes acusações de que o
presidente estaria tentando interferir na Polícia Federal, o que deu início a
uma investigação criminal que segue em curso na Procuradoria-Geral da República
(agora sob relatoria do ministro do STF Alexandre de Moraes, após a aposentadoria
do ministro Celso de Mello).
Nesse contexto — de rompimento com Moro, avanço de investigações contra
a família presidencial e proximidade com o Centrão —, Bolsonaro surpreendeu ao
escolher Kassio Nunes Marques para a vaga aberta no Supremo com a saída de Celso
de Mello, deixando de lado sua antigas promessas de nomear um ministro
"terrivelmente evangélico" e/ou com perfil mais duro no direito penal
(o próprio Sergio Moro era cotado publicamente pelo presidente).
Nome sem grande projeção nacional, então desembargador do TRF-1, Nunes
Marques foi indicado com a benção do senador e presidente do PP, Ciro Nogueira,
um dos maiores expoentes do Centrão, e com a aprovação de Gilmar Mendes e Dias
Toffoli, ministros da ala garantista do STF.
São chamados de garantistas os juízes que dão maior peso aos direitos
garantidos pela Constituição a investigados e réus. Nunes Marques, que teve
longa carreira como advogado antes de entrar para a magistratura, se
autointitula um.
Ao se tornar ministro do STF ele assumiu a cadeira de Celso de Mello da
Segunda Turma da Corte, colegiado que julga recursos dentro da investigação
contra Flávio Bolsonaro. Em um desses recursos, o Ministério Público do Rio de
Janeiro tenta reverter o foro especial concedido no final de junho ao senador
pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ).
Apesar de em 2018 o STF ter restringido o foro privilegiado a crimes
relacionados ao atual mandato político, o TJ-RJ decidiu que Flávio ainda tem
direito ao foro de deputado estadual no caso da rachadinha, o que passou a
investigação da primeira instância judicial para o próprio TJ-RJ. O recurso foi
sorteado para relatoria de Gilmar Mendes, que não indicou quando vai colocá-lo
em julgamento.
Rafael Cortez nota que a aliança com o Centrão não significou um apoio
maior a pautas econômicas do governo no Congresso. Na sua avaliação, é
justamente no campo jurídico em que os interesses desse grupo político e da
família Bolsonaro confluem.
"Essa identidade de interesses (entre Centrão e Bolsonaro) aparece
com mais clareza na relação do mundo da política com as instituições de
controle. Nesse sentido, é um casamento mais consistente", analisa.
"A busca por segurança jurídica da família e do mandato do
presidente é que fez com essa metamorfose do governo com o mundo do Judiciário
tenha sido mais intensa e me parece mais consistente ao longo do tempo",
acrescentou.
Na economia, privatizações e corte de gastos não viraram realidade
© EPA/ANTONIO LACERDA Após dois
anos, governo Bolsonaro segue longe de entregar promessas na área econômica,
como grandes privatizações e rombo nas contas públicas zerado
Outro campo em que a prática do governo Bolsonaro se distanciou de seu
discurso de campanha foi o econômico. Após dois anos, o presidente segue longe
de entregar promessas feitas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como
grandes privatizações e zerar o rombo nas contas públicas.
A aliança com o economista ainda na corrida eleitoral foi importante
para o então candidato atrair o apoio do mercado financeiro e do empresariado
nacional — Bolsonaro dizia que não entendia de economia e que Guedes comandaria
a área com autonomia. No entanto, logo no início do mandato isso não se mostrou
verdadeiro, com o presidente buscando atender aos interesses de sua base de
apoio.
No caso da reforma da Previdência, cuja aprovação em 2019 é atribuída em
boa parte ao trabalho de convencimento da sociedade e de negociação no
Congresso herdado do governo Temer, o governo propôs aumento na remuneração dos
militares como forma de compensar as mudanças na aposentadoria da categoria.
Atendendo também a uma demanda das Forças Armadas, Bolsonaro criou uma
nova estatal, a NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea, muito embora uma das
principais bandeiras de Guedes seja privatizar as empresas do governo. Após
dois anos, nenhuma estatal foi vendida.
Além da agenda de privatização que não anda, propostas do Ministério da
Economia para reduzir os gastos públicos, como a reforma administrativa e a
chamada PEC Emergencial, também estão empacadas no Legislativo.
Com a pandemia de coronavírus, o Congresso aprovou neste ano uma emenda
constitucional — chamada de Orçamento de Guerra — que permitiu ao governo
elevar fortemente as despesas para enfrentar a crise na saúde e na economia,
com destaque para a criação do auxílio emergencial, benefício inicialmente de
R$ 600, que depois foi reduzido para R$ 300, e cuja última parcela foi paga em
dezembro.
Bolsonaro e sua equipe econômica não conseguiram entrar em consenso
sobre como criar um novo programa de transferência de renda mais amplo que o
Bolsa Família para compensar o fim do auxílio emergencial, o que deixará
milhões de brasileiros sem renda a partir de janeiro e pode reverter a recente
alta de popularidade do presidente.
"A pandemia retirou ainda mais a força política das teses
associadas à equipe de Paulo Guedes. Mas a questão central (que dificulta a
implementação das propostas do ministro da Economia) é a postura do próprio
presidente em relação à agenda econômica. De alguma maneira, era um casamento
meio artificial essa relação do Bolsonaro com Guedes", afirma Rafael
Cortez.
Essa falta de apoio do presidente à agenda econômica acabou levando a
uma debandada da equipe de Guedes, como o próprio ministro reconheceu em
agosto. Desde o início do governo, deixaram seus cargos Joaquim Levy (BNDES),
Marcos Cintra (Receita Federal), Marcos Troyjo (Comércio Exterior), Rubem
Novaes (Banco do Brasil), Caio Megale (Fazenda), Mansueto Almeida (Tesouro
Nacional), Salim Mattar (secretário especial de desestatização), e Paulo Uebel
(secretário especial de desburocratização).
© Reuters Apesar de ser uma das
principais bandeiras do ministro Paulo Guedes, nenhuma estatal foi vendida
durante mandato de Bolsonaro
"Hoje houve uma debandada? Hoje houve uma debandada. Salim falou:
'A privatização não está andando, prefiro sair'. Uebel disse: 'A reforma
administrativa não está sendo enviada, prefiro sair'. Esse é o fato, essa é a
verdade", disse Guedes em agosto.
Para a consultora Zeina Latif, ex-economista-chefe da XP Investimentos,
Guedes tinha "avaliações erradas sobre condução de política econômica"
e "vendeu uma imagem (equivocada) de que é fácil privatizar, de que abrir
a economia é fácil".
"Ele gerou essa expectativa inflada que quem acompanha economia
sabia que não fazia sentido. Era impossível entregar. E, o que acho ainda mais
problemático, ele não conseguiu convencer internamente o governo da importância
da sua agenda. É nítido o isolamento do Ministério da Economia", ressalta.
Como a agenda de corte de gastos está empacada, Latif acredita que em
2021 "vai ter furo no teto de gastos", ou seja, alguma flexibilização
na regra constitucional que limita o aumento das despesas do governo à
inflação. Na sua avaliação, isso já está em parte "precificado pelo
mercado" na alta do dólar frente ao real e no aumento da curva de juros
futuros, mas, quando ocorrer de fato, esses movimentos podem se intensificar um
pouco mais.