As implicações de se
qualificar o ataque ao Porta dos Fundos como ato terrorista
Felipe Betim
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Fornecido por EL PAÍS Câmera de segurança capta imagem do vigilante
presenciando o ataque com coquetéis molotov na sede do Porta dos Fundos, na
madrugada do dia 24 de dezembro.
O Brasil já tem um grupo terrorista para chamar de
seu. Ao menos foi esse o entendimento de parte da opinião pública após o ataque com
coquetéis molotov na sede da produtora Porta dos Fundos, ocorrido na madrugada do dia 24 de dezembro, no Rio de
Janeiro. Essa tese acabou reforçada desde a última quarta-feira, quando passou
a circular um vídeo nas redes sociais com homens encapuzados assumindo o
ataque. Eles garantiam formar parte do “Comando de Insurgência Popular
Nacionalista” da “Família Integralista Brasileira”, movimento surgido nos anos
de 1930 de ordem fascista e católica —a Frente Integralista Brasileira (FIB)
negou, em nota, qualquer vínculo oficial com os autores do vídeo.
Enquanto isso, a 10ª Delegacia da Polícia Civil do
Rio de Janeiro segue realizando as diligências sob sigilo. O delegado Marco
Aurélio de Paula Ribeiro está investigando o crime como tentativa de homicídio
e crime com explosão, mas poderá adicionar outras tipificações com o andamento
das investigações, segundo confirmou ao EL PAÍS. A qualificação do crime como
terrorismo por enquanto está descartada. Caso haja esse entendimento, o caso
teria que ser federalizado, uma vez que a chamada Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.260) prevê a atuação exclusiva
da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.
A Polícia Civil tem em mãos 80 horas de imagens de
câmeras de segurança para tentar identificar os quatro homens envolvidos na ação,
conforme adiantou o jornal Extra. A sede do Porta dos
Fundos está localizada em uma das zonas mais boêmias da nobre zona sul do Rio
de Janeiro, mais especificamente entre os bairros de Botafogo e Humaitá. E
sabe-se, a partir do depoimento de testemunhas, que os criminosos rondaram o
local do atentado e esperaram o movimento nos bares próximos diminuir. O ataque
ocorreu às 5h21 da madrugada.
Neste horário, três homens atiravam os coquetéis
molotov e um quarto registrava a ação por meio de um celular. Os agressores
estavam em uma moto e uma camionete SUV e fugiram pela Capitão Salomão na contramão
e acessaram a via principal, a rua Voluntários da Pátria. A placa do carro
estava escondida com uma fita adesiva silver tape, mas os investigadores
acreditam que, por conta do risco de blitz policial, ela esteve visível em
outros momentos.
Com as imagens da CET-Rio, mas também de
restaurantes, lojas, clínicas e edifícios, os investigadores tentam refazer a
trajetória completa dos quatro criminosos. Desde a última sexta-feira o
material se encontra no laboratório do Instituto de Criminalística Carlos Éboli
para que, com a ajuda de um programa de computador, sejam identificadas as
placas dos veículos. A polícia ainda apurou que quatro SUVs do mesmo modelo
foram roubados no Rio no dia do crime. Os investigadores esperam identificar em
poucos dias os responsáveis pelo ataque, segundo apurou o jornal O Globo.
Principal testemunha, o vigilante que se encontrava
no edifício deverá ser ouvido nesta semana pelos investigadores. Um vídeo de
câmera de segurança mostra o momento em que os coquetéis acertam o prédio e quase atingem o homem,
que usa um extintor de incêndio para conter o fogo.
Ataque pode ser considerado
terrorismo?
O uso do terror e da violência por grupos
extremistas não chega a ser uma novidade em tempos de acirramento do ódio
político no Brasil. O mesmo grupo que diz ter atacado a o Porta dos Fundos
invadiu a UniRio em 2018 e queimou bandeiras antifascistas, conforme publicou a Ponte Jornalismo. Além disso, em
setembro deste ano um grupo lançou bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta no bar
palestino Al Janiah, que contrata refugiados e promove eventos de
cultura árabe, em São Paulo.
Também cresceram as denúncias de ataques à religião
de matriz africana, uma escalada violenta comandada por traficantes de drogas
que também são evangélicos radicais e que tem o racismo como pano de fundo. Segundo o portal
de notícias Gênero e Número, que teve acesso aos dados do
Disque 100, canal para denúncias de violação de direitos humanos, 59% do total
de casos registrados entre 2011 e junho de 2018 eram referentes a religiões
como a umbanda e o candomblé; 20% a religiões evangélicas; 11% a espíritas; 8%
a católicos; e 2% a ateus. Além disso, as denúncias de discriminação religiosa
cresceram de 15 para 537 entre 2011 e 2017. Adeptos da umbanda e do candomblé
também vêm denunciando publicamente esses ataques como sendo terroristas.
As expressões “terrorismo” e “terroristas” estão
também na boca dos principais dirigentes do país "numa perspectiva mais
retórica”, recorda Guilherme de Jesus France, pesquisador da FGV Direito Rio. O presidente Jair Bolsonaro
costuma chamar os militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) de
terroristas e, neste ano, qualificou da mesma forma a ONG ambiental Greenpeace.
O governador do Rio, Wilson Witzel, que costuma se referir aos traficantes de
drogas como “narcoterroristas”. Na esteira dos protestos de junho de 2013,
black blocs, grupo que defende a prática de ações “para causar danos materiais
às instituições opressivas”, também foram chamados por dirigentes de “vândalos”
e “terroristas”.
“Portanto, é um termo usado para deslegitimar
grupos e pretensões políticas de opositores, o que justifica e exige uma
cautela ainda maior quando se usa este termo”, argumenta o especialista, autor
do livros As Origens da Lei Antiterrorismo no Brasil. Após o
ataque ao Porta dos Fundos, nenhuma autoridade o qualificou como um ato
terrorista.
Por causa de seu uso político constante em todo o
mundo, o significado de terrorismo não encontrou uma definição tecnicamente
perfeita e universal. “Nas décadas de 70 e 80, grupos que eram considerados
terroristas por países de primeiro mundo eram vistos como movimentos de
liberação nacional por países do terceiro mundo. Além disso, esses grupos se
misturam com o crime organizado e usam mecanismos como falsificação de
documento, tráfico de pessoas, de armas e de drogas”, explica.
No Brasil, a definição mais técnica fica por conta
da Lei Antiterrorismo, sancionada em março de 2016 nas vésperas
dos Jogos Olímpicos do Rio e em um momento de crescente pressão internacional
para que o Brasil adotasse uma legislação desse tipo. “O projeto sai do
Congresso é muito amplo, definindo condutas, qualificando o que passa ser
entendido como terrorismo, criminalizando financiamento, organização",
afirma France.
Analisando fria e tecnicamente a legislação, esta
coloca três pré-requisitos para que uma conduta seja considerada um ato
terrorista, segundo explica o especialista. Deve ter uma motivação específica,
"basicamente xenofobia, preconceito de raça, de religião, cor e etnia”.
Também precisa ter uma finalidade, “que é provocar terror social e
generalizado, expondo pessoas ao perigo”. Por fim, o ato “deve se encaixar em
uma das possibilidades previstas nos incisos, que tratam do uso de explosivos,
gases tóxicos, armas biológicas, ataques em infraestruturas, portos, estradas,
além de expor a integridade física de uma pessoa”.
Assim, os ataques a terreiros e ao Al Janiah
poderiam, dependendo de sua interpretação, ser considerados terroristas, devido
a sua motivação religiosa e xenófoba e por causa dos meios empregados, segundo
explica. A questão fica um pouco mais difícil no caso do ataque ao Porta dos
Fundos. “Podemos interpretar que o ataque foi homofóbico ou ainda que se tratou
de um atentado contra a liberdade de expressão e artística. Mas o Porta dos
Fundos em si não representa nenhuma religião específica. Por mais que os
atacantes tivessem motivação religiosa, é diferente de quando a motivação se dá
por preconceito de religião”, analisa.
Mestre em Direito Internacional (UERJ) e mestre em
História, Política e Bens Culturais (CPDOC/FGV), France também recorda que,
durante a tramitação da Lei Antiterrorismo, a discussão que tomou mais tempo
foi sobre uma definição ainda mais ampla que incluiria, por exemplo, motivação
ideológica. “Nesse caso caberia tudo na lei. Acabou tirado da tramitação e o
que sobrou foi uma definição mais restritiva. E acho que isso foi positivo.
Trata-se de uma tipificação penal bastante complexa e difícil, com uma carga
política muito grande que realmente deveria ser utilizada em pouquíssimos
casos, em excessos, quando a legislação penal em si já não dá conta”, opina
France. “O fato de um caso não ser caracterizado como ataque de terrorista não
significa que não será investigado”.