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Líderes europeus têm anunciado aumento de gastos de defesa diante da ameaça da Rússia e o distanciamento dos EUA© Reuters
A Europa está em uma espécie de “corrida armamentista” diante da crise da aliança militar Otan desencadeada pela mudança de estratégia da Casa Branca, sob o presidente americano Donald Trump.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a segurança do continente
europeu esteve fortemente ligada aos Estados Unidos. Os americanos
investiram massivamente em suas forças armadas e em seu arsenal —
enquanto os europeus mantiveram investimentos mais modestos, sempre
contando com o apoio de seus aliados do outro lado do oceano Atlântico.
Dentro da Otan, os EUA custeiam 64% dos gastos, contra apenas 36% do resto da Europa.
Diante das declarações recentes do presidente Donald Trump e de seu
vice, J. D. Vance, de que a Europa precisa prover pela sua própria
segurança — como no caso da guerra da Ucrânia — líderes europeus
começaram a anunciar gastos maiores em defesa.
A situação se provou ainda mais urgente depois da discussão entre Trump e o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, na Casa Branca e a decisão de Washington de pausar o compartilhamento de inteligência com os ucranianos.
Na semana passada, os líderes europeus se reuniram para discutir formas de aumentar a segurança do continente em um cenário de aumento do distanciamento entre Washington e a Europa.
No encontro, os líderes europeus manifestaram apoio à proposta da
Comissão Europeia (braço executivo da União Europeia) de criar um fundo
para empréstimos de 150 bilhões de euros (US$ 157 bilhões ou R$ 930
bilhões) para que os governos do bloco — que não inclui o Reino Unido —
promovam o rearmamento europeu diante da guerra da Rússia na Ucrânia.
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A unidade europeia só foi quebrada pelo primeiro-ministro da Hungria,
Viktor Orbán, que não endossou a declaração do bloco sobre a Ucrânia.
Orbán é visto como um aliado tanto de Putin quanto de Trump.
A partir desta terça-feira (11/03), representantes dos EUA e Ucrânia
devem se encontrar na Arábia Saudita para discutir formas de pôr fim ao
conflito com a Rússia.
As últimas semanas foram repletas de anúncios de aumento de gastos
com defesa e rearmamento da Europa — e também de questionamentos sobre
como isso deve ser financiado.
Alemanha: fim do freio da dívida
Um dos líderes europeus a anunciar um aumento em gastos militares foi
Friedrich Merz, que deve se tornar o próximo chanceler da Alemanha. Seu
partido foi o vencedor da eleição geral realizada no mês passado no
país, e está em processo de montar uma coalizão para governar a
Alemanha.
Minutos depois de vencer a eleição, Merz falou na necessidade de declarar “independência” da Europa em relação aos EUA na área de defesa.
Merz anunciou esta semana um acordo político para levantar centenas
de bilhões de euros em gastos extras em defesa e infraestrutura.
“Em vista das ameaças à nossa liberdade e paz em nosso continente, a
regra para nossa defesa agora tem que ser ‘o que for preciso'”, disse
Merz.
Ele falou sobre a necessidade de urgência nos gastos alemães à luz das “decisões recentes do governo americano”.
Vencedor da eleição na Alemanha, Friedrich Merz, vem dizendo que Europa precisa ser independente dos EUA em defesa© Reuters
Na semana passada, Merz disse que a Alemanha estava contando com os
EUA para manter “compromissos mútuos de aliança… mas também sabemos que
os recursos para nossa defesa nacional e de aliança devem agora ser
significativamente expandidos”.
No centro de suas propostas está um fundo especial de 500 bilhões de
euros (US$ 530 bilhões ou R$ 3,4 trilhões) em infraestrutura e para
afrouxar as regras orçamentárias rigorosas que proíbem investimentos em
defesa na Alemanha.
Na esteira da crise financeira da Europa, a Alemanha impôs um “freio
da dívida” ou Schuldenbremse (algo semelhante ao teto de gastos que
esteve em vigor no Brasil nos governos de Michel Temer e Jair
Bolsonaro), limitando o déficit orçamentário a 0,35% da produção
econômica nacional (PIB) em tempos normais.
A nova proposta de defesa de Merz recomenda que “gastos de defesa
necessários” acima de 1% do PIB sejam isentos de restrições que impõem o
limite de dívida, ou seja, sem limitações orçamentárias.
Embora a Alemanha tenha fornecido mais ajuda à Ucrânia do que
qualquer outro país europeu, suas forças armadas recebem menos
investimentos do que outros países desde o fim da Segunda Guerra
Mundial.
O governo de Olaf Scholz, que foi derrotado na eleição, criou um
fundo de 100 bilhões de euros (US$ 107 bilhões ou R$ 620 bilhões) após a
invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia em 2022, mas a maior
parte disso já foi alocada.
A Alemanha terá que encontrar 30 bilhões de euros extra por ano
apenas para atingir a meta atual da Otan de 2% do PIB em defesa, e
especialistas em segurança acreditam que ela precisará aumentar sua meta
de gastos para mais perto de 3%.
França: proteção nuclear a aliados
Em seguida, foi a vez do presidente francês, Emmanuel Macron, ir à televisão e anunciar o aumento de gastos militares.
“No geral, nossa prosperidade e segurança se tornaram mais incertas. É
preciso dizer que estamos entrando em uma nova era”, disse Macron na
televisão.
O aumento de gastos militares da França e da Europa é justificado,
segundo Macron, pelo temor do aumento do poder bélico da Rússia.
“A Rússia já fez do conflito ucraniano um conflito global. Mobilizou
soldados norte-coreanos e equipamentos iranianos em nosso continente,
enquanto ajudava esses países a se armarem mais”, disse Macron no
pronunciamento.
“A Rússia do presidente Putin viola nossas fronteiras para assassinar
oponentes, manipula eleições na Romênia e na Moldávia e organiza
ataques cibernéticos em nossos hospitais para bloquear sua operação. A
Rússia está tentando manipular nossas opiniões com mentiras espalhadas
nas redes sociais. E, no fundo, está testando nossos limites. Ela faz
isso no ar, no mar, no espaço e atrás de nossas telas.”
“Quem pode acreditar, neste contexto, que a Rússia vai parar na Ucrânia?”
Macron disse que a França continua comprometida com os EUA e com a Otan, mas que “é preciso fazer mais”.
Ele também disse que a França está disposta a abrir um debate sobre
compartilhar sua dissuasão nuclear com os demais países do continente —
ou seja, estender a proteção oferecida por seu arsenal nuclear aos
demais países da Europa.
O presidente francês disse esta semana ao jornal Le Figaro que os
países europeus precisavam aumentar os gastos com defesa para “cerca de
3-3,5%” do seu PIB, bastante acima da meta atual de 2% para os membros
da Otan.
A França já vinha aumentando seus gastos militares em 3 bilhões de
euros (US$ 3,1 bilhões ou R$ 18 bilhões) em um plano projetado para
durar até 2030. Mas o governo francês confirmou que esse plano será
reavaliado para aumentar ainda mais os gastos.
A França já vem cumprindo a meta da Otan de 2% de gastos do PIB em
defesa, mas, segundo a agência de notícias Reuters, para alcançar 3% o
país precisaria de mais 30 bilhões de euros (US$ 31 bilhões ou R$ 180
bilhões) adicionais por ano.
“Temos restrições orçamentárias”, disse o ministro das Finanças da
França, Eric Lombard. “Temos 3,3 trilhões de euros em dívidas, o que
significa que a cada ano pagamos aos nossos credores mais de 50 bilhões
de euros, o que é quase o mesmo que o orçamento de defesa.”
Reino Unido: cortes em gastos humanitários
O Reino Unido foi um dos primeiros países a anunciar aumento nos gastos com defesa.
No final do mês passado, dias antes de um encontro com Trump na Casa
Branca, o premiê britânico, Keir Starmer, anunciou planos para aumentar
os gastos com defesa em relação à economia nacional até 2027.
O primeiro-ministro disse que cortaria o orçamento de ajuda
humanitária externa para financiar o reforço militar — uma medida bem
recebida pelo governo Trump, mas classificada de “traição” por
instituições de caridade de desenvolvimento.
Keir Starmer decidiu cortar ajuda externa do Reino Unido para financiar gasto militar© EPA
Starmer disse que o orçamento de ajuda humanitária do Reino Unido
seria reduzido de 0,5% da renda nacional bruta para 0,3% em 2027,
“financiando totalmente o investimento em defesa”, que aumentará de 2,3%
para 2,6% do PIB.
Isso significa gastar 13,4 bilhões de libras (US$ 17,2 bilhões ou R$ 100 bilhões) a mais em defesa a cada ano a partir de 2027.
O primeiro-ministro disse que os gastos com defesa aumentariam para
2,6% do PIB até 2027, considerando a contribuição dos serviços de
inteligência para a defesa.
“Esse é o maior aumento sustentado nos gastos com defesa desde a
Guerra Fria, o que nos colocará em posição de garantir a segurança e a
defesa do nosso país e da Europa”, disse Starmer em debate no Parlamento
britânico.
O Reino Unido e a França têm liderado esforços para estabelecer uma
coalizão para impedir a Rússia de invadir ainda mais a Ucrânia, no caso
de um acordo de paz.
Autoridades do Reino Unido disseram que cerca de 20 países estavam
interessados em se envolver, embora nem todas as nações
necessariamente enviariam tropas para a Ucrânia.
De onde tirar dinheiro?
Analistas agora debatem quantos investimentos seriam necessários para
a Europa garantir a sua segurança diante da Rússia sem apoio
substancial dos EUA — e de onde sairia esse dinheiro.
Uma análise do instituto de pesquisa Bruegel, sediado em Bruxelas, e
do think tank alemão Instituto Kiel para a Economia Mundial estima que a
Europa terá de investir cerca de 250 bilhões de euros por ano (US$ 270
bilhões ou R$ 1,5 trilhão) para fazer frente à força militar russa.
Segundo um relatório dos dois institutos, a Europa precisaria de mais
300 mil soldados e milhares de blindados e outros equipamentos bélicos.
“Para isso, seriam necessários pelo menos 1,4 mil novos tanques de
batalha e 2 mil veículos de combate de infantaria, o que excederia os
estoques atuais de todas as forças terrestres alemãs, francesas,
italianas e britânicas. Além disso, a Europa teria que produzir cerca de
2 mil drones de longo alcance todos os anos.”
Para Guntram Wolff, coautor da análise e pesquisador do Instituto
Kiel, em termos econômicos, custos adicionais equivalem a cerca de 1,5%
do produto interno bruto da União Europeia — o que para ele é um custo
administrável para os europeus.
“Isso é muito menos do que teve que ser mobilizado para superar a crise durante a pandemia de Covid, por exemplo”, diz Wolff.
Ainda assim, a economia europeia tem sido uma das que menos cresceu desde o fim da pandemia.
A Alemanha vem alternando trimestres de crescimento negativo da sua
economia desde 2023. O Reino Unido chegou a entrar em recessão após o
fim da pandemia.
O maior desafio dos políticos do Reino Unido, França e Alemanha tem sido reerguer essas economias em crise.
O relatório do Instituto Kiel defende que o aumento do gasto militar
da Europa seja financiado com aumento da dívida — e não com cortes
orçamentários.
“Um novo conjunto de dados e análise do Instituto Kiel mostra que os
acúmulos militares dos últimos 150 anos foram tipicamente financiados
por déficits, bem como impostos, mas não por cortes orçamentários”,
afirma a entidade.
“A segurança da Europa não deve ser colocada em risco por causa de
regras fiscais como o freio da dívida, caso contrário, o grave erro da
política britânica de austeridade e apaziguamento da década de 1930 pode
ser repetido. A Alemanha e a Europa devem investir rápida e
suficientemente em defesa para deter novos ataques russos desde o
início.”
A União Europeia já agiu nesta direção com seu pacote de gastos de 150 bilhões de euros em segurança.
“Estamos vivendo no mais importante e perigoso dos tempos”, disse a
presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Estamos em uma
era de rearmamento. E a Europa está pronta para aumentar maciçamente
seus gastos com defesa.”