História de Ayelén Oliva – BBC News Mundo – BBC News Brasil

O fortalecimento da moeda local influenciou o turismo internacional na Argentina.© Getty Images
“A Argentina está
cara em dólares”, contou Manuel, empresário gastronômico de 37 anos,
durante minha última visita à capital do país, Buenos Aires, no mês de
dezembro. “Você que veio dos Estados Unidos vai perceber rapidamente.”
Já no meu primeiro dia na cidade, confirmo a observação de Manuel no preço do café.
Em Palermo, bairro turístico da capital, uma xícara de café custa 3,3
mil pesos – US$ 3,20 pelo câmbio oficial (cerca de R$ 19), cotado a
poucos centavos a menos que o paralelo, que os argentinos chamam de “dólar blue“.
Costumo pagar um dólar a menos pelo café na mesma rede de cafeterias em Miami, nos Estados Unidos.
Mas não são só os lugares frequentados pelos estrangeiros que estão
caros em dólares. A mesma situação se repete em locais menos turísticos e
com produtos mais procurados pelos argentinos. Vemos o mesmo no pão
fatiado, que custa US$ 4 (R$ 23,70), ou na manteiga a US$ 3 (R$ 17,80).
E também nos produtos importados. Um copo térmico Stanley, por
exemplo, custa em Buenos Aires US$ 140 (R$ 830). Nos Estados Unidos, o
mesmo copo não passa de US$ 30 (R$ 178).
Segundo o índice de preços Big Mac do McDonald’s, criado pela revista
The Economist em 1986, o preço do hambúrguer na Argentina é o mais alto
da América Latina (US$ 7,37, cerca de R$ 43,70) e o segundo maior do
mundo, atrás da Suíça.
Um ano atrás, o Big Mac custava na Argentina a metade do preço atual, em dólares.
Estimativas do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em
inglês) indicam que o peso argentino aumentou de valor em 40%, em
termos reais, entre dezembro de 2023 e outubro do ano passado.
Mas este avanço não se traduziu em aumento do poder aquisitivo da
população. Afinal, os salários permaneceram congelados e as chamadas
correções do governo Javier Milei geraram forte recessão, que provocou queda do consumo.
“Não estamos nem melhor, nem pior. Temos problemas diferentes do ano
passado”, conta o dono de uma padaria com mais de 30 anos no setor,
questionado sobre o efeito da valorização da moeda local sobre suas
vendas. Ele votou em Milei e continua apoiando o presidente.
O impacto da queda da inflação argentina (a
maior conquista de Milei no seu primeiro ano na presidência), aliada à
valorização da moeda local, surpreende qualquer pessoa que não tenha
visitado o país no último ano.
Mas por que a Argentina passou a ser “cara em dólares”, depois de ter
sido um dos países mais baratos da América Latina? E quais os impactos
na sua economia?
O ‘superpeso’
“Para viver na Argentina, preciso hoje de mais dólares do que um ano
atrás”, conta o programador brasileiro Thiago. Ele cobra por seus
serviços na moeda americana e, há dois anos, decidiu morar na Argentina,
com o câmbio favorável na época.
Desde que o peso se fortaleceu no país e o real caiu no Brasil, liderando a queda das moedas latino-americanas, Thiago pensa em voltar para São Paulo. “Lá, vivo melhor com menos dólares”, ele conta.
Thiago não é o único. Em agosto de 2024, a BBC News Brasil noticiou que uma onda de brasileiros estava deixando a Argentina porque era “inviável” para eles permanecer no país.
O presidente Milei desvalorizou a moeda argentina em 54% logo após a
sua posse. Um ano depois, ela se transformou no que os meios de
comunicação do país chamam de “superpeso”. Como isso
aconteceu?
Javier Milei conseguiu reduzir o ritmo da inflação na Argentina.© Reuters
O motivo é a estratégia adotada por Milei para baixar a inflação, sua
principal meta ao assumir a presidência. Afinal, em 2023, a inflação
argentina atingiu 211%, segundo o Instituto Nacional de Estatística e
Censos do país (Indec).
Milei empregou um instrumento que os economistas chamam de “âncora
inflacionária”. O preço do dólar oficial foi “ancorado”, aumentando sua
cotação – ou seja, desvalorizando o peso – pelo nível fixo de 2% ao mês,
muito abaixo do índice mensal de inflação.
Esta medida, aliada à “âncora fiscal”, que reduziu fortemente os
gastos públicos, e à “âncora monetária”, com a suspensão da emissão de
dinheiro para financiar o Tesouro, foi fundamental para que a Argentina
fechasse 2024 com inflação anual de 118% – uma redução de 44,5% em um
ano.
O lado negativo é que, enquanto o peso se fortalecia ao ser
desvalorizado abaixo da inflação, o dólar oficial ficou atrasado em
relação ao custo de vida, perdendo grande parte da sua capacidade de
compra.
Como resultado, surgiu um novo fenômeno para os argentinos: a
inflação em dólares. Estimativas de diversos economistas locais indicam
que ela superou 70% no ano passado.
Ou seja, um produto que custava US$ 100 um ano atrás, hoje, custa US$ 170.
‘Dólar blue’
Não foi apenas o dólar oficial, controlado pelo governo, que perdeu
seu poder de compra. O dólar paralelo, livre ou de mercado também está
em níveis similares aos da época da posse de Milei, mesmo com a inflação
de mais de 100% no período.
O economista Lorenzo Sigaut Gravina, da consultoria argentina
Equilibra, atribui principalmente o fato a uma iniciativa bem sucedida
do governo, que fez com que os argentinos introduzissem no sistema
financeiro do país os dólares em espécie guardados em casa ou
depositados no exterior e não declarados.
Na primeira etapa, a Argentina conseguiu o ingresso de US$ 19,023
bilhões (cerca de R$ 112,7 bilhões), segundo a Agência de Arrecadação e
Controle Alfandegário (ARCA, na sigla em espanhol).
Este sucesso conteve o dólar paralelo, que se manteve a uma taxa
levemente superior ao câmbio oficial – diferentemente dos anos
anteriores, quando a margem era muito ampla.
Efeitos na Argentina
O “peso forte” traz pontos positivos e negativos para o país. Por um
lado, o governo destaca que os salários aumentaram em dólar.
Um relatório da plataforma de empregos online Bumeran indica que o
salário médio pretendido na Argentina é de US$ 1.234 (cerca de R$ 7,3
mil), acima da média regional. Um ano atrás, era um dos mais baixos da
América Latina.
Mas a valorização da moeda local também gerou redução do número de
turistas estrangeiros que visitam o país e aumento dos argentinos que
aproveitam o “dólar achatado” para viajar para o exterior.
Dados do Indec demonstram que o número de turistas internacionais no
país registrou uma redução de 19,2% em novembro passado, em relação ao
mesmo mês de 2023.

Os salários na Argentina, que antes estavam entre os mais baixos da
América Latina, hoje estão acima da média regional.© Getty Images
A consequência mais preocupante do peso valorizado para muitos
moradores locais se concentra em setores como a indústria. Agora,
produzir ficou mais caro, tanto para o mercado local quanto para o
exterior, o que reduz a competitividade da indústria e do setor agrícola
argentino.
Some-se a isso a abertura das importações realizada pelo governo para
incentivar a concorrência e reduzir os preços locais. E, como
resultado, “será cada vez mais barato recorrer a produtos importados e
cada vez será mais cara a produção nacional”, segundo Sigaut Gravina.
Por isso, o setor industrial alertou que esta situação poderia gerar
queda da produção, com consequente redução dos postos de trabalho.
Os críticos mais fortes ao governo chegam a alertar sobre um possível
“industricídio”, como ocorreu no país na década de 1990. Na época, o
peso argentino estava vinculado ao dólar e muitas empresas acabaram
fechando.
‘Não haverá desvalorização’
Um dos economistas que alertaram sobre os efeitos negativos do
“superpeso” foi Domingo Cavallo, ex-ministro da Economia entre 1991 e
1996, durante o mandato do presidente Carlos Menem (1930-2021). Cavallo
foi apelidado na Argentina de “pai da convertibilidade“.
O ex-ministro declarou em dezembro que a atual “valorização real
exagerada do peso” é “similar” à que ocorreu no final de 1990 – “uma
deflação muito onerosa porque transformou a recessão iniciada no fim de
1998 em uma verdadeira depressão econômica”.
Na Argentina, a impressão de que o peso está artificialmente alto em
comparação com seu valor real no mercado internacional vem aumentando
entre a opinião pública e incomoda o presidente. Milei garante que seus
críticos estão errados.
“Do meu ponto de vista, o câmbio não está atrasado”, garantiu ele, em
entrevista à Rádio El Observador de Buenos Aires, no início de janeiro.
“É irritante e afrontosa a estupidez declarada [por Cavallo].”

A valorização do peso traz dificuldades para o setor produtivo na Argentina.© Getty Images
Para o presidente argentino, a pouca margem entre a cotação do dólar
oficial e paralelo, aliada ao valor acumulado pelo Banco Central em
reservas com a cotação atual (cerca de US$ 25 bilhões, ou R$ 148
bilhões), comprova que não existe atraso. “E ainda há o equilíbrio
fiscal”, destacou ele.
A economia do país, na leitura de Milei, não deve ganhar
competitividade enfraquecendo o peso, mas desregulamentando a economia,
reduzindo os impostos e melhorando o acesso ao crédito.
Para Sigaut Gravina, as palavras de Milei procuram conter a pressão para que o governo volte a desvalorizar a moeda argentina.
“Se todos nós tivermos a impressão de que existe um atraso cambial
significativo, todos irão pensar que o peso, desta forma, não se
sustenta”, explica ele.
Mas o economista ressalta que “o principal ativo do governo
atualmente é a queda da inflação – e desvalorizar implica, como efeito
imediato, aumento inflacionário”.
O Banco Central argentino anunciou que, a partir de fevereiro, irá
reduzir a desvalorização mensal do câmbio oficial de 2% para 1% ao mês,
fortalecendo ainda mais o peso.
Espera-se que esta estratégia ajude a continuar baixando a inflação,
que atingiu 2,7% ao mês em dezembro passado. Mas muitos se perguntam
qual será o prejuízo se o país continuar sendo “caro em dólares”.
De qualquer forma, o que realmente poderia definir a cotação do dólar
é o que irá ocorrer quando Milei suspender o controle de capitais, que
hoje restringe o acesso à moeda americana, e deixar flutuar o peso – uma
medida que o presidente prometeu tomar em 2025.