História de Mariana Schreiber – Da BBC News em Brasília – BBC News Brasil
Caso envolvendo Alexandre de Moraes e seus assessores ganhou destaque nos últimos dias© Getty Images
Decisões de grande repercussão do Supremo Tribunal Federal (STF) passam não só pelas mãos dos onze ministros, mas de assessores que trabalham muito próximo a eles.
Essa dinâmica, ainda pouco conhecida do público em geral, ganhou visibilidade nas últimas semanas com o vazamento de mensagens privadas trocadas por assessores do ministro do STF e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral Alexandre de Moraes.
As conversas, tornadas públicas pelo jornal Folha de S.Paulo,
mostraram Airton Vieira, juiz instrutor de Moraes no STF, orientando, a
pedido do ministro, a produção de relatórios no TSE sobre suspeitos de
propagar desinformação sobre o processo eleitoral e ataques a ministros
da Corte.
A conduta levantou críticas de que Moraes teria agido fora do rito
processual e de forma parcial, ao solicitar relatórios que foram,
depois, usados em inquéritos criminais para fundamentar decisões como
bloqueio de contas em redes sociais, suspensão de passaporte e
congelamento de contas bancárias.
Já outros especialistas dizem que o ministro atuou dentro do poder de
polícia da Justiça Eleitoral e apenas solicitou relatórios sobre
informações públicas divulgadas nas redes sociais — argumentos que o
próprio magistrado usou em declarações públicas para justificar sua
atuação.
A BBC News Brasil conversou com quatro ex-assessores de ministros do
STF sobre como funcionam os gabinetes na Corte. Os entrevistados
evitaram entrar no mérito da atuação de Airton Vieira e Moraes, mas
ajudaram a entender melhor a dinâmica dessas equipes de assessoramento.
A reportagem ouviu o advogado Davi Tangerino, professor da Fundação
Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) que assessorou o ministro aposentado Ricardo Lewandowski, atual
ministro da Justiça e Segurança Pública; com o advogado Felipe Fonte,
professor da FGV que atuou no gabinete do ministro aposentado Marco
Aurélio Mello; e com o magistrado Leandro Galluzzi, que foi juiz
instrutor dos ministro Cezar Peluso, já aposentado, e Teori Zavascki,
falecido em 2017.
Também foi entrevistada uma advogada que atuou no gabinete de um
ministro que ainda está na Corte, mas que preferiu não ser identificada
na reportagem.
Segundo os entrevistados, são os auxiliares de maior confiança que
costumam escrever, sob orientação e revisão dos ministros, as decisões
de maior impacto dos gabinetes.
Eles também supervisionam os funcionários em postos mais baixos nos
casos mais simples, o grosso dos milhares de processos ou recursos
analisados anualmente – decisões que, muitas vezes, nem passam pelos
olhos do ministro.
“Se alguém disser que os ministros leem 100% do que eles assinam, é mentira”, afirma Davi Tangerino.
Os ex-assessores também contam como é importante estar bem
relacionado, sobretudo em meios acadêmicos do Direito, para conseguir
participar das seleções para os gabinetes.
Uma linha jurídica semelhante à do ministro também é esperada.
Reconhecido por ser duro em ações penais, Moraes já fez piada pública
sobre a falta de garantismo – corrente do Direito que valoriza os
direitos dos acusados – do seu juiz instrutor, Aírton Vieira.
Não há quarentena para defensores assumirem casos no STF após deixarem os gabinetes© Getty Images
Os entrevistados também revelam um ritmo de trabalho intenso. A
ex-assessora que conversou com a reportagem diz que o ambiente é “muito
desafiador e estimulante intelectualmente”, mas também “estressante e
competitivo”.
“Você trabalha 100% do tempo”, disse ela, lembrando que os assessores
aproveitam as portas abertas pelo cargo para publicar livros e artigos.
O cargo também pode alavancar carreiras dos que voltam ao mercado da
advocacia após um período nos gabinetes, nota Tangerino. Não há
quarentena para defensores assumirem casos no STF, após deixarem os
gabinetes, ficando ao critério do ministro se declarar ou não suspeito
para julgar processos desse profissional.
“É uma oportunidade incrível de aprendizado. Alguns advogados depois
vão abrir um escritório e capitalizar em torno disso. Existe um jeito
absolutamente republicano de capitalizar que é dizer [aos clientes]: ‘Eu
tenho essa experiência, eu conheço o Tribunal por dentro'”, afirma.
“Mas também tem a turma que pode passar a vender acesso [ao
gabinete]. Então, quanto mais público for isso [quem são os assessores
dos ministros], mais se consegue controlar”, defende.
Entenda a seguir, em três pontos, o funcionamento dos gabinetes, como os assessores são selecionados e qual o perfil desse time.
O funcionamento dos gabinetes
O STF produz um volume enorme de decisões, em comparação a outros tribunais constitucionais.
A Suprema Corte americana, por exemplo, não costuma superar cem
decisões ao ano. Já o STF concedeu 101.970 decisões em 2023, sendo
17.320 colegiadas, tomadas pelo plenário e as duas turmas da Corte, e
84.650 individuais, proferidas pelos ministros isoladamente.
Para dar conta desse volume, cada gabinete tem de 30 a 40 pessoas
para assessorar os ministros na condução dos processos e na produção dos
votos.
Parte da equipe é composta por servidores concursados do STF, que
ocupam os cargos de analistas e técnicos judiciários, e parte por
profissionais de fora da Corte, selecionados pelos ministros, que podem
ser advogados, acadêmicos do Direito ou servidores de outros órgãos
públicos cedidos ao Supremo, principalmente do próprio Poder Judiciário.
Desses profissionais convidados a integrar os gabinetes, ao menos
três são juízes de primeira instância ou desembargadores, que exercem as
funções de juiz instrutor — que atuam nas ações criminais — ou juiz
auxiliar — que atuam nos demais casos.
Um dos cargos de confiança é ocupado pelo chefe de gabinete, que gerencia seu funcionamento.
Mas as funções consideradas mais importantes, dizem os entrevistados,
são desempenhadas pelos juízes e os assessores de ministro (dez em cada
gabinete).
Parte das vagas de assessores é ocupada por servidores concursados do
STF, que recebem uma comissão, mas a maioria costuma ficar com os
profissionais de fora da Corte.
O criminalista Davi Tangerino atuou entre 2007 e 2008 — época do
recebimento da denúncia do escândalo do Mensalão — como assessor de
Lewandowski, que deixou a Corte em 2023.
Ex-assessor de Lewandowski contou à BBC News Brasil como era o trabalho nos bastidores do STF© Getty Images
Ele divide o trabalho da equipe dos ministros em dois grupos
principais. Um deles, composto pelos servidores concursados do próprio
Supremo, costuma cuidar do grosso dos processos, aqueles casos que não
demandam uma atenção aprofundada dos ministros porque já têm
jurisprudência consolidada.
Nestes casos, os servidores replicam decisões já conhecidas dos
ministros em julgamentos anteriores semelhantes. Ainda assim, esse
trabalho tem a supervisão de algum assessor de confiança do ministro.
O outro grupo — formado pelos assessores e juízes convocados — cuida das ações mais complexas e sensíveis.
Esses auxiliares costumam ser divididos por tipos de ações, como
processos criminais ou as ações originárias (que começam no STF) que
abordam controle de constitucionalidade (por exemplo, se determinada lei
ou conduta fere um direito previsto na Constituição).
“E qual é o nosso papel? Analisar o caso e propor uma decisão para o
ministro. Agora, o jeito de fazer isso é muito diferente de um gabinete
para o outro. Tem ministro que realiza reuniões com a equipe para
debater os casos”, nota Tangerino
“O Lewandowski adiantava o que ele estava entendendo provisoriamente,
e eu rascunhava o voto naquele sentido. Com o tempo, você vai
entendendo o jeitão de decidir em alguns temas, e aí fica até
desnecessário [a conversa prévia]. O bom assessor tenta espelhar o
ministro, é quase um ghost writer”, ressalta.
O juiz instrutor, cargo que passou a existir apenas em 2009, tem uma
função mais específica. Ele sempre cuida de investigações e ações penais
originárias — ou seja, casos criminais que iniciam sua tramitação no
próprio Supremo, como os inquéritos das Fake News, que apura ataques
mentirosos à Corte, e das Milícias Digitais, que investiga milícias
digitais antidemocráticas e seu financiamento, ambos presididos por
Moraes.
Este juiz realiza as ações necessárias para o andamento de um
processo criminal, como colher o depoimento de suspeitos, réus e de
testemunhas; autorizar diligências para colheita de provas; e fixar
prazos para o cumprimento das etapas do caso.
Antes da criação desse cargo, a instrução processual era feita por
cartas de ordem, em que os ministros determinavam a juízes de todo o
país que fizessem a coleta de provas nas comarcas onde residiam
testemunhas ou réus.
“Os assessores próximos aos ministros, em geral, ocupam a segunda
hierarquia mais alta nos gabinetes, só perde para o do próprio ministro.
Esses assessores normalmente coordenam suas áreas”, ressalta o
magistrado Leandro Galluzzi, que atuou nos gabinetes de Peluso e
Zavascki de 2011 até o início 2014, principalmente como juiz instrutor.
“O juiz instrutor acaba sendo responsável também pelos assessores e
analistas [judiciários] que cuidam da parte penal. Não cuida só das
ações grandes, cuida também daquele habeas corpus que chega de
Pindamonhangaba. Sempre refletindo aquilo que já conhece do [modo de
decidir do] ministro”, acrescenta.
A criação do juiz instrutor veio em um contexto de alta das ações
penais contra autoridades no STF, após o escândalo do Mensalão (2005),
com objetivo de otimizar o funcionamento dos gabinetes.
Um dos primeiros a ocupar o cargo foi o hoje senador Sergio Moro
(União-PR). Ele atuou no gabinete da ministra aposentada Rosa Weber e
depois foi o juiz de primeira instância responsável por julgar os casos
derivados da operação Lava Jato.
Como os assessores são escolhidos?
Para ser assessor de um ministro do STF, não é preciso conhecê-lo
previamente, mas é importante estar bem conectado para que seu nome
possa chegar até ele ou ela. Estudar nas mais renomadas universidades
também costuma abrir portas.
O advogado Felipe Fonte, por exemplo, se tornou assessor do ministro
aposentado Marco Aurélio em 2011, por indicação dos professores da Uerj,
onde havia feito, até então, graduação e mestrado.
Ele conta que uma das filhas do ministro estava cursando disciplinas
do mestrado na universidade e disse que o pai procurava pessoas
qualificadas para o cargo de assessor.
“Eu mandei meu currículo através dos professores, fiz uma entrevista, e nosso santo bateu”, conta.
Fonte lembra que Marco Aurélio tinha alguns ritos próprios no seu
gabinete. Ele nunca quis o auxílio de juízes, pois preferia ser o único
magistrado em sua equipe.
Outra curiosidade é que o ministro não escrevia votos — em vez disso,
gravava suas decisões oralmente, que eram depois transcritas por um
setor de degravação do gabinete.
Marco Aurélio (à direita) não queria auxílio de juízes, pois preferia ser o único magistrado em sua equipe© Getty Images
Isso nem sempre era necessário. Se havia casos repetidos, em que a
posição do ministro já era sabida, os assessores redigiam os votos e
enviavam para ele assinar.
“Se não [fosse um caso já conhecido], eu escrevia um texto sugerindo
argumentos e vendo como ele queria que fosse encaminhado. Às vezes, ele
pedia para que a gente redigisse uma minuta, que sempre voltava para ele
mexer. O resultado prático disso é que o ministro Marco Aurélio era o
ministro com mais processos [acumulados] no gabinete”, recorda.
O juiz Leandro Galluzzi, do Tribunal de Justiça de São Paulo, também
foi trabalhar com o ministro aposentado Cezar Peluso em 2011 pela
indicação de colegas de faculdade, no caso dele, da Universidade de São
Paulo (USP).
Antes de ser juiz, ele havia trabalhado no Ministério da Justiça, com
Márcio Thomaz Bastos, nos primeiros governos Lula, o que também
valorizou seu currículo.
“Peluso não queria convocar um juiz que fosse conhecido dos seus
filhos, pois ele tem dois filhos juízes em São Paulo, para não parecer
proteção. Então, amigos que trabalhavam no gabinete dele e foram da
minha turma na faculdade me recomendaram, e eu fiz uma entrevista com o
ministro.”
Na ocasião, Peluso presidia o STF e o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), órgão que fiscaliza o Judiciário, e Galluzzi foi nomeado por lá
inicialmente, embora sua função principal fosse apoiar o trabalho do
ministro no Supremo.
Na época, recorda, não havia uma vaga disponível para trabalhar no
STF, porque os ministros tinham direito a dois juízes apenas (um
auxiliar e um instrutor), número que subiu para três em 2017.
Gabinetes com maior volume de trabalho na área penal, porém, têm,
excepcionalmente, mais auxiliares. Edson Fachin, principal relator da
operação Lava Jato no STF, tem cinco (um auxiliar e quatro instrutores).
Já Moraes, presidente de diferentes inquéritos criminais, tem quatro
(três auxiliares e um instrutor).
Depois, quando Peluso deixou a presidência do STF e do CNJ, Galluzi
se tornou juiz instrutor no seu gabinete no Supremo. Com a aposentadoria
do ministro em 2012, continuou por mais um ano com seu sucessor, Teori
Zavascki.
Galluzzi lembra que os dois tinham estilos muito diferentes.
“O Peluso era um estilo mais aberto, de reunir a equipe toda, várias
vezes, juiz e assessor. Com ele, as coisas eram menos hierarquizadas.
Com o Teori, havia uma hierarquia maior, inclusive em relação ao próprio
ministro com os juízes, os juízes com os assessores, os assessores com
os analistas”, conta.
“Eu tinha até mais poder com o Teori do que eu tinha com o Peluso,
embora a minha relação fosse muito mais próxima com o Peluso nas
reuniões que fazia com a equipe toda.”
Perfil dos assessores
Os ministros, ressaltam os entrevistados ouvidos pela BBC News
Brasil, tendem a valorizar assessores com visões e trajetórias próximas
às suas, além de profissionais dos seus Estados de origem.
Edson Fachin, por exemplo, que é do Paraná, tem boa parte dos seus
assessores de confiança cedido por órgãos daquele Estado, enquanto o
ministro Flávio Dino montou sua equipe com vários nomes do Maranhão, seu
Estado natal.
Moraes, que é paulista, tem muitos assessores vindos de São Paulo.
Conhecido por ter posições consideradas mais rigorosas na área penal,
ele buscou esse perfil ao escolher como seu juiz instrutor Airton
Vieira, magistrado que já se declarou, inclusive, a favor da pena de
morte.
Ao discursar na cerimônia de posse de Vieira como desembargador no
Tribunal de Justiça de São Paulo, o ministro destacou “a sua serenidade,
a sua competência, a sua tecnicalidade”, antes de brincar: “Eu só não
posso dizer aqui o seu garantismo [linha jurídica que valoriza os
direitos dos acusados], porque aí eu estaria mentindo demais. Nem um
semigarantismo existiria no Airton”.
Segundo os entrevistados, assessores que vêm da iniciativa privada,
como advogados, tendem a ter uma rotatividade maior nos gabinetes. Isso
porque a remuneração desse grupo não é alta quando comparada ao que
ganham advogados bem-sucedidos em seus escritórios.
Segundo o Portal da Transparência do STF, a remuneração mais comum
paga em maio (dado mais recente disponível) a assessores de ministros
sem vínculo com a Corte ou outro órgão público era de R$ 14.539,41
brutos. O valor mais alto era de R$ 18.683,14.
Já servidores concursados da Corte que chegam ao mesmo cargo
receberam, em média, R$ 30.422 brutos no mesmo mês, segundo cálculo da
reportagem a partir dos dados do STF.
Assessores cedidos de outros órgãos públicos mantêm seus salários
originais e recebem um adicional. O valor bruto mais comum pago pelo
Supremo em maio era de R$ 9.450,62.
Ex-assessores do STF dizem que o ambiente de trabalho é rico
intelectualmente e abre portas no mercado da advocacia e na área
acadêmica© Getty Images
Juízes também mantêm seu salário normal mais um adicional, cujo valor
mais comum em maio era de R$ 4.076,29. Além disso, ganham diárias por
estarem fora dos seu Estado de origem, que costumam somar mensalmente R$
10.653,50.
Para além da remuneração, o ambiente é descrito como rico
intelectualmente e uma experiência que abre portas no mercado da
advocacia e na área acadêmica, com mais oportunidades para publicar
artigos e livros. O ritmo de trabalho, recorda, é intenso.
“É um ambiente de disputa [entre os assessores] pela atenção [do
ministro] e de sarrafo bem alto. É muito desafiador e estimulante
intelectualmente. Nas reuniões, era comum um perguntar ao outro: ‘O que
você vai escrever nessas férias?'”, recorda.
Por outro lado, ressalta a advogada, “é um ambiente muito
estressante, você trabalha 100% do tempo”, o que torna difícil
“conciliar com outros aspectos da vida pessoal”.
Na sua avaliação, isso tende a atrair pessoas mais jovens e cria
desafios extras para mulheres que são mães, por exemplo, embora existam
assessoras com filhos em cargos importantes.
Esse contexto, aliado “ao ambiente muito masculino do Poder
Judiciário”, contribui para a maioria de homens nos cargos de confiança,
afirma.
“O Judiciário é um ambiente muito masculino, em geral, e, no Supremo,
tem esse ambiente de competição, de exaustão, de desafio, que torna
isso mais forte. Porque, socialmente, homens tendem a se colocar de
forma mais assertiva”, acredita.
“Isso é um desafio para muitas mulheres. Então, já tem um viés de
seleção de que tem que ser alguém que tem esse perfil, ou que adquira
esse perfil, para conseguir se manter.”