História de Rone Carvalho – De São José do Rio Preto (SP) para BBC News Brasil
Por que o Brasil tem a população mais depressiva da América Latina© Getty Images
Foi a dificuldade para dormir e o constante desânimo que fizeram Maria*, de 60 anos, procurar ajuda médica.
Na consulta, ela descobriu uma doença que nunca imaginou ter, mas que
tem se tornado cada vez mais comum nos consultórios brasileiros: a depressão.
“É uma doença que vai te afundando, pois você fica angustiada
constantemente. Tanto que você não quer levantar da cama, pois é só
dormindo que você não sente nada”, descreve.
Assim como Maria, 300 milhões de pessoas no mundo sofrem de depressão, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).
O Brasil é o país com a maior prevalência desta doença na América
Latina, de acordo com o relatório “Depressão e outros transtornos
mentais”, da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Dados do último mapeamento sobre a doença realizado pela OMS apontam
que 5,8% da população brasileira sofre de depressão, o equivalente a
11,7 milhões de brasileiros.
Em seguida, aparecem Cuba (5,5%), Barbados (5,4%), Paraguai (5,2%), Bahamas (5,2%), Uruguai (5%) e Chile (5%).
A nível continental, o Brasil aparece atrás apenas dos Estados
Unidos, onde segundo a OMS, 5,9% da população sofre de transtornos de
depressão.
Um estudo epidemiológico mais recente do Ministério da Saúde revela
que nos próximos anos até 15,5% da população brasileira pode sofrer depressão ao menos uma vez ao longo da vida.Uma
soma de fatores explica a alta incidência de depressão entre os
brasileiros, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil:
- Dificuldade de acesso a tratamento de qualidade na rede pública de saúde;
- Forte estigma social ainda existente no país em relação aos transtornos mentais;
- Falta de um protocolo de atendimento para a depressão.
A OMS aponta que o número de pessoas que sofrem de doenças mentais
comuns está aumentando no mundo inteiro, principalmente em países de
baixa renda.
E alerta que, apesar da depressão atingir pessoas de todas as idades e nível de renda, o risco de alguém ficar deprimido aumenta com a pobreza,
o desemprego e com fatos da vida, como a morte de uma pessoa próxima, o
fim de um relacionamento, debilitação física ou problemas causados pelo
consumo de álcool ou drogas.
5,8% da população brasileira sofrem com depressão, segundo OMS© Getty Images
“O Brasil é um país com uma carga tributária alta e com uma
remuneração média baixa. Isso faz com que a população tenha que
trabalhar muito mais do que outras para conseguir atingir serviços
básicos que não são oferecidos com qualidade pelo Estado, o que acaba
sobrecarregando a saúde mental dos brasileiros e desencadeando
transtornos mentais, como a depressão”, diz Volnei Costa, médico
psiquiatra e presidente do conselho científico da Associação Brasileira
de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata).
O chefe do grupo de Psiquiatria Intervencionista do Instituto de
Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), André Brunoni, destaca a
forte desigualdade existente no país, inclusive no acesso a tratamento
adequado.
“Estudos mostram que pessoas expostas a situações de violência,
estresse e vulnerabilidade social tendem a ter maiores chances de
diagnóstico e sabemos que, infelizmente, ainda existe essa diferença até
no tratamento oferecido entre a rede pública e particular”, afirmou o
pesquisador.
Ainda segundo os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil, o menor
índice de subnotificação de casos de transtornos mentais, em relação aos
demais países, pode também explicar o Brasil ter mais casos de
depressão na América Latina.
Mulheres são mais suscetíveis
Na lista de pessoas mais suscetíveis a ter depressão, mulheres
aparecem na liderança. Segundo a OMS, elas apresentam duas vezes mais
chances de terem o diagnóstico da doença do que os homens.
“Do ponto de vista biológico, os menores níveis de testosterona
acabam deixando a mulher mais exposta à doença. Por outro lado, na
questão social e psicológica, a mulher corriqueiramente está em uma
posição de maior vulnerabilidade que o homem e acaba ficando com muitas
obrigações, o que aumenta as chances delas terem mais diagnósticos do
que eles”, disse Volnei.
Dartiu Xavier da Silveira, pesquisador da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), que estuda depressão há anos, também ressalta que
historicamente idosos e adultos jovens (18 a 29 anos) apresentam mais
chances de terem o diagnóstico da doença do que outras faixas etárias.
“Trata-se de uma doença cuja gênese é multifatorial. Ocorre em
decorrência da somatória de fatores diversos, tais como: predisposição
genética, meio ambiente adverso ou hostil, relações interpessoais
insatisfatórias, dificuldades em ser reconhecido dentro de uma
comunidade. No entanto, quanto melhor for a qualidade de vida como um
todo, menores serão as chances de uma pessoa desenvolver um quadro de
depressão”, ressaltou.
Preconceito ainda é barreira
Maria, que resolveu procurar ajuda após diversas tentativas de se
“curar” sozinha da depressão, considera que o forte estigma ainda
existente sobre a doença cerceia mulheres de procurar ajuda.
“Infelizmente, o preconceito contra a depressão é real. Cansei de
ouvir gente dizer que o que tinha era frescura. No meu antigo trabalho,
por exemplo, nunca pude falar que tinha depressão, pois eles não queriam
me entender. Em uma das minhas crises, a gerente de RH subiu para falar
comigo e me deu uma bronca por estar chorando na frente dos meus
colegas.”
Volnei Costa, da Abrata, diz que a percepção estigmatizada do passado
sobre transtornos mentais é um problema que precisa ser encarado pelo
Brasil junto com o aumento de casos da doença.
“Por cerca de 16 séculos, os transtornos mentais ficaram retardos de
serem cientificamente pesquisadas e ficaram no controle da igreja, que
tratava os fenômenos de saúde mental como manifestações demoníacas. Isso
cravou na percepção humana o entendimento que transtorno mental é algo
errado, algo de quem não tem fé, é fraco ou não consegue se comunicar
com o divino. É um pensamento que até hoje tentamos combater”, afirmou
Volnei.
O problema é que o estigma muitas vezes desencadeia o diagnóstico tardio, tornando a doença crônica, segundo especialistas.
“O ideal é que desde cedo o paciente seja tratado, mas o que acontece
muitas vezes é que procurar ajuda especializada é um dos últimos atos.
Antes, o paciente tenta de tudo para evitar ser taxado como doente
mental pela sociedade”, disse Mariza Theme, pesquisadora da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Com o objetivo de combater este preconceito, desde 2014, a Associação
Brasileira de Psiquiatria (ABP) lançou uma campanha contra a psicofobia
– como é chamado o preconceito sofrido pelas pessoas que padecem de
doenças mentais.
“O combate ao estigma e a psicofobia são primordiais para salvar
vidas e auxiliar a sociedade a compreender e identificar casos. É
extremamente importante falar sobre saúde mental, discutir os principais
sinais e fatores de alerta para identificar uma doença, assim tratar do
assunto sem preconceito e o tabu que já lhe são atribuídos”, diz
Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de
Psiquiatria (ABP).
Atendimento especializado
Contudo, engana-se quem pensa que o preconceito é a única barreira enfrentada por quem tem depressão no Brasil.
O acesso ao atendimento especializado na rede pública de alguns
municípios brasileiros também dificulta a vida de quem tem depressão no
país, segundo especialistas.
Levantamento feito pelo Instituto República.org com base em dados do
Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), mostra que
existem apenas 19 psicólogos para cada 100 mil habitantes no Sistema
Único de Saúde (SUS) do Brasil.
Em alguns países da Europa, esse número de profissionais chega a ser superior a 40 para cada 100 mil habitantes.
“A ausência desses profissionais nas unidades públicas de saúde, seja
no suporte individual ou coletivo, contribui para uma falta de
prevenção de transtornos e também dificulta um tratamento mais adequado
em relação a transtornos e doenças mentais”, disse Paula Frias, mestre
em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
e analista de dados da República.org.
No Brasil, os estados do Pará, Ceará, Amazonas e Maranhão aparecem
como os que possuem o menor número de psicólogos atendendo na rede
pública de saúde.
“Isso acaba dificultando o diagnóstico, fazendo com que muitas
pessoas sejam subtratadas e, quando tratadas, o tratamento é feito de
forma tardia ou até com medicamentos incorretos”, disse Elton Kanomata,
médico psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein.
Ao mesmo tempo, segundo a cientista política Paula Frias, ainda paira
no senso comum do brasileiro uma ideia de que o cuidado com a saúde
mental é um luxo ou algo que deve ficar em segundo plano.
“Isso se deve muito a uma noção de que apenas a saúde física importa e
em primeira instância é ela que torna a pessoa ‘funcional’. Essa ideia
de tornar o indivíduo funcional e não ter uma preocupação com o seu
completo bem-estar afasta, muitas vezes, o senso de urgência em absorver
para a competência do Estado essa assistência à saúde mental e
psíquica”, afirmou Paula.
Por que o Brasil tem a população mais depressiva da América Latina© Getty Images
‘Falta protocolo de atendimento’
Para o médico psiquiatra André Brunoni, da USP, muito além de
profissionais, falta um protocolo de atendimento aos pacientes com
depressão na rede pública de saúde do Brasil.
“Nossa rede de atenção à saúde mental não é bem estruturada de ponta a
ponta. Hoje em dia, por exemplo, é muito difícil ter acesso a
psicoterapia pelo SUS. Sem contar que muitos antidepressivos que existem
na rede pública não são atualizados há anos. Isso cria um abismo de
tratamento de transtornos mentais entre rede particular e pública”,
disse Brunoni.
Para ele, é necessário um maior investimento do poder público
brasileiro na rede de atendimento as vítimas de transtornos mentais.
“Pode parecer que o tratamento de transtornos mentais é caro, mas
isso nem se compara com outras áreas da Medicina. Hoje, infelizmente, os
gastos com saúde mental normalmente representam apenas 2% do orçamento
da saúde.”
A opinião é compartilhada pelo presidente do conselho científico da Abrata, Volnei Costa.
“A maior parte da população brasileira precisa do SUS e muitas vezes
os profissionais da rede não estão treinados para diagnosticar
precocemente a saúde mental, fazendo com que o quadro da doença avance
para uma depressão mais grave”, explicou.
Volnei também defende uma ampliação do horário de atendimento especializado.
“Hoje, o sistema de saúde a nível ambulatorial do Brasil não está
preparado para atender aquelas pessoas com depressão que trabalham no
horário comercial. É preciso facilitar esse atendimento para que mais
pessoas tenham acesso.”
O que diz o governo
O Ministério da Saúde disse à BBC News Brasil, por meio de nota, que
vem trabalhando para aumentar o atendimento em saúde mental e que presta
atendimentos para pessoas com depressão na Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS).
“Para promoção de amplo atendimento em saúde mental, o Ministério da
Saúde ampliou o orçamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) com
investimento de mais de R$ 200 milhões em 2023. Ao todo, o recurso
destinado para todos os estados e Distrito Federal será de R$ 414
milhões no período de um ano. A expectativa é que a Rede de Atenção
Psicossocial tenha crescimento anual superior a 5% nos próximos quatro
anos”.
Ainda segundo a pasta, o repasse será direcionado para os 2.855
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) existentes no país e para os 870
Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT).
Por que o Brasil tem a população mais depressiva da América Latina© Getty Images
“Além do investimento, o Ministério da Saúde habilitou novos serviços
para expansão da rede em todo país. Desde março, foram 27 novos CAPS,
55 SRT, 4 Unidades de Acolhimento e 159 leitos em hospitais gerais – a
maioria nos estados do Nordeste. Os novos serviços foram habilitados em
Alagoas, Bahia, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande
do Norte, Sergipe, Acre, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná
e Rio Grande do Sul. Para o custeio desses novos serviços serão
investidos R$ 32.389.256,00 ao ano”, disse a nota.
O Ministério da Saúde também informou que, atualmente, a organização
da rede pública para atendimento de pacientes com transtornos mentais
está configurada em quatro níveis:
- Organização por níveis de cuidado: a Atenção
Primária é a principal porta de entrada para o SUS. Esta envolve
promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação,
redução de danos, vigilância em saúde, com atendimento preferencial para
casos de depressão e ansiedade leve e moderada. Até junho de 2023,
foram realizados 10.866.381 atendimentos na Atenção Primária à Saúde
(APS) a pessoas que apresentavam condições relacionadas à saúde mental.
- Serviços especializados: para casos mais complexos,
o acompanhamento é prioritariamente realizado pelos serviços
especializados da RAPS. Isso inclui atendimento em Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), serviços de urgência e emergência, UPAs e Pronto
Atendimento. Além disso, havendo justificativa clínica, há a
possibilidade de cuidado em leitos de saúde mental em hospital geral.
- Acolhimento e encaminhamento: outra forma de acesso
é quando o próprio usuário do SUS procura diretamente os serviços de
saúde, ou por meio de encaminhamento de outros setores interligados,
como Assistência Social, Educação e Justiça.
- Medicação gratuita: por fim, o Ministério da Saúde
informou que o SUS também fornece medicação para o tratamento de
depressão em unidades de saúde pública e Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS).
Tipos de depressão
Transtorno depressivo maior (depressão clássica): o
indivíduo apresenta humor deprimido quase todos os dias, grande
diminuição do interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades;
perda ou ganho significativo de peso sem estar fazendo dieta; insônia
ou hipersonia diária; agitação ou retardo psicomotor; fadiga ou perda de
energia; sentimentos de culpa e inutilidade; capacidade reduzida para
pensar, concentrar-se ou indecisão; e pensamentos de morte (medo de
morrer e ideação suicida).
Transtorno depressivo persistente (distimia): este transtorno representa uma consolidação dos transtornos depressivo maior crônico e transtorno distímico e tem
como sintomas o humor deprimido constante por pelo menos dois anos
(para adultos) ou pelo menos um ano (para crianças e adolescentes) em
conjunto de duas ou mais das seguintes características: apetite
diminuído ou alimentação em excesso; insônia ou hipersonia; baixa
energia ou fadiga; baixa autoestima; ou sentimentos de desesperança.
Depressão pós-parto: é um transtorno que acomete
mulheres após o parto, sendo caracterizada por uma tristeza profunda.
Pode promover falta de interesse por atividades diárias, insônia,
cansaço extremo, ansiedade, sentimento de culpa, falta de conexão com o
bebê, entre outros sintomas.
Transtorno disfórico pré-menstrual: os sintomas
deste transtorno apresentam-se na maioria dos ciclos menstruais na
semana final antes do início do ciclo e apresenta melhora poucos dias
depois do início da menstruação, até se tornarem mínimos ou ausentes na
semana pós-menstrual e pode apresentar sintomas como: instabilidade
afetiva acentuada; irritabilidade ou raiva acentuada; ansiedade e tensão
acentuados; e baixo interesse em atividades habituais.
Transtorno bipolar: é uma condição de saúde mental
que causa mudanças extremas de humor. Conhecido anteriormente como
psicose maníaco-depressiva, se caracteriza pela alternância de períodos
em que a pessoa fica mais exaltada (mania), de episódios de depressão
(hipomania) e de normalidade.
*A reportagem resguardou o nome verdadeiro de Maria.