sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

POLÍTICOS PREFEREM NARRATIVAS DO QUE FATOS IMPORTANTES NAS ELEIÇÕES

 

  1. Política 
  2. Eleições 

Para o analista, as retóricas eleitorais ‘aplainam” a complexidade do mundo político e econômico e no fim uma delas se torna hegemônica e ganha o pleito

Entrevista com

Fernando Schüler, cientista político, professor do Insper e comentarista político

José Fucs, O Estado de S.Paulo

O cientista político e comentarista Fernando Schüler, também professor do Insper, uma escola de negócios de São Paulo, é um dos raros acadêmicos da área no País que procura analisar o cenário político de um ponto de vista independente.  

Nesta entrevista ao Estadão, Schüler diz que é uma “ilusão” imaginar que as grandes questões nacionais vão pautar a campanha eleitoral neste ano. Segundo ele, a contradição existente entre a complexidade das políticas públicas e o déficit de informação dos cidadãos comuns se manifesta de forma acentuada nas eleições, levando os candidatos a simplificar os discursos, para atingir a massa do eleitorado. “No momento das eleições, toda a complexidade do mundo político é aplainada e substituída por grandes narrativas que competem entre si”, afirma. “No fim, uma delas termina sendo hegemônica e ganha as eleições.”

De acordo com Schüler, os candidatos da terceira via têm de encontrar uma narrativa que fale aos corações e mentes da maioria dos eleitores e consiga se contrapor aos enredos adotados pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, centrado na ideia de que “nós já fomos mais felizes no passado”, e pelo presidente Jair Bolsonaro, focado em argumentos como “não me deixaram governar” e “eu sou a chance de a agenda conservadora ter algum avanço”. PUBLICIDADE

Fernando Schüler
Schüler: ‘É otimismo imaginar que haverá debate sério sobre economia’ Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO – 16/4/1028

Na avaliação de Schüler, as narrativas do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro – que tem como um dos pilares a necessidade de o Brasil retomar o combate à corrupção – e do governador de São Paulo, João Doria – que se concentra na agenda “gerencialista”, de modernização do Estado, também encampada, em boa medida, por Moro – não têm apelo popular para levar um dos dois ao segundo turno. “A agenda ‘gerencialista’ é forte no mundo empresarial, no mercado financeiro, entre os economistas e em uma certa elite intelectual, mas tem um alcance menor na sociedade”, diz. “Hoje, a luta contra a corrupção não é a grande pauta brasileira.”

Além de ter de enfrentar a pandemia, o Brasil vive hoje um quadro complicado tanto na economia quanto na política. Neste cenário, como o sr. vê eleições de 2022? 

Acredito que a grande pergunta neste início de ano é qual será a pauta que vai, de alguma maneira, presidir as eleições. Em 2018, havia problemas estruturais e econômicos tanto quanto nós temos hoje. Acho, inclusive, que desatamos alguns nós, embora tenhamos criado outros. Fizemos um pedaço da tarefa de casa com a reforma da Previdência. Houve um processo de austeridade e hoje temos o menor número de funcionários federais na ativa, desde 2011. Mas obviamente deixamos muita coisa pra trás. O governo abdicou desde o início de promover uma reforma do Estado, as reformas administrativa e tributária não andaram. Não apenas pela falta de convicção do governo, mas também em razão da pandemia e da procrastinação do Congresso. Não dá para fazer uma análise simplista disso. Em 2021, mesmo com a gambiarra produzida com a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) dos Precatórios, a expansão de gastos aprovada no fim do ano, para custear o Auxílio Brasil e outros projetos de interesse do governo, chegamos a um resultado das contas públicas muito melhor do que apontavam as projeções de mercado.

Que nós o sr. diz que foram criados nos últimos anos e que não existiam em 2018?

Hoje, temos uma inflação mais alta e em 2018 tínhamos um processo descendente de inflação. Estávamos num processo de redução da taxa de juro e agora estamos num processo de aumento. Estávamos num processo de reequilíbrio fiscal e hoje temos uma enorme interrogação sobre a política fiscal, apesar do bom resultado alcançado no ano passado. Em 2018, o teto de gastos havia sido aprovado há dois anos, e demandava um conjunto de reformas para lhe dar sustentação. O País vinha de um ciclo de crescimento baixo e as reformas haviam sido paralisadas no fim do governo Temer. Ainda assim, a pauta econômica não foi o tema central na campanha eleitoral. O que a gente discutiu? Guerra cultural, kit gay, redução da maioridade penal, escola sem partido, um certo discurso moralista. Mesmo no terreno da corrupção, não discutimos nada muito objetivo, projetos concretos para enfrentar a questão, mas apenas as grandes bandeiras, que tem um certo simbolismo e são mais fáceis de entender, como prisão em segunda instância, o balanço da Lava Jato ou se alguém era a favor ou contra o foro privilegiado. E, por aí, ficamos. Essas questões estão muito longe de ser as mais importantes, mas surgem na epiderme da política e pautam o debate público. 

Como, afinal, esse quadro que o sr. descreveu deve afetar as eleições deste ano? 

É muito difícil saber qual será a pauta da campanha. No momento das eleições, toda a complexidade do mundo político é, de certa forma, aplainada e substituída por grandes narrativas que competem entre si. No fim, uma delas termina sendo hegemônica e ganha as eleições. É uma ilusão imaginar que haja uma conexão entre o que se passa nas eleições e a pauta que mobiliza uma certa camada afluente na sociedade, nos terrenos da economia, do jornalismo, das políticas públicas ou no meio empresarial. Embora o País precise de uma reforma administrativa, isso não será pauta da campanha. Isso vale para a reforma tributária e para a discussão sobre o que fazer com a educação pública. As eleições trituram a complexidade que é própria das políticas públicas. Há uma contradição, que faz parte da natureza da democracia, entre a complexidade dos temas envolvidos nas escolhas públicas e o permanente déficit de informação das pessoas. Muita gente imaginou que a abundância de informação oferecida pela internet poderia resolver isso, mas não resolveu. Hoje é difícil distinguir com clareza o que é ficção e o que é realidade 

É interessante que o sr. fala em déficit de informação por parte das pessoas e de abundância de informação ao mesmo tempo.

Esse é o paradoxo. Com a revolução tecnológica, há uma enorme massa de informação disponível, um overload de informações, que se apresentam de maneira caótica. Mas as pessoas têm pouco incentivo para buscar informação relevante, separar o joio o trigo, verificar o que é verdadeiro e o que é fake, e agir com responsabilidade. Não é à toa que o grande tema contemporâneo são as fake news, porque você não consegue distinguir exatamente o que é verdadeiro e o que é falso. Em muitos sentidos, o mundo em que vivemos confirma a profecia de Jean Bauldrillard (1929-2007), o filósofo da hiper-realidade, de que é cada vez mais difícil distinguir com clareza entre a ficção e a ealidade. É como se o mundo virtual colonizasse o mundo real. Esse fenômeno é amplificado pelo ingresso de milhões de pessoas no ativismo político, pela via digital. Os indivíduos adquiriram poder, mas tiveram nenhum incentivo a mais para agir com responsabilidade no mundo político. 

O sr. poderia dar um exemplo concreto para ilustrar o que está falando?

Há alguns dias, por exemplo, houve uma operação pela Polícia Federal que atingiu os irmãos Ciro e Cid Gomes (respectivamente pré-candidato à Presidência pelo PDT e senador pela mesma sigla), por suspeitas de irregularidades em obras do estádio Castelão, em Fortaleza. Imediatamente, o que se viu foi uma pequena guerra de narrativas. Opositores de Ciro aplaudiram a operação; seus apoiadores ou potenciais aliados sugeriram que ela tinha “motivação política”. É previsível que os agentes políticos ajam desta maneira. Muita gente da própria mídia ou da academia, sem dispor de nenhuma informação objetiva sobre o que efetivamente aconteceu, chancelou uma ou outra visão sobre a natureza “política” – ou não – da operação. Escutei gente garantindo que a operação era a “prova” de que há uma polícia política no Brasil. Sempre a partir de um raciocínio de tipo impressionista, no qual se supõe que um punhado de episódios dispersos, reunidos a partir de uma certa “lógica”, sirvam como prova de alguma coisa. 

É provável que isso tenha a ver com todas as trocas que houve na Polícia Federal nos últimos tempos, influenciadas pelo presidente Jair Bolsonaro…

Uma operação da Polícia Federal é autorizada pelo Poder Judiciário. Então, deveríamos não apenas ter uma polícia política, mas um Judiciário político também. Conhecendo as instituições de Estado no Brasil, acho improvável isso acontecer. É evidente que instituições de Estado erram. Recentemente, escrevi um texto sobre aquela operação contra o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2017, que acabou com o suicídio dele. Para mim, aquilo foi um erro. Agora, isso não significa que uma instituição de Estado, como a Polícia Federal, ou qualquer outra, esteja corroída em sua estrutura, funcionando com finalidade política, sem que ninguém – o Ministério Público ou a própria mídia – denuncie isso com base em informações objetivas. Não estou dizendo que isso, em tese, não esteja ocorrendo. Apenas que não temos informações suficientes para dizer se está ou não, ainda que as pessoas se comportem como tivessem. 

O sr. poderia citar algum outro exemplo desse conflito entre a ficção e a realidade hoje?

Há inúmeros casos nesta direção, que atingem tanto a direita quanto a esquerda. São interpretações fantasiosas e irresponsáveis sobre acontecimentos reais, cujo efeito prático pode ser muito mais grave do que o de uma fake news. De certa forma, se a gente fizer um balanço do que falaram contra o Bolsonaro no ano passado, vamos ver que muita coisa não tinha base real. Disseram, por exemplo, que teria havido uma tentativa de golpe na manifestação de 7 de setembro e que haveria uma invasão do STF (Supremo Tribunal Federal) e do Congresso. Era pura fantasia, um exercício do que o (escritor italiano) Umberto Eco chamaria de ‘irrealidade’. Agora, pergunta se dois, três dias depois alguém disse ‘olha, nós nos enganamos’. É claro que não. Embora fundamental para o País, a agenda de modernização do Estado não é sexy para o eleitor médio

Agora, voltando ao tema da pauta das eleições, alguns analistas dizem que ela vai se concentrar nas grandes questões da economia. como o sr. analisa isso?

Isso é o que eu chamo de wishful thinking (pensamento positivo). As pessoas sempre acham que é lógico que esta seja a pauta, porque cada um tem um certo viés. Agora, uma pesquisa recente que eu analisei mostrou que, no campo das pessoas que dão suporte ao Bolsonaro, a pauta vai ser “não nos deixaram governar”, “não conseguimos fazer o que era preciso para derrotar o sistema”, “a pandemia foi usada pelo sistema político para parar a grande transformação que seria feita pelo capitão”, “ele merece mais um mandato para terminar sua obra restauradora”. Do outro lado, você vai ter uma grande narrativa em torno do Lula, na linha de que “já fomos mais felizes no passado”, “com o Lula, o Brasil viveu um grande momento, havia quase pleno emprego”, “o Brasil ocupava um lugar de destaque no mundo, era a bola da vez”, e “só o Lula para reconstruir tudo que foi destruído nos últimos anos”. É previsível que isso aconteça. Os marqueteiros de campanha sabem como lidar com essas narrativas. Então, acredito que é otimismo demais imaginar que alguma discussão econômica séria vai pautar o grande debate eleitoral, especialmente no caso de medidas duras que o País precise tomar. Oxalá isso acontecesse. A campanha seria muito mais positiva.

Agora, entre os candidatos da chamada terceira via, qual deve ser a pauta, de acordo com essa pesquisa que o sr. mencionou?

Do lado da terceira via, você tem uma narrativa do (ex-juiz e ex-ministro da Justiça e Segurança Pública) Sergio Moro (pré-candidato pelo Podemos) dizendo “o Brasil precisa retomar o combate à corrupção”, “a Lava Jato foi um movimento inédito na história do Brasil, que levou à condenação de grandes políticos e empresários, mas foi abortado, em boa medida, pelo sistema político, e é preciso retomar o seu fôlego”. Agora, na faixa da terceira via, haverá também uma narrativa tradicional, que eu chamaria de “gerencialista”, típica do chamado centro liberal, cujo principal representante é o (governador paulista) João Doria, do PSDB, ainda que não só ele. O partido Novo também apresenta esse viés. A narrativa “gerencialista” retoma de certo modo a lógica de que “Brasil precisa de um choque de capitalismo”, que foi a bandeira levantada pelo (ex-senador e ex-governador de São Paulo) Mário Covas (1930-2001), na campanha de 1989. 

O que exatamente seria essa narrativa “gerencialista” associada ao Doria e ao partido Novo?

Seu foco são os temas de modernização do Estado e de eficiência das políticas públicas. A equipe econômica de Doria, já na arrancada da campanha, dá sinais claros de que suas propostas vão seguir nesta direção, reforçando a responsabilidade fiscal e a necessidade de se avançar no programa de reformas e de abrir a economia. É uma agenda forte no mundo empresarial, no mercado, entre os economistas e em uma certa elite intelectual, mas tem um alcance menor na sociedade – e tem alguns problemas. É uma agenda que diz: “É preciso adotar medidas duras e impopulares para o Brasil deslanchar”. Além de mexer com interesses corporativos bem estabelecidos na sociedade, não é propriamente uma agenda sexy e mobilizadora. O (ex-presidente Michel) Temer implementou essa pauta, porque não tinha ambições eleitorais e podia correr o risco de adotar medidas consideradas “impopulares”, ainda que fundamentais para a modernização do País.O Lula acena para a esquerda na segunda-feira e na terça, para o Geraldo Alckmin

O que leva o sr. a dizer que essa agenda “gerencialista” não é “sexy” e é pouco atraente para a sociedade?

Nossa experiência eleitoral recente, as pesquisas e a simples observação do debate pré-eleitoral indicam isso. A agenda “gerencialista” é, sem dúvida, a pauta necessária para o Congresso Nacional. Diria que ela é central para a retomada da economia, dentro de visão de longo prazo para o País, mas envolve temas complicados e notícias duras no curto prazo. São questões difíceis de abordar numa campanha de massas. Em 2018, foi assim. O Bryan Caplan, autor do livro The Myth of The Rational Voter (O mito do eleitor racional), mostra que muitos dos temas da agenda “gerencial” ou de mercado vão contra as intuições do eleitor médio. Um dos vieses tradicionais dos eleitores é a tendência de sempre desconfiar ou não entender bem os ganhos de médio e longo prazos da economia de mercado. Outro é achar que a tecnologia destrói empregos. Ou que a economia está sempre piorando. Imagine o quanto é difícil dizer numa campanha eleitoral que “precisamos ir além na reforma trabalhista, flexibilizando mais alguns pontos da legislação, para estimular a competição e a produtividade, mas no longo prazo todos irão ganhar”. Ou então “vamos abrir a economia e será ótimo que as nossas empresas concorram com o pessoal que vem de fora”. Será que esse tipo de discussão está na cabeça das pessoas? Eu me lembro do (ex-governador de São PauloGeraldo Alckmin, do Henrique Meirelles (ex-presidente do Banco Central e ex-ministro da Fazenda) e do João Amoêdo (fundador do partido Novo) tentando colocar essa discussão na pauta em 2018. Não vingou. A pergunta é: será que neste ano vai ser diferente? Provavelmente, não.

Agora, quando falei que alguns analistas estão dizendo que as questões econômicas vão pautar as eleições, estava me referindo a coisas mais básicas, como salário mínimo, renda, desemprego, inflação, preços de alimentos, juro alto, e não a aspectos de política econômica macro, coisa de economista. 

Considero estas questões como sociais. Elas estão no radar das pessoas, porque a eleição vai acontecer ainda num cenário de inflação e de juros altos, embora eventualmente em declínio. O problema é que há um certo risco aí de o debate enveredar pelo populismo, de um candidato dizer que isso está acontecendo por causa desta ou daquela reforma, que precisa ser revista, ou prometer um programa de transferência de renda ainda mais robusto que o que temos hoje. Não digo que isso irá acontecer, mas é um risco. O Lula, obviamente, é o candidato que tem a sua história mais associada a esses temas e uma narrativa econômica vinculada a conceitos como crescimento, salário mínimo, trabalhador, renda, pobreza. Isso remonta a sua história no sindicalismo e à memória positiva de seu governo. Ele não é um personagem da guerra cultural e fala com um País que a esquerda hoje tem dificuldade em falar. Diria que a pauta social, em sentido amplo, é uma espécie de chão da fábrica do Lula, tanto quanto a agenda conservadora no plano comportamental é para o Bolsonaro. Ele se sente bem falando de armas, do combate às políticas de gênero, da soberania nacional, do risco das reservas indígenas, da “nossa” Amazônia. A defesa que ele passou a fazer mais recentemente das “liberdades” e mesmo a agenda econômica liberalizante ficam estranhas em Bolsonaro. Soam distantes de suas convicções, além de ter um apelo eleitoral duvidoso, como falei há pouco. 

Como o sr. vê as perspectivas dessas narrativas nas eleições de 2022? Quais devem se sobressair?

Acredito que, neste início de ano, três grandes narrativas surgem como as mais potentes. Uma, como falamos, é a que olha para trás, que é a narrativa do Lula, dizendo “nós precisamos retomar algo que perdemos, precisamos de uma liderança que em algum momento entregou algo positivo para o País”. O Lula tem 45% ou 48%, nas pesquisas, sem deixar claro o que vai fazer no governo. Há muita gente preocupada com o teto de gastos, horrorizada com a quebra feita pela PEC dos Precatórios, apreensiva com a continuidade das reformas, mas não dá lá muita bola quando o Lula diz que é contra o teto e que vai reverter a reforma trabalhista. Muita gente faz o seguinte raciocínio: “O Lula já disse muito coisa nessa linha, mas depois teve aquela boa gestão econômica com o (Antonio) Palocci (ex-ministro da Fazenda), lá atrás”. O Lula é um extraordinário estrategista e sabe lidar bem com a ambiguidade. Acena para a esquerda na segunda-feira e na terça, para o Geraldo Alckmin. De certo modo, entende a complexidade brasileira. Ele pode até manter seu apoio a ditaduras latino-americanas, porque sabe que, no fundo, ninguém está preocupado com isso. Seu governo está fortemente associado a um momento positivo da vida brasileira, independentemente de ele ter se beneficiado do ciclo de alta das commodities no mercado internacional. Acredito que o Lula também venceu o jogo no tema da corrupção. As decisões do Supremo equivalem, de modo geral, no debate público mais amplo, a um atestado de idoneidade para ele. Não entro no mérito se a decisão foi certa ou errada, mas é um fato. Esse cenário, evidentemente, pode mudar com o debate eleitoral. É o que nós vamos ver nos próximos meses.A rigor, a grande entrega do Bolsonaro para o público conservador foi a indicação do André Mendonça para o STF

Fora a narrativa do Lula, que outras devem se destacar e ter mais alcance na campanha?

Outra narrativa que surge com potência é a do Bolsonaro. Além de privilegiar pontos como “não me deixaram governar” e “houve a pandemia, o sistema, o Supremo, e eu preciso de mais uma chance”, a narrativa do Bolsonaro deve focar no argumento clássico de qualquer candidato à reeleição: “Quatro anos estão longe de ser o suficiente, preciso completar a minha obra”.  Obviamente, haverá a tradicional apresentação das “conquistas” do governo, centrada na agenda de infraestrutura e de parcerias com o setor privado, coordenada pelo ministro Tarcísio (Gomes de Freitas, da Infraestrutura), e em alguns ganhos regulatórios, como os marcos do saneamento e das ferrovias. É previsível também que ele se volte ao público conservador e ao chamado “bolsonarismo identitário”, que é o público que esteve nas ruas, nas motociatas, nos aeroportos e nas manifestações de 7 de setembro. É a sua base de segurança, que ele considera como sendo suficiente para ir ao segundo turno. O sinal de que ele deve seguir esse caminho foi a indicação do André Mendonça (ex-advogado-geral da União) para o STF, que representou um momento de reconexão do Bolsonaro com o público conservador. Teve um simbolismo aí. A oposição satirizou a vibração da Michelle Bolsonaro, mas isso tem um significado para o público evangélico. A rigor, a grande entrega do Bolsonaro para o público conservador foi o André Mendonça. Ele vai dizer “olha, fiquem comigo, porque sou a melhor chance de vocês terem mais ministros no Supremo”, “eu sou a chance dessa agenda conservadora ter algum avanço, mesmo que seja pequeno”, “a gente já viu que o Congresso é difícil, que o País é difícil, mas do outro lado tem o Lula”. O grande problema de Bolsonaro é ir além disso. Sua rejeição, hoje, está acima dos 60%. Ele perdeu o eleitor médio, ou grande parte dele. No momento, parece um candidato forte para ir ao segundo turno, mas frágil para ganhar a eleição. De novo, o debate eleitoral pode alterar isso, mas é o quadro que está aí.

Na economia, qual deve ser a narrativa do Bolsonaro, já que ficou claro que ele não se identifica de fato com a agenda liberalizante defendida pelo ministro Paulo Guedes?

Uma questão relevante é saber se Bolsonaro irá manter ou não o Paulo Guedes como formulador da política econômica e seu interlocutor com o mercado. Será que, hoje, o Paulo Guedes tem condições de ser e será o avalista do programa econômico do Bolsonaro? A minha impressão é de que o Bolsonaro não tem alternativa. É difícil que ele disponha de um economista da estatura do Paulo Guedes para cumprir essa missão. Agora, se isso se confirmar, acredito que o Paulo Guedes terá de ir ao mercado e dizer: “Olha, as nossas privatizações não deslancharam, as reformas administrativas e tributárias não andaram, mas agora tudo isso irá andar”. Não será um trabalho fácil, mas acho que ele vai dizer que, apesar das dificuldades, o governo conseguiu aprovar a Lei da Liberdade Econômica, a reforma da Previdência, a autonomia do Banco Central e o novo marco do saneamento. Deverá ressaltar também a aceleração das PPPs (Parcerias Público Privadas) e retomada da economia no pós-pandemia. A esquerda dirá que tudo foi uma política neoliberal irresponsável e o centro liberal dirá que foi uma agenda pífia, que deixou para trás reformas importantes, que nenhuma privatização relevante foi entregue e coisas do gênero. O governo, provavelmente, vai responder dizendo “nós fomos atropelados pela maior pandemia dos últimos 100 anos, que perdura até hoje”. Mas a verdade é que o próprio governo perdeu a crença na agenda de reformas e a pauta de Paulo Guedes nunca foi, de fato, a pauta do governo. 

E, entre as narrativas da terceira via, qual deverá ser a dominante, na sua avaliação?

Uma das incógnitas da campanha é saber se a agenda ética e moralizadora, que põe a corrupção no centro do jogo e é herdeira da Lava Jato, está viva o suficiente e será capaz de alterar o cenário eleitoral. Disso vai depender muito do futuro da candidatura do Moro. Ele está fazendo um esforço para ampliar a sua pauta, na direção do centro liberal. O convite ao economista Affonso Celso Pastore é um sinal importante desta estratégia. É um aceno para uma parcela do eleitorado que historicamente seguiu o PSDB. Um dos grandes problemas da terceira via, hoje, é o fato simples de que Lula vem ocupando boa parte de seu espaço. Vem, literalmente, encurtando o seu terreno. O namoro com o Alckmin cumpre esse papel. A perspectiva de uma chapa Lula-Alckmin lança a seguinte questão para os eleitores que  estão mais ao centro: “Se eu tenho a chance de votar nesse sujeito aqui, que fez uma aliança com o PSDB histórico, com setores reformistas representados pelo Alckmin, por que vou apostar em um candidato que aparece com 3% ou 5% nas pesquisas, cuja viabilidade eleitoral é remota? Então, acredito que a gente caminha para mais uma eleição polarizada. Só que, desta vez, o Lula está sabendo ocupar os espaços ao centro, coisa que Bolsonaro terá muita dificuldade em fazer. O Moro é um quadro preparado e sua candidatura tem charme, apelo e história, mas precisa mais do que isso para decolar 

Olhando para o cenário hoje, então, o sr. não vê muita chance de o Moro ou o Doria chegar ao segundo turno?

O Moro teve um crescimento quando lançou a candidatura, mas vem tendo dificuldades para continuar crescendo. Não estou dizendo que ele não possa crescer. Mas é difícil. Ele precisa de estrutura partidária, de uma aliança política grande, de um argumento mais abrangente do que esse de ter sido o juiz da Lava Jato. A pauta anticorrupção é insuficiente para alavancar uma candidatura. Não é a grande pauta brasileira hoje. Então, o Sérgio Moro vive esse dilema. Ele é um quadro preparado e sua candidatura tem charme, apelo, história, mas a campanha presidencial exige mais do que isso. No caso do Doria, vejo um desafio ainda maior. Como já falamos, ele terá de encontrar uma forma de mostrar para um eleitorado de massa, que não é o de São Paulo, que o Brasil precisa de um gestor e de uma agenda modernizante. Seus argumentos mais forte são “eu fiz a vacina, nós temos o Butantan” e “São Paulo cresce mais do que o Brasil”. O problema é que isso pode parecer algo arrogante. O Doria também quebrou pontes com o eleitorado conservador e vai precisar desse eleitorado se quiser tirar o Bolsonaro do jogo e ir para o segundo turno. Ele tem estrutura, discurso e coisas para mostrar. Será um desafio e tanto. 

O sr. disse que a pauta “gerencialista” não tem apelo eleitoral, mas em 2018 o grupo que a defende acabou sendo o fiel da balança, ao apoiar o Bolsonaro no segundo turno. 

E pode fazer a diferença de novo agora.  O chamado mercado, um amplo conjunto de forças econômicas, empresas, operadores dos mais variados setores da economia, talvez até preferisse o Doria: Mas o pessoal diz o seguinte: “O Doria tem mais a nossa cara, defende as nossas pautas, sem a instabilidade e as vacilações de Bolsonaro. Só que ele tem apenas 5% nas pesquisas”. O mercado, em geral, tem uma percepção muito pragmática da política. Isso significa que eles vão pesar dois fatores. De um lado, algum compromisso com as reformas; de outro, a viabilidade eleitoral. Não é um voto ideológico. Se o Doria tivesse 15% nas pesquisas, o candidato do mercado seria ele. Como não tem, uma parte pensa: “O Bolsonaro tem 25% e bem ou mal tem o Paulo Guedes lá, que fez a reforma da Previdência e deu autonomia para o Banco Central”. Outra parte tenta imaginar um Lula moderado, com alguém como o Meireles no comando da economia. Então, é difícil quebrar a polarização, pois ela realimenta a “fuga do centro” e alimenta a si mesma. A gente tem de lembrar também que o chamado centro liberal, no Congresso, votou quase sempre com o governo, na agenda econômica. Apoiou a nova Lei das Ferrovias, a autonomia do Banco Central, a reforma da Previdência, o marco regulatório do saneamento e outras medidas liberalizantes. O desafio de Moro e Doria agora é mostrar são competitivos. Ultrapassar a barreira dos dois dígitos nas pesquisas, e a partir dai entrar no jogo de verdade. Mas não vai ser fácil romper essa polarização. Durante vinte anos, nós ficamos numa polarização PT/PSDB. Foi muito difícil quebrar isso. Quem quebrou foi o Bolsonaro, porque o clima do País mudou, porque o PSDB, assim como o PT, também cansou, por causa dos escândalos que atingiram o Aécio Neves (ex-governador de Minas e ex-presidente do PSDB), por “n” razões. Mas durou seis longas eleições. Quem é mais à direita, antipetista, pode até achar o Bolsonaro inviável. Mas, quando olha para o outro lado e vê o Lula, o Bolsonaro volta a se tornar uma “bola de segurança”. Com o Lula, acontece isso também, mas em escala bem menor.

Em 2018, o Bolsonaro se colocou contra a “velha política” e no governo acabou se aliando ao Centrão. Até que ponto isso também deve afetar a narrativa do Bolsonaro nestas eleições? 

O Bolsonaro sempre foi um integrante do sistema. Ele se apresentou como um candidato do anti-establishment, mas foi rapidamente reabsorvido, no plano operacional da política, mas também no plano simbólico. O ápice disso foi o ingresso no PL, um partido do Centrão. Hoje, objetivamente falando, quem sustenta politicamente o governo Bolsonaro é extrato mais tradicional do sistema político brasileiro. Por aí, ele realmente perdeu o charme. Acho que, nestas eleições, aqueles fenômenos das grandes candidaturas alternativas, do qual o (ex-governador Wilson) Witzel (que sofreu impeachment), no Rio de Janeiro, talvez tenha sido o exemplo mais notório, mas houve muitos outros, como o (governador mineiro Romeu) Zema e vários parlamentares, na Câmara dos Deputados, terão mais dificuldade para se eleger. De alguma forma, o sistema retomou o controle do jogo, no interesse do governo e em certa medida sob o comando do próprio governo. No sistema político brasileiro quem comanda a agenda política do Congresso é o governo. O presidente é o príncipe do sistema. Esse é o nosso modelo de “presidencialismo de coalização”. O Bolsonaro iniciou o governo contrariando essa norma e está terminando perfeitamente ajustado a esse padrão. O governo começou sem base no Congresso e está terminando com base. É uma base um tanto disforme, mas ela existe, está lá. Tem sido majoritária. Seu grande operador hoje é o (deputado) Arthur Lira presidente da Câmara. Nós voltamos a um padrão de coalizão majoritária no Congresso, a um custo muito alto. Acho que o maior símbolo disso são as emendas de relator, o fundão eleitoral. Mas está lá a coalizão governamental. O governo ganhou o comando das duas casas, especialmente a Câmara dos Deputados. 

Uma última pergunta: neste cenário que o sr. traçou aqui, que é bem complicado, dá para enxergar uma luz no fim do túnel? O que pode surgir de bom desse caldeirão de narrativas?

Eu não vejo nenhuma razão para um otimismo exagerado nem para um pessimismo exagerado. Acredito que o País fez algumas reformas importantes nos últimos anos, deixou de fazer outras reformas importantes, e assim vamos. Nós não somos a Nova Zelândia nos anos 1980. Não somos um país que está dando um salto, como a Coréia do Sul deu. Somos um país em que é difícil fazer reformas. Mas estamos muito longe também de ser uma Venezuela. Estamos mais próximos do grupo que tem o Peru, o México, a Colômbia e o Chile, que são países que, em maior ou menor escala, têm uma política fiscal relativamente arrumada, banco central independente, programas de natureza social relativamente robustos. Na minha visão, o Brasil soube dar conta da tarefa democrática, fez um pacto nos anos 1980, fez uma Constituição, vai para a sua nona eleição, com todos os problemas que a gente conhece. Nenhuma democracia é perfeita, muito menos a nossa, que é jovem. Mas, de alguma maneira, nós soubemos lidar com a tarefa democrática nesses 35 anos. Só que, em relação à modernização do País, acho que não. Esse é o grande desafio brasileiro, a chamada tarefa de modernização. O Brasil é um país que fracassou socialmente. Nós ainda temos 13% da população vivendo abaixo da linha de extrema pobreza. Nós temos uma das piores educações públicas dos países medidos pelo Pisa, que é um teste da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com alunos de 15 anos.

A que o sr. atribui essa dificuldade toda para o País avançar?

O (economista) Marcos Mendes, meu colega no Insper, tem razão. O Brasil é um país difícil para fazer reforma, porque tem uma classe dirigente atrasada, um Estado grande, regulador, intervencionista, que gera corporações fortes. Nós temos o Judiciário e o Congresso mais caros do mundo em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). Um parlamentar no Brasil custa 528 vezes a renda média do País. Em segundo lugar, vem a Argentina, com 228 vezes, e a média das grandes democracias é 40. O Brasil é esse país. Até hoje, não conseguimos botar um teto de verdade nos vencimentos do funcionalismo público. A grande questão é se o Brasil vai entrar num processo mais acelerado de reformas ou vai continuar patinando. O Brasil não decidiu ainda se quer ser um país capitalista, aberto, moderno e competitivo. Esse é o ponto. Essa decisão não foi tomada. O Brasil patina nessa discussão. Essa deveria ser a grande discussão das eleições.

TERCEIRA VIA DESUNIDA NÃO VAI A LUGAR NENHUM

 

  1. Política 
  2. Eleições 

Para analista, a tendência é de os candidatos à Presidência do grupo apoiarem quem estiver na frente nas pesquisas

Entrevista com

Marco Antonio Villa, historiador e comentarista político

José Fucs, O Estado de S.Paulo

O historiador e comentarista político Marco Antonio Villa é o que se poderia chamar de um “radical de centro”. Crítico implacável do presidente Jair Bolsonaro e também do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do PT, Villa ganhou popularidade com as análises inflamadas que faz na mídia e fora dela contra os seus desafetos na política.

Nesta entrevista ao Estadão, ele diz que a tendência é de os candidatos à Presidência da chamada “terceira via”, à exceção de Ciro Gomes, do PDT, se unirem ainda para a disputa do 1º turno das eleições, em 2 de outubro. “Se houver um candidato da terceira via com dois dígitos nas pesquisas e os demais estiverem com um dígito só, em torno de 5%, é provável que eles resolvam abandonar as suas candidaturas para apoiar quem estiver na frente.” 

Villa afirma que as fake news e as “fake pesquisas” devem marcar o processo eleitoral e que o seu “maior temor” é que a campanha “descambe para uma guerra”. Ele diz se preocupar com possíveis “ações violentas por parte de Bolsonaro e de seus aliados”, para tentar desqualificar o processo eleitoral. “Tudo indica que teremos a eleição mais sanguinolenta desde 1989.”

Marco Antonio Villa
O historiador e comentarista político, Marco Antonio Villa; para analista, fake news devem marcar o processo eleitoral  Foto: IARA MORSELLI/ESTADÃO – 16/5/2016

Segundo Villa, Lula está tentando se mostrar “o mais confiável possível”, ao se aproximar do centro-direita e articular uma aliança com o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, mas a iniciativa ainda precisa se confirmar. Em sua visão, o petista aparece em posição confortável nas pesquisas, porque até agora está navegando sem opositores. “Quando começar a campanha para valer, o petrolão, o mensalão e as acusações de corrupção vão inundar a discussão. Aí, essa facilidade que ele tem hoje não terá mais, porque tudo isso virá à tona”. 

Além de ter de enfrentar a pandemia, o Brasil vive um quadro complicado tanto na economia quanto na política. Neste cenário, como o sr. vê eleições de 2022? 

Eu estou muito preocupado, porque tudo indica que as grandes questões nacionais não serão o centro das atenções, mas as ações violentas por parte de Bolsonaro e de seus aliados tentando desqualificar o processo eleitoral, as urnas eletrônicas, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e as decisões do Supremo Tribunal Federal, ameaçando jornalistas, coagindo opositores e promovendo até – pode ser que ocorra, espero que não – ataques físicos a adversários. Ao que parece, teremos a eleição mais sanguinolenta, para citar um termo popularizado pelo Sinhozinho Malta (personagem desempenhado pelo ator Lima Duarte, na novela Roque Santeiro, em meados dos anos 1980), desde 1989. Isso vai ser muito ruim para o País, porque vamos perder uma ocasião fantástica para discutir os nossos problemas e apontar soluções para eles.

O sr. não está exagerando? Será que vai ser por aí mesmo?

O cenário é muito preocupante, porque teremos um presidente candidato à reeleição que vai usar toda a estrutura de Estado na sua campanha. Não estou falando só de inaugurações e liberações de verbas, como em outras campanhas, mas do uso da estrutura policial de Estado – a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), o GSI (Gabinete de Segurança Institucional), a Polícia Federal. Além disso, as fake news vão ser um dos principais elementos da campanha. Teremos as “fake pesquisas” também. Vai aparecer instituto de pesquisa do qual a gente nunca ouviu falar e isso vai criar uma confusão na cabeça do eleitor, dificultando a escolha de candidatos, se é que teremos debate eleitoral, que é uma outra questão. Pode ser que, no primeiro turno, alguns candidatos à presidência da República digam “não, não vou comparecer a debate”. E aí, como é que vai ficar? Vamos fazer um debate com o Cabo Daciolo (ex-candidato a presidente em 2018 pelo Patriota e hoje filiado ao Partido da Mulher Brasileira)? 

Considerando tudo isso, o sr. acredita, então, que a polarização, que já marcou as últimas eleições, vai se manter no pleito deste ano?

Infelizmente. Ela será exacerbada ao limite. Isso estará muito presente já no primeiro turno, em 2 de outubro. Pela primeira vez na história, pode acontecer de um presidente da República candidato à reeleição não chegar ao segundo turno. Pode ocorrer. Vai ser um bom teste para as instituições.“O Lula já se considera presidente da República antes da abertura das urnas”

O sr. falou muito de um lado. E o outro lado dessa polarização, o lado do PT, do Lula, da esquerda, como vai se portar na campanha?

Acredito que o Lula já se considera presidente da República antes da abertura das urnas. O que normalmente não dá certo no Brasil.  As coisas não são tão simples assim. Até agora, o Lula está navegando sem opositores. Quando começar a campanha para valer, o petrolão, o mensalão e as acusações de corrupção vão inundar a discussão. Essa facilidade que ele tem hoje não terá mais, porque tudo isso virá à tona. Inclusive porque um de seus opositores, o (ex-juiz SérgioMoro (pré-candidato pelo Podemos), foi quem apresentou parte das denúncias contra ele na Justiça e o julgou. O Lula vai ter de responder a essas acusações e vai ser duro ele negar. Como é que o Lula vai negar que houve o petrolão? Uma coisa é negar numa entrevista. Outra é negar numa campanha eleitoral, num debate eleitoral.

Como o sr. avalia a possível aliança do Lula com o Alckmin e a possibilidade de o ex-governador paulista ser o seu vice?

O Lula está buscando alianças no centro-direita, que lhe possibilitem até vencer as eleições no primeiro turno, que é o sonho dele, mas não se sabe se vai conseguir ou não. Nos Estados, é provável que ele consiga, com o Centrão e seus aliados. Afinal, o PT ficou 13 anos no governo e ganhou quatro eleições consecutivas, o que convenhamos não é pouco. Agora, em relação a uma possível aliança na esfera federal com o Alckmin, é preciso ver como ela vai ser, se é que vai existir. Se der certo, vai dar uma chacoalhada e tanto. Do lado do Lula, até entendo o interesse nessa aliança. Do lado do Alckmin, não. Como é que o Alckmin vai entrar nessa? 

Se a aliança com o Alckmin sair, como o Lula vai lidar com a militância do PT? Será que a turma vai aceitar isso? 

A tendência é o Lula segurar seus radicais, vamos chamar assim, que não são poucos dentro do PT. O Lula vai tentar se mostrar o mais confiável possível. Mas essa história de que, vinte anos depois, o Lula vai voltar ao poder e pegar um país com uma economia relativamente equilibrada e boom de commodities, como pegou em 2003, é uma ilusão. Ele vai encontrar outro país, com crise econômica, sucessivas recessões nos últimos dez anos e um cenário internacional provavelmente ainda marcado pela pandemia.“Olhando o quadro hoje, é possível que o Moro consiga se construir como a terceira via”

Fazendo um paralelo futebolístico, é mais ou menos o que acontece com a torcida do Flamengo, que imagina que, com uma eventual volta do técnico Jorge Jesus, o time voltará a ter o desempenho que teve antes sob o seu comando. 

É verdade. Você fica com aquela ideia de que vai ser tudo a mesma coisa, uma espécie de continuidade, só que não é. A realidade é diferente. Normalmente, o retorno ao poder de líderes com as características do Lula termina em tragédia. Mal comparando também, porque o Lula não tem a mesma estatura, foi o que aconteceu no retorno do (ex-presidente) Getúlio Vargas, em 1950. Quando Vargas tomou posse, em 1951, era um outro Brasil, outra sociedade e outra política, com a emergência das classes médias, grande crescimento econômico, uma intelectualidade bastante viva e uma industrialização que se acentuava. E terminou como terminou.

Como o sr. está vendo essa profusão de candidatos da terceira via e a perspectiva de um deles chegar ao segundo turno?

A política é muito volátil no Brasil. Olhando o quadro hoje, é possível que o Moro consiga se construir como a terceira via e não o Ciro Gomes (ex-governador do Ceará e pré-candidato pelo PDT), que poderá ser rifado pelo partido, por causa das alianças estaduais. Em relação à candidatura do (governador de São Paulo, JoãoDoria, vamos ver se ele consegue, no mínimo, unir o PSDB, o que não será fácil. Em Minas e no Rio Grande do Sul, parece que ele vai ter dificuldade. O Doria também vai ter de melhorar muito o seu discurso para conseguir ganhar força, assim como o Moro. Não é condição sine qua non que o candidato tenha alianças estaduais para decolar. A eleição do Bolsonaro mostrou isso em 2018. Agora, tem de ver se a candidatura do Moro vai ser sólida até o início do processo eleitoral. Pode ser que ele não seja um tsunami eleitoral e se revele uma marolinha. A gente não sabe como isso vai se desenrolar, até porque está muito cedo. As primeiras semanas depois que o Moro se lançou como pré-candidato foram muitos boas para ele. Agora, se o Moro deslanchar, teremos uma eleição interessante, disputada por um ex-juiz que mandou prender o seu opositor, de um lado, e que foi ministro e rompeu com o presidente da República, de outro. Não conheço no mundo ocidental uma eleição recente deste tipo. Vai ser uma coisa única. 

O sr. vê a possibilidade de uma aliança entre os candidatos de terceira via já no primeiro turno?

É provável. Se, efetivamente, houver um candidato de terceira via com dois dígitos nas pesquisas e os demais estiverem com um dígito só, em torno de 5%, pode ser que eles resolvam abandonar as suas candidaturas para apoiar quem estiver na frente. Agora, o Ciro não fará isso. Pode tirar o cavalo da chuva. O Doria poderá fazê-lo. No caso do MDB, não sei se a (senadora) Simone Tebet será mesmo candidata. No máximo, acredito que ela possa fazer uma composição de vice, porque não creio que o partido vá apoiá-la. Pode até ser que a apoie na convenção, “cristianizando-a” depois, levando-a a ter uma votação pífia e inviabilizando até o futuro político dela. As peças estão se movimentando, mas como é um cenário muito complexo e ainda estamos um pouco longe da definição das candidaturas, é difícil ter uma ideia mais clara de como vai ficar o xadrez eleitoral. No Brasil, três ou quatro meses são uma eternidade. “Aquela onda Bolsonaro, que favoreceu muitos candidatos do PSL e de partidos próximos não vai se repetir em 2022”

Alguns analistas apontam que a questão da corrupção não terá nestas eleições o mesmo protagonismo que te,ve em 2018 e que agora as questões econômicas, como emprego e renda, é que devem ser decisivas. Na sua visão, como isso deverá afetar uma possível ascensão do Moro na campanha?

A questão é como um candidato de oposição conseguirá combinar o combate à corrupção com um programa de governo mais amplo. De qualquer forma, é inevitável que a corrupção esteja presente na campanha eleitoral, inclusive por causa do próprio Moro. O Moro vai ter de usar essa bandeira, porque isso o fortalece frente a uma parte da base bolsonarista e a uma parte dos que votariam no Lula contra o Bolsonaro. Então, esse discurso para ele é excelente. Na verdade, não sei nem se a corrupção teve o papel que lhe atribuem em 2018. Na eleição passada, havia um cansaço do PT, simbolizado pela incompetência da Dilma. A Dilma fez um trabalho excelente para os opositores do PT. Era um desastre em tudo: no governo, nas ações, no discurso, como figura pública. O melhor cabo eleitoral contra o PT foi a Dilma. Agora, houve uma variável importante em 2018, que não deve ser desprezada e que torço para que não ocorra novamente: o atentado ao Bolsonaro. Houve também a prisão do candidato opositor, que seria o Lula, em abril daquele ano, que é outra variável que presumo que não haverá em 2022. Isso transformou aquele processo eleitoral numa coisa atípica.

Na eleição de 2018, havia uma rejeição de uma parcela considerável da sociedade à chamada “velha política”, até em função da Lava Jato. Só que, de lá pra cá, o que se viu foi que a “velha política” retomou as rédeas do jogo. Nas eleições deste ano, em sua avaliação, deve haver uma consolidação da política como ela sempre foi no Brasil ou há a  rejeição à política tradicional deve se manifestar novamente?

A renovação que ocorreu no Parlamento em 2018, com boas e raras exceções, foi muito ruim. Entrou um bando de loucos no Congresso, especialmente na Câmara dos Deputados, que meu deus do céu. Se o nível já não era dos melhores na Câmara, piorou ainda mais, e com um extremismo, com características nazifascistas, que eu não tinha visto nem durante a ditadura militar. Sem exagero. Tem pessoas ali que, durante a ditadura militar, seriam rejeitadas pela Arena. Nesta situação, os chamados velhos políticos, muitos dos que não foram eleitos em 2018, poderão ser eleitos em 2022, e muitos dos que foram eleitos em nome de uma aparente renovação serão derrotados nas urnas. Aquela onda Bolsonaro, que favoreceu muitos candidatos do PSL e de partidos próximos não vai se repetir neste ano. A tendência é essa. A nova política não se transformou em novo. Conseguiu ser pior do que a velha. As pessoas querem outro tipo de representante. Vai haver justamente a busca dos candidatos mais conhecidos dos eleitores e que não têm essas posições marcadas pelo extremismo. Haverá muito mais uma busca pela conciliação do que pelo extremismo.

Como o sr. vê o papel dos movimentos que apoiaram o impeachment da ex-presidente Dilma em 2015 e 2016, como o MBL (Movimento Brasil Livre), o Vem Pra Rua, alguns grupos de renovação política e o próprio partido Novo, nesse processo?

Imaginava-se que o movimento pelo impeachment fosse construir uma nova política e não aconteceu nada disso. Ao contrário. Veio o Bolsonaro. Quer coisa mais velha do que o Bolsonaro? Então, acho que esses movimentos tipo MBL e Vem Pra Rua devem ter feito uma autocrítica e tudo indica que vão apoiar ou serão simpáticos à candidatura do Sérgio Moro. Agora, outros movimentos, como o RenovaBr, ficaram nas margens. É um deputado no partido X, uma deputada no partido Y. Nem sei se tinham esse objetivo, mas não conseguiram ter uma presença mais decisiva no Parlamento, mesmo tendo alguns bons deputados, que são atuantes. Em outras palavras, lembrando um antigo historiador, os fatores de conservação se sobrepuseram aos fatores de transformação. É a velha questão do Brasil. A conservação vence a mudança. 

A gente concentra muito a nossa preocupação na Presidência e fala-se muito pouco sobre a eleição do Congresso. Mas, com esse “presidencialismo de coalização” praticado no País, nenhum presidente tem condições de fazer nada sem o Congresso. Qual deve ser o perfil do novo Congresso a partir de 2023? Será muito diferente do que é hoje?

O PT deve voltar a crescer. Provavelmente, deve ser o maior partido na Câmara. Tudo indica também que o União Brasil, resultante da fusão do PSL com o DEM, vai emagrecer. Vamos ver o que vai acontecer com a terceira via. Vamos ver como será a representação parlamentar dos partidos que vão sustentar a terceira via, se ela se fortalecer. No momento, isso é um enigma, porque não se sabe sequer quem serão os candidatos a 1/3 das vagas do Senado que estarão em disputa. Nem em São Paulo, que é um colégio eleitoral importante. Quem serão os candidatos ao Senado em São Paulo? Os partidos ainda não têm candidatos. Então, hoje, é difícil se desenhar essa configuração.

HOMENAGEM AO MESTRE SIDNEY POITIER FALECIDO RECENTEMENTE

 

Por
Paulo Cruz – Gazeta do Povo

Sidney Poitier em cena de “Ao mestre com carinho”.| Foto: Divulgação

“Quando você entra em sala de aula, está disposta a oferecer o quê para os seus alunos?”
“O melhor. Todos os tesouros, tudo que estudei por amor e por obrigação, tudo o que me ensinaram e o que aprendi sozinha. As coisas mais bonitas que a humanidade nos deixou, pois o professor é o portador da chave do tesouro e precisa entregar aos herdeiros, que são os humanos mais jovens.” (Paula Rosiska, Vida ao rés do chão escolar)

“Encante-os, meu filho, em neutro.” (Mrs. Evelyn Poitier)

Meu contato com a obra de Sidney Poitier ocorreu da mesma maneira como, muito provavelmente, aconteceu com a imensa maioria dos brasileiros de minha geração: numa das infinitas vezes em que o filme Ao mestre com carinho foi exibido na Sessão da Tarde da Rede Globo. Nem sequer recordo-me da ocasião, pois faz muito tempo e eu era criança. A imortal canção de Lulu, da trilha sonora, por motivos óbvios – é de arrancar lágrimas de um robô – perdurou por muito mais tempo em minha memória. O filme, infelizmente, havia se perdido. Nem mesmo meu ingresso na docência, em 2014, levou a um interesse pelo filme. Ademais, mesmo com uma carreira imensa – mais de 50 filmes como ator e nove como diretor –, poucos de seus filmes estão disponíveis com facilidade no Brasil.

Foi só no último domingo, com a morte de Poitier, aos 94 anos, que vi/revi, de uma só vez, três de seus mais célebres filmes: Ao mestre com carinho, No calor da noite e Adivinhe quem vem para o jantar, os três, miraculosamente, de 1967 – e disponíveis em streaming. E senti-me envergonhado por não tê-lo em meu rol de heróis até então, como já tinha, por exemplo, o genial Oscar Micheaux – já retratado por mim aqui, nesta Gazeta do Povo. Meu mergulho em sua vida e obra está só começando, mas não quero perder a oportunidade de homenageá-lo nessa coluna, que tem por tradição apresentar minha visão sobre algumas das grandes figuras negras da história.

Mesmo plenamente consciente dos problemas enfrentados pela população negra americana – ele foi uma das personalidades mais engajadas na luta pelos Direitos Civis – e ter sofrido muito com o racismo, Poitier adotou uma postura moderada, ainda que firme

Sidney Poitier nasceu em Miami, em 20 de fevereiro de 1927, filho de Evelyn e Reginald James Poitier, pequenos produtores de tomates das Bahamas, que estavam a passeio nos EUA. Nasceu três meses prematuro e com poucas perspectivas de vida, o que fez com que seus pais passassem três meses em Miami até que sua condição de saúde melhorasse. Apesar da inesperada cidadania americana, cresceu na paradisíaca Ilha Cat, nas Bahamas, que era colônia britânica. Sobre sua infância na ilha, ele diz, numa de suas autobiografias, The Measure of a Man: A Spiritual Autobiography:

“Nos primeiros dez anos da minha vida, os anos antes de o cultivo de tomate fracassar e nos mudarmos para Nassau, eu tinha a responsabilidade, em grande parte, de cuidar de mim mesmo. Coisas como ser picado por vespas inesperadamente, mesmo quando eu achava que era inteligente o suficiente para evitá-las ou chegar à fruta sem perturbar o ninho – e eu estava errado muitas vezes! – me ajudaram a descobrir algumas coisas sobre sobrevivência. Agora, estou falando de 6, 7 anos. Quando cheguei a um lugar onde havia perigo de um tipo ou de outro, tive de fazer uma escolha. Uma vez que eu soube, ou senti, que havia perigo de um tipo ou de outro, eu tive de determinar, qual é a sabedoria de proceder? Eu me retiro, eu tento dar a volta?”

Esse tipo de autonomia, de independência, fez de Poitier um excelente observador, moldou o seu caráter e o acompanhou durante toda a vida, inclusive em sua brilhante carreira como ator e diretor. Diz ele, mais à frente, na mesma autobiografia:

“A atmosfera tranquila e simples da minha infância permitiu que eu me concentrasse no nível da linguagem corporal sutil que vinha de meus pais e meus irmãos. Naquela pequena ilha eu conhecia esses sinais muito, muito bem. Eu aprendera a lê-los assim como aprendera a ler os penhascos e as marés. Não entendi todos eles, mas com o tempo pude usá-los como ponto de referência para tentar entender o que os outros estavam dizendo, o que estavam fazendo, por que estavam se comportando comigo daquela maneira. Acho que essa é a base para o que veio a ser chamado de ʻinteligência emocionalʼ. É uma capacidade que é alimentada pelo silêncio e pela intimidade, e pela liberdade de andar.”

V
E essa característica notável é marca da vida e do trabalho de Sidney Poitier, o primeiro homem negro a receber o Oscar de Melhor Ator, em 1963, por Uma voz nas sombras (Lilies of the Field), no qual faz um trabalhador itinerante que ajuda algumas freiras, num convento, a construir uma capela. Seu comportamento perante a sociedade de sua época, marcada pelo racismo e pela odiosa segregação das leis Jim Crow, permitiu lhe darem a alcunha de “Martin Luther King Jr. do cinema”. Poitier era muito consciente da situação, mas decidiu tratá-la com inteligência e estratégia, seguindo a admoestação notável de sua mãe. Ele diz: “Uma tática de sobrevivência que funcionou bem para mim foi a que ganhei de minha mãe: ʻEncante-os, filhoʼ, disse ela, ʻde modo neutroʼ. Ser charmoso deu-me tempo e me permitiu desviar, pelo menos temporariamente, dos golpes de uma sociedade ameaçadora”. E completa:

“Veja, dentro do contexto de como eu vivia e como estava começando a estabelecer uma relação entre mim e esse lugar complexo, que eu não estava livre para me entregar totalmente aos deleites. Havia deleite; houve indulgências. Mas nunca perdi de vista o fato de que tinha de cobrir minhas costas, que estava sempre em evidência. A sociedade havia criado leis para me manter à distância ou completamente invisível. Aprender a sobreviver naquele mundo, muitas vezes hostil, foi um exercício de tentativa e erro, passo a passo; exatamente como quando eu estava aprendendo a colher os frutos das árvores de sapoti. Muitas vezes fui picado. ʻAh, então é assim que funcionaʼ, eu percebia. Então, meu armário está cheio de encontros, erros, ferramentas e lições aprendidas da maneira mais difícil”.

O mais notável é que, mesmo sendo alguém plenamente consciente dos problemas enfrentados pela população negra americana – ele foi uma das personalidades mais engajadas na luta pelos Direitos Civis, a ponto de correr riscos com seu amigo, o também ator e ativista Herry Belafonte – e ter sofrido muito com o racismo, Poitier adotou uma postura moderada, ainda que firme, tal como os já citados Martin Luther King Jr. e Oscar Micheaux, e também Booker T. Washington. E foi, muito provavelmente, tal postura que lhe permitiu ser quem foi, fazer tudo o que fez e ser considerado o primeiro galã negro americano, que mudou completamente a maneira como a indústria do cinema olhava para a população negra, com papéis subalternos e estereotipados.

Poitier se recusava a representar apenas papéis racializados e subalternos, e criou em torno de si uma imagem impávida, nobre e de moral elevadíssima, que serviu de exemplo para muitos. Como diz o jornalista Clarence Page em matéria do jornal Las Vegas Review-Journal: “Ele era um modelo para muitos jovens negros americanos como eu era na época. Mesmo quando seus papéis pareciam sentimentais, como em sua atuação pioneira vencedora do Oscar em 1963, Lilies of the Field, ele nunca foi bufão. Ele sempre parecia ter um ponto com suas performances. Ele se recusou a deixar que as poucas coisas sobre nós que parecem diferentes atrapalhassem as muitas coisas que deveríamos compartilhar em comum”. E, nos três filmes vistos por mim recentemente, essa nobreza aparece de forma profunda e indissociável de sua imagem.

Poitier se recusava a representar apenas papéis racializados e subalternos, e criou em torno de si uma imagem impávida, nobre e de moral elevadíssima, que serviu de exemplo para muitos

Em No calor de noite, ele interpreta um detetive da Filadélfia, especialista em homicídios, que, de passagem pelo extremamente racista estado do Mississippi, é designado para ajudar a desvendar um caso de assassinato. Nesse filme, vencedor do Oscar, dentre as muitas cenas icônicas, o detetive Virgil Tibbs, interpretado por Poitier, recebe um tapa na cara de um poderoso empresário local e o devolve com a mesma intensidade. Algo inimaginável à época. Em Adivinhe quem vem para o jantar – que vi pela primeira vez e me deixou absolutamente perplexo e muito emocionado, sobretudo com a atuação perfeita dos lendários Spencer Tracy e Katharine Hepburn (que venceu o Oscar de Melhor Atriz) –, Poitier é o médico John Wayde Prentice Jr., que conhece e se envolve apaixonadamente com a filha branca de uma família liberal (no sentido de defensora da integração e dos Direitos Civis), de classe alta, de São Francisco, e eles decidem se casar. Joanna “Joey” Drayton, interpretada pela jovem Katharine Houghton, leva o médico para conhecer seus pais e, baseada na educação que recebera, tinha certeza de que não haveria qualquer tipo de restrição em relação ao seu namorado. Mas não é bem isso que ocorre. O filme, meus caros, é maravilhoso e cheio de mensagens inspiradoras.

Porém, foi em Ao mestre com carinho, que me levou às lágrimas pela associação direta com minha profissão e até meu modo de encará-la (que assumi, como disse, antes de ver o filme), que encontrei, se não o melhor Poitier, o que mais tem a ver comigo. O engenheiro de telecomunicações Mark Thackeray, imigrante da Guiana Inglesa, decide aceitar o trabalho de professor interino numa escola secundária em East London, para dar aulas a uma classe de alunos problemáticos que conseguem fazer todos os seus professores desistirem deles por sua irremediável indisciplina. Mas estes não contavam com a obstinação, a firmeza de caráter e a disposição conservadora de Thackeray.


Ao perceber que, pelos métodos tradicionais, não conseguirá alcançar seus alunos, que quase o fazem desistir, Thackeray, diferente do idealismo de John Keating, personagem do saudoso Robin Williams em Sociedade dos poetas mortos – que já recebeu minha crítica –, assume uma posição prudente. Ele reconhece que a melhor maneira de salvar aqueles jovens é dar-lhes um senso moral de responsabilidade por suas vidas; e, após uma série de entreveros e embates quase infrutíferos, numa atitude aparentemente revolucionária, pega todos os livros de sua mesa, joga-os no lixo e insta seus alunos a guardarem os seus. E lhe diz: “São inúteis para vocês […]. Dei-me conta de que serão adultos em algumas semanas, com todas as responsabilidades que lhes cabem. E serão tratados assim por mim, e se tratarão da mesma forma. Como adultos. Adultos responsáveis. Logo, seremos razoáveis uns com os outros e vamos apenas conversar. Ouvirão sem interrupção. Quando eu acabar, poderão dizer o que quiserem. Sem interrupção”. Eles lhe perguntam: “Sobre o que falaremos, senhor?” Ao que ele responde: “Sobre a vida: sobrevivência, amor, morte, sexo, casamento, rebelião… o que quiserem”. E o diálogo que se segue, para mim, é o mais importante do filme:

Alunos: “O que quis dizer outro dia sobre rebelião, mestre?”
Thackeray: “Mudança. O penteado de vocês é uma forma de rebelião, não?”
Alunos: “Como, senhor? Não faz isso para ser diferente dos adultos? Eles bagunçaram o mundo, mestre. Pode crer.”
Thackeray: “Daí vocês se rebelaram. Até suas roupas são um modo de rebelião.”
Alunos: “É só a última moda, senhor. Os adultos ficariam ridículos em nossas roupas. Acha errado mudar, ser diferente e rebelde, mestre?”
Thackeray: “É dever de vocês mudar o mundo, se puderem. Sem violência. Pacificamente, individualmente, não em bando. Os Beatles, por exemplo. Iniciaram uma revolução social. Suas roupas e cortes de cabelo são adotados no mundo inteiro. Toda nova moda é uma forma de rebelião. Há uma bela exposição de roupas através dos tempos, no Victoria & Albert Museum. Aproveitem para ir e ver o Museu de História Natural.”
Alunos: “Quer que vamos a um museu?”
Thackeray: “Sim.”
Alunos: “Você está brincando.”
Thackeray: “Descobrirão que seus penteados têm 200 anos e que suas roupas, seus vestidos são de 1920.”

O professor deve ser, antes de qualquer coisa, um modelo moral. E é exatamente isso que Thackeray e Sidney Poitier são

Com isso desperta nesses jovens o desejo pela história, pela arte e pela cultura – pelas coisas permanentes. Essa fórmula de turning point pedagógico será repetida à exaustão em praticamente todos os filmes similares posteriores. Mas em 1967, em plena era de recrudescimento dos protestos negros após a morte de Malcolm X (1965) e pouco antes da morte de Martin Luther King (1968), com o movimento Black Power surgindo e crescendo, pautado em ideias revolucionárias marxistas – coletivistas e contrárias ao que sugere Thackeray, mais afeito à Revolução de Valores proposta por Luther King –, a mensagem do filme se torna ainda mais especial e contundente – e atual nos dias de hoje.

Thackeray é percebido pelo alunos como um deles, mas, ao mesmo tempo, diferente: “O senhor é como nós, mas não é. É assustador, mas legal. Entende?” E isso lembrou-me das palavras indeléveis do mestre Ernesto Carneiro Ribeiro – o meu Patrono da Educação Brasileira – ao afirmar que “o bom êxito da escola, como o mais poderoso fator da felicidade nacional, não depende tanto do menino, que, pela maior parte, é terreno maleável e prestadio, quanto do amanho que lhe dá o mestre zeloso e bem avisado, que, diante dos olhos d’alma deve ter o conceito seguinte: emendar-se para emendar”. Ou seja, o professor deve ser, antes de qualquer coisa, um modelo moral. E é exatamente isso que Thackeray e Sidney Poitier são.

Óbvio que tal postura e visão de mundo não foram unanimidade. Nunca serão. A militância radical da época via em Poitier o mesmo caráter acomodacionista que via nos já mencionados Booker T. Washington, Oscar Micheaux e Luther King. A professora Samantha Noelle Sheppard, em artigo recente na revista The Atlantic, diz que “mesmo com seu estrelato, Poitier foi limitado pelas ambições conservadoras da indústria e pelo desinteresse pela complexidade negra. Com sua sexualidade castrada e sua dignidade firmemente estabelecida, Poitier incorporou uma minoria modelo nos filmes, um nobre santo de ébano que representava a negritude palatável e a harmonia interracial durante um período de luta racial. Seus personagens não ameaçadores, que desafiavam os sistemas trabalhando dentro deles, foram completamente aceitos pelo público branco”. E completa:

“O público negro, por sua vez, não estava uniformemente convencido. Papéis como o bem-educado médico negro de Poitier – que buscou a aprovação da família de sua noiva branca – em Adivinhe quem vem para o jantar atraíram duras críticas de alguns espectadores que ansiavam não apenas por uma representação negra positiva, mas também por representações ressonantes da vida e das lutas negras. As represálias de personagens negros benignos fizeram de Poitier um pára-raios para críticas e ressentimentos, inclusive sendo chamado de ʻnegro vitrineʼ, no The New York Times, pelo dramaturgo Clifford Mason. Mas foi o perfil de Poitier da revista Look, de James Baldwin, em 1968, que realmente capturou o excepcionalismo e o isolamento do ator na indústria.”

A militância radical da época via em Poitier um acomodacionista. Mas ele lutou e sofreu muito para chegar aonde chegou, e com as armas que tinha foi longe e abriu espaço para uma verdadeira plêiade de artistas, atores e atrizes negras

Sempre haverá quem inveje o sucesso de um astro da magnitude de Sidney Poitier, vendo, parafraseando o ditado, “as pingas que se toma, sem ver os tombos que se leva”. Ele lutou e sofreu muito para chegar aonde chegou, e com as armas que tinha foi longe e abriu espaço para uma verdadeira plêiade de artistas, atores e atrizes negras, como Denzel Washington e Oprah Winfrey, que reconhecem a profunda influência de Poitier em suas carreiras. A mim, cabe inserir Sidney Poitier no topo de pessoas que – tardia, mas definitivamente – me influenciam e inspiram.

Agora deixem-me voltar a seus filmes e pesquisar mais profundamente sua vida e obra.


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