História
Polêmicas fabricadas no Enem: regime ou ditadura militar, revolução ou golpe
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Diogo Schelp – Gazeta do Povo
Policiais reprimem manifestação de estudantes contra a Ditadura Militar, no centro de São Paulo, no dia 24/08/1977| Foto: ADRIANA NERY/Estadão Conteúdo ARQUIVO
Um debate sério a respeito da recente polêmica envolvendo as acusações de interferência política nas questões do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), realizado neste domingo (21), não deveria ser feito sem a leitura de um livro recém-publicado pelo historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos maiores estudiosos da ditadura militar do país.
“Passados Presentes” (Zahar; 336 páginas; 69,90 reais) foi escrito justamente com a finalidade de desfazer os atuais mitos em torno do regime político que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Regime militar ou ditadura militar? Revolução ou golpe de 1964? Até que ponto a “ameaça comunista” era real? Os militares no poder tinham apoio majoritário da população? A repressão do Estado era proporcional à violência de esquerda? Havia menos corrupção? Qual foi o legado do chamado milagre econômico? Esses são alguns dos temas abordados pelo historiador.
O autor começa com um alerta para o perigo de se reduzir o debate histórico a uma questão de opinião. Historiadores, como cidadãos de qualquer outra profissão, têm suas preferências políticas e ideológicas, mas, ao produzir “conhecimento sobre as ações humanas no tempo”, precisam coletar e analisar as evidências documentais com base em métodos científicos de maneira equilibrada e dentro de limites éticos.
Não se pode, por exemplo, pegar evidências a dedo e ignorar o contexto geral ou o conhecimento acumulado sobre aquele tema, como muitas avaliações “opinativas” disseminadas nas redes sociais costumam fazer.
“Passados Presentes” tem o mérito de lançar luz sobre as polêmicas que a polarização política atual no país fabricou, desfazendo mitos com base em fatos e no relato objetivo dos acontecimentos, sem paixões ideológicas ou maniqueísmos.
A começar por um dos pontos centrais da polêmica envolvendo o Enem deste ano. Servidores do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) que pediram exoneração afirmam terem sido pressionados para substituir, nas questões da prova, a expressão “ditadura militar” por “regime militar”.
Motta afirma em seu livro que “ditadura” é a “definição mais precisa”, mas ele também se vale de “regime militar” e “regime autoritário” para se referir ao período, ainda que alguns historiadores considerem essas expressões mais brandas. “Regime militar”, portanto, não está incorreto, mas o que se viveu entre 1964 e 1985 foi mais do que isso.
Negar o caráter ditatorial dos governos militares iniciados em 1964 tem como objetivo conceder uma imagem mais positiva às lideranças políticas (o presidente Jair Bolsonaro, por exemplo) que “se apresentam como herdeiras do legado de 1964”, explica Motta.
Como se pode verificar pela discussão levantada na semana passada com a visita de Bolsonaro às monarquias árabes do Oriente Médio, o governo atual, por mais nostálgico que seja do período militar, não quer ser visto como afeito a ditaduras — a ponto de o presidente, em sua última live semanal, ter sentido necessidade de relativizar o autoritarismo dos governos dos países que ele visitou, afirmando que não são tão ruins quanto as ditaduras de esquerda, como a de Cuba. (Enquanto isso, no outro extremo, Lula relativiza a ditadura cubana.)
A configuração política do regime iniciado em 1964 e a maneira como foi instaurado não deixam dúvidas de que se tratava, sim, de uma ditadura, como demonstra Motta de maneira minuciosa e didática em seu livro.
O autor define uma ditadura moderna como um regime em que “uma pessoa ou grupo mantém-se no comando estatal por meios essencialmente coercitivos, o poder é concentrado de maneira autoritária e são criados meios para bloquear regras sucessórias democráticas”.
O regime instaurado em 1964 nasceu da ruptura da ordem constitucional, pois o presidente João Goulart, gostando-se ou não dele, havia sido legitimamente eleito, teve o poder presidencial reafirmado em plebiscito e viu-se forçado a seguir para o exílio para evitar o “derramamento de sangue” que poderia ocorrer em reação aos tanques nas ruas. Voltaremos ao tema golpe ou revolução mais adiante.
Além disso, a nova ordem política suspendeu eleições para presidente e governadores e recorreu à violência estatal (torturas, desaparecimentos e censura) para garantir o status quo, ou seja, o poder na mão de militares, sempre generais de quatro estrelas. Vemos aí a tríade da definição de ditadura: uso de meios coercitivos, poder concentrado e eliminação de regras de sucessão democráticas.
O autor destaca, porém, uma particularidade da ditadura brasileira: ela manteve alguns preceitos das democracias liberais e tratou legitimar seus atos por meio de leis. Com isso, procurava atribuir-se legitimidade política e ter argumentos para rechaçar a classificação de ditadura. São as mesmas justificativas usadas até hoje, aliás.
Assim, os Poderes Legislativo e Judiciário foram mantidos em funcionamento, assim como os partidos políticos. Os presidentes tinham mandatos fixos, passando uma falsa ideia de alternância de poder, pois apenas militares de alta patente ocupavam o posto, pelo qual outros cidadãos não podiam concorrer livremente, como ocorre em uma democracia.
Essa dualidade, ou melhor, a necessidade de manter o verniz de instituições liberais como fachada para o regime, fez com que a ditadura deixasse “alguns espaços à oposição que serviram, em certos momentos, de contrapeso às ações do Estado”, descreve o autor do livro.
O governo Bolsonaro também é acusado de pressionar para que as questões do Enem não tratassem a queda de Goulart em 1964 como um golpe de Estado, e sim como uma revolução para conter o “perigo vermelho”, ou seja, a ameaça comunista.
Revolução não foi, demonstra Motta. Primeiro porque, nas revoluções, as transformações na ordem políticas são impostas de fora para dentro. Em 1964, a ruptura foi promovida de dentro, ou seja, por integrantes do “próprio aparelho do Estado” — no caso, por militares de alta patente.
Segundo, Goulart não teria abandonado o posto e partido para o exílio se não fossem as movimentações das tropas e a preocupação de se evitar uma guerra civil.
Terceiro, em um ato ilegal, o Congresso empossou o presidente da Câmara no comando do país quando Goulart ainda estava em território nacional e, nove dias depois, mais uma vez ao arrepio da Constituição, elegeu o general Humberto Castello Branco para a presidência.
O fato de terem tido apoio de uma parcela da população, como confirma Motta, não faz com que os acontecimentos de 31 de março/1º de abril mereçam menos serem chamados de golpe.
E teria sido esse golpe realmente necessário para impedir que o Brasil se tornasse uma ditadura comunista, um suposto mal menor para conter um mal maior?
Motta elenca uma série de dados concretos a respeito da real força dos comunistas no país e conclui que esse risco não existia ou, pelo menos, não era iminente. João Goulart estava longe de ser um líder comunista, ainda que contasse com o apoio circunstancial e estratégico de uma parte da esquerda mais radical. De linhagem trabalhista e caudilhista, Jango na realidade buscou até o fim, apesar o ambiente absolutamente polarizado do país, obter uma acomodação entre setores de esquerda e de direita.
Ele cometeu alguns erros que levaram à sua ruína política (e a graves problemas econômicos), mas seu projeto não era a construção do comunismo. Nem tinham os verdadeiros comunistas uma força política significativa, influência ou mesmo planos revolucionários imediatos para a implantação de um novo regime.
Ainda que tivessem, como bem lembra o autor de “Passados Presentes” respaldado pela experiência de outros países, isso não significa que um golpe militar e a instauração de uma ditadura de direita fossem a única alternativa para contê-los.
Na realidade, a implantação da ditadura militar acabou por precipitar a pegada em armas por alguns setores da esquerda radical. Algo que não estava em seus planos antes.
O temor do “perigo vermelho” era um sentimento em parte sincero, ainda que infundado, de setores que apoiaram o golpe. Outros se valeram desse medo como desculpa para tirar Goulart do caminho e chegar ao poder.
Uma análise honesta da história não precisa mistificar ou endeusar figuras como Goulart ou carregar nas tintas ao descrever os governos militares para dar aos eventos do passado, mais presentes do que nunca, o seu verdadeiro nome: golpe, ditadura militar e todas essas palavras que se tornaram tabu no governo Bolsonaro.
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