Ao indicar o advogado André Mendonça, de 48 anos, para ocupar a vaga aberta pelo ministro Marco Aurélio no Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Jair Bolsonaro adotou o mesmo critério que usou na indicação do juiz Kássio Nunes, de 49 anos, para a vaga do ministro Celso de Mello. Além de não serem conhecidos por sua sólida formação jurídica, como prevê a Constituição, Kássio e Mendonça são alinhados com suas aspirações políticas e prometeram ser fiéis a ele. E, por serem jovens, poderão ficar por pelo menos 25 anos na Corte.
Temendo que o aparelhamento do STF comprometa sua independência, as lideranças partidárias no Senado estão discutindo a possibilidade de aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional que estabeleça idade mínima de 50 anos para os indicados e um mandato de 10 anos para o exercício do cargo. A ideia é evitar que Bolsonaro não apenas tenha influência prolongada no STF, mas, também, que seus sucessores não possam indicar novos ministros, o que impediria a renovação da Corte e a modernização da jurisprudência.
A imposição de idade mínima e um mandato por tempo determinado numa corte suprema existe em vários países desenvolvidos, com democracias maduras, como é o caso da Alemanha, Itália e Espanha. No Senado, medidas como essas vêm sendo discutidas há tempos. Em 2015, por exemplo, o senador Raimundo Lira (PMDB-PB) propôs que a idade mínima para o STF fosse de 55 anos, o que, a seu ver, possibilitaria a renovação da Corte. Ainda em 2015, os senadores Lasier Martins (Podemos-RS), Machado Reguffe (Podemos-DF), Plínio Valerio (PSDB-AM) e Marta Suplicy (PT-SP) apresentaram PECs que previam a fixação de mandato e alteravam o processo de indicação dos ministros. Após ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), uma dessas PECs chegou a ser debatida em primeiro turno no plenário.
Em 2019, os senadores Ângelo Coronel (PSD-BA) e Plínio Valério apresentaram duas novas PECs. Uma estabelecia em oito anos o mandato de um ministro do STF e outra retirava do presidente da República a exclusividade da indicação. Entre o fim de 2019 e o início de 2020, quando todas essas PECs tramitavam na CCJ, o relator, senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), apresentou um substitutivo, condensando algumas delas. Segundo ele, o mandato de dez anos seria o período mais adequado, “até porque é até maior do que o que geralmente têm durado os mandatos dos ministros, hoje vitalícios”. Em relação ao processo de escolha dos ministros, Anastasia manteve a exigência de lista tríplice prevista por uma das PECs, mas reduziu para apenas três as instituições que poderiam indicar candidatos – o Judiciário indicaria um magistrado; a Procuradoria-Geral da República indicaria um procurador; e a Ordem dos Advogados do Brasil indicaria um jurista.
Reagindo a essas propostas, entre 2015 e 2020 assessores dos inquilinos do Palácio do Planalto alegaram que, por ser uma cláusula pétrea da Constituição, a indicação de ministros para o STF é uma prerrogativa exclusiva do presidente da República que não poderia ser revogada. Anastasia, que é professor de direito público, refutou esse argumento. Em primeiro lugar, a lista tríplice é usada para todos os demais tribunais superiores. E, em segundo lugar, as corporações jurídicas sempre defenderam pluralismo e equilíbrio na escolha dos membros do STF. O processo de depuração de nomes para a escolha de um ministro de uma corte suprema “tem de ser feito às claras” e da “forma mais republicana possível”, concluiu.
É com base nessas PECs e no substitutivo de Anastasia que as lideranças do Senado pretendem recorrer para tentar evitar o aparelhamento do STF por Bolsonaro. Pela importância da Corte, que tem de ser isenta e independente por princípio, a iniciativa dessas lideranças deve ser debatida com seriedade. Ela pode evitar que um presidente que afronta a Constituição consiga corroer, por meio de suas indicações, a Corte cuja principal missão é controlar a constitucionalidade das leis. É isso o que está em jogo.
Presidente Jair Bolsonaro e o senador Ciro Nogueira (PP-PI), escolhido para ser o novo ministro da Casa Civil| Foto: Isac Nóbrega/PR
Passados quase quatro meses da última reforma ministerial, o presidente Jair Bolsonaro anunciou nesta quarta-feira (21) uma nova mudança na equipe ministerial. O senador Ciro Nogueira (PI), presidente nacional do PP, assumirá a Casa Civil da Presidência da República. Já o atual ministro-chefe da Secretaria-Geral, Onyx Lorenzoni, será transferido para o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que será recriado. Em seu lugar, assumirá o atual ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos.
A nova reforma ministerial tem como objetivo ampliar a reorganização de forças no xadrez político das eleições de 2022. Em março, Bolsonaro inseriu no núcleo duro do Palácio do Planalto a deputada federal Flávia Arruda (PL-DF) para conduzir a articulação política na Secretaria de Governo. Agora, com Nogueira, o presidente da República atende a um pleito antigo da base governista no Senado e fortalece o processo de montagem de seu palanque nos estados.
Pré-candidato ao governo do Piauí, Nogueira tem interlocutores do PP coordenando campanhas que podem oferecer estrutura eleitoral para Bolsonaro no primeiro e no segundo turno nas eleições de 2022. O senador tem um perfil articulador de bastidores que o presidente da República espera aproveitar para construir sua coligação para o próximo ano, com o apoio de partidos aliados do Centrão, a exemplo do PL e Republicanos.
A reforma ministerial sugere, contudo, que o governo mudará os rumos de sua política — inclusive a econômica. É uma mudança que obrigará o próprio Bolsonaro a se adequar, sob risco de caminhar isolado politicamente em 2022, segundo avaliação feita por interlocutores do Planalto e lideranças do Congresso à Gazeta do Povo.
O que o governo espera de Ciro Nogueira e da reforma ministerial A chegada de Ciro Nogueira ao governo pode ser resumida como uma forma de Bolsonaro atender a base governista na Câmara e no Senado e preparar o terreno para as eleições. Mas o detalhamento do papel que o senador terá na Casa Civil é mais profundo e complexo do que isso.
Pelas próprias atribuições que a Casa Civil tem, a de coordenação do Estado, é esperado que Nogueira tenha as políticas públicas sobre rédeas curtas. A pasta que o senador chefiará faz a articulação entre ministérios a fim de estruturar e executar programas governamentais, que, normalmente, demandam a atuação conjunta do Estado.
A indicação de um cacique partidário e articulador de bastidores como Nogueira para a Casa Civil mostra que o governo planeja uma visão mais política para a administração pública. A expectativa é que, com ele na coordenação do Estado, o Planalto terá uma postura mais pragmática, inclusive na política econômica, da qual nem mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, escapará.
“Com o Ciro na coordenação ministerial, é esperado um controle e enquadramento maior ao Guedes, para que a equipe econômica tenha uma visão mais pragmática: ‘oh, essa política não adianta, vamos ter eleição ano que vem’. É preciso ter esse sopesamento”, sustenta um interlocutor palaciano.
Na terça-feira (20), Bolsonaro comentou que o Ministério da Economia “exagerou” na proposta da reforma tributária, em referência às recentes polêmicas envolvendo a reforma sobre o Imposto de Renda, que precisou ser alterada pelo relator, deputado Celso Sabino (PSDB-PA), após críticas no mercado financeiro e no Parlamento.
Um dos principais indícios do desconforto do Planalto com algumas decisões da equipe econômica é o desmembramento do Ministério da Economia, algo precificado desde abril. Afinal, a atual Secretaria de Previdência e Trabalho será chefiada por Onyx Lorenzoni, deputado licenciado pelo DEM que passará a atuar em alinhamento com Nogueira.
Além da coordenação de Estado: o que Nogueira pode agregar ao Planalto O presidente do PP não chega ao governo para necessariamente assumir a articulação política. Mas, naturalmente, somará forças com Flávia Arruda. A ministra da Secretaria de Governo seguirá empenhada com as articulações das reformas tributária e administrativa, que tramitam na Câmara, e Nogueira atuará como articulador no Senado, função até então executada por Lorenzoni.
A expectativa do Planalto é que a chegada de Nogueira permita uma relação melhor com o Senado, sobretudo em um momento em que a Casa legislativa ganha grande protagonismo, não só devido à CPI da Covid. Com a volta do recesso parlamentar, virão as sabatinas do ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), André Mendonça, para a vaga do Supremo Tribunal Federal (STF), e de indicados a embaixadas pelo governo.
Mendonça, por sinal, enfrenta resistências do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). “Acho que é um momento crucial para o presidente [Bolsonaro] ter uma relação mais tranquila com o Senado, e a escolha do Ciro pode ajudar”, analisa um interlocutor do Planalto. A esperada articulação de Nogueira no Senado não significa, entretanto, que ele não terá papel fundamental em matérias tramitadas na Câmara e na interlocução com o Congresso de uma forma geral.
O governo também espera do senador apoio para a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) 135/19, que propõe a impressão do voto para fins de auditagem. Como informou a Gazeta do Povo, Bolsonaro articula com dirigentes partidários — a exemplo do próprio Nogueira — a sanção do fundão eleitoral de R$ 5,7 bilhões, desde que com o apoio das legendas para a aprovação da pauta.
“Agora, o Ciro vai ter que vestir a camisa do governo, porque o presidente [Bolsonaro] é totalmente favorável. Ou ele [senador] vai convencer o presidente do contrário, diante das posturas públicas que o presidente teve, ou ele vai ser convencido e melhorar a relação do governo com a própria Câmara”, pondera um interlocutor palaciano.
Embora a relação entre o governo e a Câmara esteja ajustada, segundo avaliam assessores do Planalto, a expectativa é de que Nogueira possa reforçar a articulação. Inclusive sendo um intermediador no recente e conturbado relacionamento entre Bolsonaro e o primeiro-vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), que tem respondido a críticas do presidente da República com ameaças de impeachment.
Mãe de Ciro Nogueira assume vaga no Senado se ele virar ministro
General Ramos diz que não sabia sobre demissão: “Fui atropelado por um trem” Os riscos que Bolsonaro corre ao trazer Ciro Nogueira para o Planalto Apesar das vantagens políticas em indicar Ciro Nogueira para a Casa Civil, aliados e correligionários do senador fazem ressalvas. A avaliação quase unânime no meio político é de que a escolha dele sugere um governo mais pragmático, mas ainda paira a dúvida sobre como Bolsonaro se adequará a isso.
O presidente da República dosa o tom e o discurso desde quando se alinhou ao Centrão, em 2020. Ora ele pendula mais ao centro, ora mais à direita, fato que levou ministros políticos a aconselharem um diálogo menos radical com o eleitorado. Agora, com Nogueira na Casa Civil, aliados da base alertam que Bolsonaro terá uma última chance de moderar as falas e evitar maiores polêmicas com as instituições.
“O Ciro é a última trincheira do Bolsonaro. Num eventual racha [com o senador], ele [Bolsonaro] está caçado. É um convite de sobrevivência, o tudo ou nada. Se buscar o equilíbrio e pragmatismo, ele vai se fortalecer muito caso pare de criar confusão desnecessária”, avalia um senador da base.
O deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), presidente da Frente Parlamentar Brasil-China, analisa que Bolsonaro pode se enfraquecer se a relação com Nogueira ficar insustentável. “O Bolsonaro tem condições de construir muitas pontes com pessoas de centro e centro-direita, que entraram em rota de colisão com o governo pela falta de pragmatismo e o excesso de ideologismo”, analisa.
Aliados e correligionários de Nogueira não acreditam que Bolsonaro adotará uma postura totalmente pragmática, mas esperam, ao menos, uma moderação nos discursos. Já governistas no Congresso apostam que Bolsonaro saberá dosar o tom de olho em 2022. “Agora, o foco para todo mundo é a reeleição do presidente, temos que focar nisso”, pondera um deputado “bolsonarista”.
Bolsonaro no PP? A decisão de trazer Ciro Nogueira para o governo traz embutida a possibilidade de Bolsonaro se filiar ao PP. Dois interlocutores ouvidos pela Gazeta do Povo acham difícil a filiação, mas um terceiro assessor palaciano aponta que o alinhamento com Nogueira pode tornar isso possível, sobretudo após o próprio presidente afastado do Patriota, Adilson Barroso, confirmar que ele conversa com outras legendas.
Ter o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como potencial adversário em um possível segundo turno levou Bolsonaro a manter conversas e sondar, desde maio, uma filiação ao PP. “É algo que volta ao radar, mas ainda não consigo avaliar o grau de possibilidade de isso se concretizar ou não”, sustenta um interlocutor palaciano.
A filiação ou não ao PP não impede, entretanto, que Bolsonaro comece a montar seus palanques eleitorais para 2022, com o apoio de Ciro Nogueira. Além do Piauí, base eleitoral do senador, e do Acre, estado governado por Gladson Cameli (PP) — que tentará a reeleição —, o partido mira a montagem de coligações nos demais estados.
Em São Paulo, por exemplo, o maior colégio eleitoral do país, Nogueira deu sinal verde para o deputado Fausto Pinato atuar na coordenação da campanha de Geraldo Alckmin, ex-governador do estado — que pode ir para o PSD —, na reedição da chapa com seu ex-vice e ex-governador Márcio França (PSB).
O desejo de Bolsonaro é lançar seu ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, para o governo de São Paulo, mas o próprio ministro não demonstra vontade de disputar o cargo, segundo apurou a reportagem. Nas pesquisas eleitorais, Alckmin aparece à frente do vice-governador do estado, Rodrigo Garcia (PSDB), o candidato do tucano João Doria, e do candidato do PT, Fernando Haddad.
O presidente da República não é aliado de Alckmin, mas o PP — por meio da articulação de Pinato nos bastidores — tenta convencê-lo de que, num eventual segundo turno entre o ex-governador e Haddad ou Garcia, a melhor alternativa seria caminhar junto com o possível candidato do PSD ao governo paulista.
Bolsonaro anunciou que irá recriar o Ministério do Trabalho e Previdência.| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo
A recriação do Ministério do Trabalho e Previdência é a notícia mais importante desta quarta-feira (21). Na verdade, foi extinto o status de ministério, mas a estrutura toda continuava como um anexo do Ministério da Economia. Tinha lá um secretário especial da Previdência, que agora será o secretário-executivo do novo ministério e eventual substituto do futuro ministro. Ele se chama Bruno Bianco Leal.
E o novo ministro do Trabalho, que já foi ministro da Cidadania e da Secretaria-Geral da Presidência da República, será o gaúcho Onyx Lorenzoni. Ele foi o primeiro a apoiar o deputado Jair Bolsonaro, quando este disse que ia se lançar candidato à Presidência da República.
E no lugar de Onyx deve ir o general Luiz Eduardo Ramos, que hoje está no Gabinete Civil. E para o Gabinete Civil vai o presidente do PP (Progressistas), o senador pelo Piauí Ciro Nogueira, que está no Congresso desde 1995. Ele tem um quarto de século de Congresso. Foi deputado federal várias vezes.
Ciro é do partido que por mais tempo Bolsonaro ficou: foram 12 anos no Progressistas. Eu continuo apostando que a candidatura à reeleição dele vai ser pelo PP. Agora, essa desconfiança fica mais forte.
E com Ciro Nogueira indo para o governo, uma perna do Centrão pende para dentro do Palácio do Planalto, não tem jeito. Foi uma bela jogada no xadrez político por parte do presidente.
E ao mesmo tempo, num momento de recuperação do emprego, com 200 mil carteiras assinadas por mês em média, Bolsonaro recria o ministério fundado nos anos 1930 por Getúlio Vargas.
E não só do Trabalho, mas também da Previdência Social, que é importantíssima, gigantesca, e está presente em todos os lares brasileiros. É uma área que precisa de um cuidado especial para garantir o futuro das pessoas, dos aposentados e dos pensionistas.
E é bom lembrar que a volta do Trabalho não aumenta o número de ministérios, porque o Banco Central já não tem mais o status de ministério, hoje é um órgão independente. Então o governo continua com o mesmo número de 23 ministros.
STF volta aos velhos tempos A ministra Cármen Lúcia, que já foi presidente do Supremo Tribunal Federal, negou mandado de segurança para obrigar o presidente da Câmara a analisar um pedido de impeachment do PT, de maio do ano passado, contra Jair Bolsonaro.
O pedido de liminar foi protocolado pelo deputado federal por São Paulo Rui Falcão, que foi por sete anos presidente do PT. E pelo ex-candidato à Presidência da República, Fernando Haddad, que perdeu a eleição para Bolsonaro por 11 milhões de votos.
O motivo do pedido de impeachment foi porque o presidente da República, que é o comandante supremo das Forças Armadas, foi a uma manifestação na frente do quartel general do Exército, em Brasília, e lá havia cartazes pedindo intervenção militar.
Os petistas alegam que o presidente estava pedindo intervenção, mas ele foi até lá apenas para dar uma saudação aos seus apoiadores. Até porque o presidente não precisa pedir intervenção, porque o presidente é o comandante das Forças Armadas. Então, se não houve intervenção é porque o presidente não pediu e nem pretende pedir.
Moral da história: a ministra Cármen Lúcia mostrou que há um renascimento de uma posição antiga do Supremo. Toda vez que o STF recebia demandas políticas, da Câmara, Senado, deputados ou senadores, respondia: “vai para o arquivo, isso é uma questão interna, política, da Câmara ou do Senado. Resolvam aí, entre vocês”.
Agora, a ministra disse: arquive-se, não tem mandado de segurança, não tem liminar e disse que isso macularia o princípio da separação de poderes. O atual presidente do Supremo, Luiz Fux, pensa assim e a ex-presidente também.
Segundo artigo da Constituição: separação dos poderes; harmonia e independência entre eles. Porque às vezes a gente pensa que o sonho de Montesquieu virou pesadelo aqui no Brasil.
Fotomontagem: Bolsonaro e Lula aparecem nas primeiras posições em pesquisa para eleições 2022.| Foto: Arquivo Gazeta do Povo
Politicamente considero a expressão “terceira via” sofrível. Se funciona retoricamente, já são outros quinhentos. Afinal, o termo “terceira via” pretende apresentar alternativas entre Bolsonaro e Lula, entre reacionários e revolucionários.
Prefiro pensar em termos de duas vias: a via do populismo — seja de esquerda ou de direita — e a afirmação democrática, que significa basicamente a ousadia de se sentar à mesa e negociar com adversários sem passar pelo constrangimento de reduzi-los a inimigos mortais.
Assumir uma terceira via significa creditar a Lula e Bolsonaro duas alternativas e o resto. E possível inverter essa fórmula: existe a via democrática e o resto é demagogia. Por “resto” entendo duas concepções de mundo que se retroalimentam: bolsonarismo e lulismo são faces de um mesmo imaginário político: pensamento mítico, salvadores da pátria, demagogia…
Em 2014, bem antes de Bolsonaro sonhar em ser presidente da República, escrevi aqui mesmo pra Gazeta o seguinte:
Abro aspas: De intelectuais catedráticos a meninos na puberdade, muitos fazem questão de ser identificados como de esquerda ou direita. Leem autores considerados de esquerda ou direita, descrevem com nostalgia como a vida em países de esquerda ou direita é magnífica, escolhem políticos, escolas, roupas e, no extremo, até namoradas e namorados. Isso para não falar do risco de se ter uma sogra de esquerda ou direita.
Até ontem, pegava muito mal estar associado à direita; hoje, virou motivo de orgulho. Por outro lado, os desacreditados intelectuais de esquerda precisam reafirmar que a esquerda não teme dizer seu nome. Como o futebol está em baixa no país do futebol, trata-se de uma questão de identidade. Prova de que o desejo de autoafirmação política ultrapassa os limites dos rótulos.
Nesse sentido, torna-se inevitável o uso desses termos — pelo menos no que diz respeito à tentativa de identificar alguém que tem orgulho em ser chamado assim. Para evitar a paixão desmiolada dos adjetivos ideológicos, é preciso mapear os lugares-comuns de ambos os grupos. Não é difícil fazer um inventário dos termos elementares mais usados por eles.
Sempre e invariavelmente, quem se orgulha da esquerda chamará de ‘fascista’ todos aqueles que não são ou desprezam a esquerda. Não interessa se o seu oponente for um liberal defensor da economia de mercado, um entusiasta do Estado mínimo, um católico distributivista ou um anarquista convicto. Para quem é de esquerda, não ser de esquerda é ser fascista. O que significa: ser simpatizante de ditador nacionalista, elite branca e torturador xenofóbico.
Já os de direita adotam o termo ‘comunista’ para os seus desafetos. Comunismo tem nesse contexto o mesmo peso constrangedor de chamar alguém de nazista. Não interessam as radicais diferenças históricas entre os dois regimes totalitários, não interessa a variedade histórica dos “comunismos”. Só interessa uma coisa: a associação ao imaginário de morte e terror. Ser comunista é ser genocida e totalitário. E é isso o que seu amigo de direita pretende dizer quando chama você de comunista.
A esquerda odeia a ‘classe média’ mais que tudo. Ódio explícito: a classe média é a razão para toda desgraça do país. Da enchente à falta d’água, do trânsito nas metrópoles à violência relacionada ao tráfico de drogas, do caso de suspeita de ebola à cracolândia. Não interessa: a classe média é o bode expiatório da esquerda. Se você, da classe média, for roubado, sequestrado ou queimado por bandidos, lembre-se sempre: para o seu amigo de esquerda, a culpa será sempre e inevitavelmente sua.
Já a direita tem uma tendência menos explícita para identificar culpados. Por isso, está sempre à procura de “agentes ocultos” e tem preferência por explicações de teor conspiratório. A culpa não é totalmente sua, você é só mais um idiota útil servindo à Nova Ordem Mundial, ao Foro de São Paulo ou ao marxismo cultural, cujos agentes estão infiltrados na Igreja Católica, no MEC, na Maçonaria, na festa junina. Enfim, a sua única responsabilidade é a de ser um idiota. Fecho aspas.
Não mudei uma vírgula do que escrevi em 2014. Hoje, apenas substituiria os genéricos termos “esquerda” e “direita” por “Lula” e “Bolsonaro”.
Para bolsonaristas ou você é Bolsonaro ou comunista; enquanto defensores de Lula consideram fascista tudo o que não é espelho. Ao contrário do que eles mesmos propagam, um não supera o outro, pois se complementam: Reacionários bolsonaristas invertem a imagem de mundo dos progressistas petistas; sendo assim, não superam o que visam combater, mas impulsionam e legitimam o adversário — e, claro, devemos considerar o fato de que o contrário também é verdadeiro. Detalhe é que a violência política se torna o subproduto dessa relação amorosa.
Isso não é política, mas politicídio. Para inverter uma conhecida fórmula de Marx, aqui no Brasil parece que a história se repete, só que a primeira vez como farsa e a segunda como tragédia.
Durante vários anos, trabalhei como engenheiro de sistemas em uma multinacional do ramo de telecomunicações. Meu serviço consistia na instalação, programação e manutenção de centrais de telefonia celular espalhadas por todo o Brasil.
Centrais de telefonia celular são peças importantíssimas na vida contemporânea – telefones celulares são o modo de conexão de mais de 54% de todo o tráfego de internet mundial, e mais de quatro bilhões de pessoas possuem uma linha ativa tanto para telefonia quanto para dados. Pode-se dizer, portanto, que essas centrais formam uma rede de infraestrutura para um serviço essencial de comunicação. Para operar como algo essencial, precisam ter múltiplos níveis de redundância em seus componentes, para garantir que o serviço não será interrompido pela simples falha de uma CPU, por exemplo.
Um parênteses aqui: a redundância é conceito presente em toda e qualquer criação humana que impacte significativamente a vida neste planeta. Aviões têm pelo menos duas turbinas, e precisam ser capazes de voar com apenas uma delas. Pontes e viadutos são construídos para aguentar duas vezes mais peso que a situação de maior estresse a que possam ser submetidos.
Nas centrais que eu programava, havia redundância em tudo. CPUs e ventiladores do gabinete principal tinham redundância 3N, ou seja, o equipamento funciona com uma unidade mas tem mais duas sempre prontas para assumir caso haja uma falha. Os enlaces de comunicação entre a central e as estações rádio-base são sempre com redundância 2N. Internamente, as placas de processamento costumam ter redundância N+1 ou N+2. Isso significa que um conjunto de placas compartilha uma ou duas placas-reserva, por duas razões: primeiro, porque o sistema não sai do ar por completo no caso de falha de um desses componentes; segundo, porque seria inviável, física e economicamente, dobrar o número de placas para se fazer um 2N.
Se você está se perguntando sobre o que um artigo falando sobre modelos de redundância está fazendo numa coluna de opinião política, esclareço. Precisamos entender que a peça mais importante do jogo democrático – o voto – precisa estar protegida por alguma redundância. Ou seja, sim, estou falando de voto impresso.
Tenho acompanhado a abordagem geral da imprensa brasileira sobre o tema, e o tom é sempre o mesmo: tentar desqualificar a necessidade de mudança no sistema brasileiro de urnas eletrônicas, como se o voto impresso fosse uma invenção louca da cabeça de Bolsonaro e seus defensores. Ora, como já critiquei anteriormente, ser contra algo somente porque Bolsonaro é a favor é das posturas mais idiotas que existem. Ninguém em sã consciência rejeita mais segurança, ainda mais quando a contrapartida não é menos liberdade. Voto impresso é redundância de apuração, é garantia de que um resultado físico estará disponível caso algum imprevisto aconteça.
Sinceramente, não consigo entender os argumentos de quem é contra essa evolução. Alguns dizem, na mais pura ignorância ou má-fé, que o voto impresso tolherá a liberdade do eleitor, que sairá com uma prova de que votou em sicrano ou beltrano. Isso não passa de desinformação. Todos os sistemas de voto eletrônico e impresso existentes no mundo utilizam soluções que podem ser resumidas em dois tipos básicos: ou o eleitor vota em uma cédula de papel e esta é depositada em uma urna que consegue lê-la eletronicamente, ou o eleitor vota em uma urna eletrônica que imprime um voto de confirmação e o deposita automaticamente em local inacessível e inviolável após verificação visual de quem votou. Não existe essa de “levar o voto para casa”.
Além dessa mentira deslavada, o restante das argumentações são simplesmente ilógicas ou decorrentes de grave incapacidade cognitiva, coisas do tipo “Bolsonaro vai dizer que houve fraude com ou sem voto impresso”, “se o Bolsonaro está querendo isso, é certeza de que não é coisa boa”, ou ainda o famoso “para quê voto impresso se o TSE já garantiu que as urnas são auditáveis e que é impossível fraudá-las?”.
A mim, pouco importa se Bolsonaro quer ou não o voto impresso. Eu sei que isso vai aumentar a segurança do meu voto, que vai dar mais confiabilidade ao processo. O TSE pode dizer todos os dias que as urnas não podem ser fraudadas, e isso não mudará o fato de que grandes empresas e importantes órgãos de governo em todo o mundo são alvos constantes de hackers e invasores. Especialistas da área de TI são categóricos: não existe sistema digital 100% seguro. O que existe é um esforço constante de aprimorar a segurança antes que a próxima invasão aconteça, ou seja, melhorar as defesas antes que os criminosos descubram como desmontar o sistema vigente. Por que deveria ser diferente com as urnas eletrônicas? Por que não ter a possibilidade de auditoria, urna por urna, caso discrepâncias de grande significado estatístico sejam encontradas?
Como formadores de opinião, é nossa obrigação esclarecer esse assunto e ajudar as pessoas a pensar fora do discursinho infantil da grande imprensa. Esse pensamento de jardim da infância, onde eu não posso gostar de algo que aquele menino gosta somente porque ele não é meu amiguinho, não deve ter lugar numa imprensa independente e imparcial.
Há registro de alguém que tenha ligado para o banco em que mantém conta corrente e recusado a nova atualização de segurança? Ou de alguém que tenha mandado retirar uma das fechaduras da porta da frente, porque duas são demais? Ou então, de quem deixe o estepe em casa porque a chance de furar um pneu é pequena demais? É claro que não. O ser humano é uma criatura que cria planos B por natureza. E o voto impresso é o plano B das urnas eletrônicas. Sem ele, ficamos à mercê da palavra dos mesmos políticos e burocratas que mentem diuturnamente para nós. Como diz o ditado, é colocar a raposa para cuidar do galinheiro.
Foque suas energias em como ‘convencer’ os seus clientes a abandonar os concorrentes para que dessa forma, os seus números aumentem
Por Camila Farani – O Estado de S. Paulo
Para desenvolver algo que se considere disruptivo, um empreendedor deve ver as coisas como elas devem ser em suas próprias visões, mas não como são no momento. Era assim que empreendedores como Henry Ford, Steve Jobs, Elon Musk , Walt Disney pensaram no início de seus negócios. Mas o que podemos aprender com eles e repetir? Pensando nisso, separei três principais dicas para você.
Primeira delas: mantenha a sua concentração nas entradas e não na saída. A maioria das pessoas se concentra nos “resultados” – indicadores financeiros, como receita e eficácia da publicidade, e os compara com esses indicadores.
Os profissionais que possuem uma visão de futuro não focam em realizar tarefas manuais e demoradas
Quando você prioriza o final, você não foca no principal, no presente que terá impacto no futuro. Foque suas energias em como “convencer” os seus clientes a abandonar os concorrentes para que dessa forma, os seus números aumentem, essa é a mentalidade na qual grandes imagens do mercado com pensamento disruptivo seguem.
Tarefa número 2: automatize primeiro. Os profissionais que possuem uma visão de futuro não focam em realizar tarefas manuais e demoradas, isso apenas facilita para o aumento da concorrência – ao ponto que te substituam no mercado de maneira rápida. Quando pensamos neles, pensamos em pessoas que focam em operar na escala do que em atividades mais artesanais.
Terceira etapa importante: mude a sua narrativa. Foque em como serão contadas as informações. Grandes mentes do empreendedorismo focam na narrativa para atrair outros empreendedores ou investidores para informar sobre uma ideia. Eu concordo que os números são essenciais, para informar a viabilidade de um negócio, mas é preciso que entenda que o que realmente importa é a forma na qual você direciona a informação, ser um bom contador de histórias alinhado a dados vai te proporcionar o melhor para que possa engajar outras pessoas no que você pensa.
A partir disso, você precisa pensar em três principais pontos: eu, nós, e a ação. Inicie no “eu”: será essencial para ajudar a criar o clima da história e a colocar o empreendedor na narrativa, sempre partindo de algum acontecimento importante de sua vida. Um momento decisivo ou vários momentos repetitivos criam um padrão, que explica a origem da ideia, necessidade e problema a ser resolvido.
A segunda parte, “nós”, é usada para criar empatia. Nesse momento, temos um encontro entre o empresário e as pessoas que ouviram sua história, que se identificaram em algum momento.
Por fim, a terceira parte é sempre um apelo à ação. O momento em que “eu” e “nós” estão ligados como causa e propósito representa uma ligação que vai despertar o desejo dos consumidores. Você já tinha pensado assim? Vale a reflexão.
Sistema de governo na França dá mais poderes ao chefe do Executivo, afirma consultor do governo português
Weslley Galzo, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – O professor Carlos Blanco de Morais conhece em profundidade as particularidades do sistema semipresidencialista, em vigor em Portugal há 50 anos. Para ele, que é consultor jurídico da Presidência do Conselho de Ministros português, a discussão sobre a possível mudança de modelo de governo no Brasil apresenta níveis de complexidade maiores do que a realidade observada em democracias europeias. “Se for um semipresidencialismo à portuguesa, funcionará muito mal”, afirmou Morais em entrevista ao Estadão. Ele defende que o histórico presidencialista do País, repactuado em plebiscito nos primeiros anos pós-redemocratização, permitiria mais facilmente uma mudança para um formato em que o presidente preservasse boa parte dos poderes, como na França.
O jurista destacou a alta fragmentação partidária no Brasil como um problema urgente, que precisa ser resolvido antes de as lideranças do Congresso projetarem a reforma política, que passou a ser apoiada publicamente por três dos seis ex-presidentes que governaram o País após o fim do regime militar. Portugal tem somente dez partidos com representação na Assembleia da República; no Brasil esse número mais que dobra, são 22. Existem ainda 77 partidos atualmente em processo de formação.
Para Morais, alta fragmentação partidária no Brasil é ‘problema’ a ser resolvido. Foto: Luis Filipe Catarino/4SEE
O consultor do governo português afirmou ainda que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC), do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), que prevê a transição para o semipresidencialismo, pode produzir o efeito oposto da tão almejada estabilidade política se não considerar outras reformas antes de sua criação. A pauta revivida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), como forma de contornar a pressão pela abertura do processo de impeachment do presidente Jair Bolsonaro, pode tanto estancar crises quanto acirrar a polarização.
A oposição ao governo do presidente Jair Bolsonaro critica o modelo semipresidencialista por supostamente esvaziar os poderes do presidente da República. Como funciona o semipresidencialismo em Portugal? A tese levantada pela oposição contra esse sistema de governo é constatada na realidade de países como França e Portugal?
São sistemas muito diferentes, o Brasil está há muito tempo arraigado em torno do sistema presidencialista, enquanto Portugal e França consolidaram o sistema semipresidencialista. É claro que um sistema semipresidencialista atribui menos poderes ao presidente da República, mas existem variantes. O sistema semipresidencialista francês dá mais poderes ao presidente da República, ele é o verdadeiro chefe do Executivo, mas há de haver um primeiro-ministro. Em Portugal é diferente, o semipresidencialismo tem uma vertente diferente: de poder moderador. De fato, o papel moderador é um função em que o presidente não governa, mas influi nos outros órgãos de poder. Em um caso ou em outro, é óbvio que o presidente tem menos poderes do que no presidencialismo. Aquilo que se chama no Brasil de presidencialismo de coalizão, em que o presidente conquista uma base parlamentar sólida de apoio e consegue de alguma forma passar parte das suas reformas, faz com que o presidente que não tem essa base de sustentação acabe perdendo as poderosas faculdades que a Constituição lhe confere.
Se o semipresidencialismo for instituído no Brasil, em quais áreas e quanto poder o presidente perderia?
Em primeiro lugar, o presidente da República teria de repartir os poderes com um governo associado ou dissociado dele, e haveria que coexistir com um primeiro-ministro. Seria o presidente a nomear o primeiro-ministro e os membros do governo? Ficamos sem saber exatamente. Tudo depende da variante. Em Portugal, por exemplo, o presidente da República nomeia o governo levando em conta os resultados eleitorais, o que significa que, se houver um partido com maioria absoluta no Parlamento ou em coligação, o presidente não tem muita margem de manobra para escolher o primeiro-ministro. Teria de indicar o líder do partido maioritário, ou o candidato proposto pela coligação apenas por razões fortes poderia recusá-lo. Já reduziria o poder pleno de escolha dos ministros. Em segundo lugar, o governo manteria as funções do sistema presidencialista brasileiro enquanto os membros do governo gozassem da confiança do presidente. Em terceiro lugar, se, em determinado momento, um governo deixasse de ter a confiança do Parlamento, os parlamentares poderiam aprovar uma moção de censura acarretando a demissão do governo. É uma diferença significativa, pois, enquanto no Brasil os membros do governo dependem exclusivamente do presidente da República para manterem as suas funções, em Portugal e na França o governo depende também da existência de confiança parlamentar. Ainda assim, em um sistema semipresidencialista, o presidente pode dissolver o Parlamento e convocar eleições. Portanto, perderia poderes relativos ao Executivo, mas ganharia poderes de controle político em relação ao Legislativo.
Dado esse quadro que o senhor acabou de explicar e conhecendo a realidade do Brasil, a criação do sistema semipresidencialista no País ajudaria a controlar ou a diminuir as crises políticas?
Isso já foi objeto de uma troca de ideias que eu tive com o ministro Gilmar Mendes e o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho. No semipresidencialismo, há duas cabeças e não uma. No Brasil, se for um semipresidencialismo à portuguesa funcionará muito mal, porque em Portugal o presidente da República é alguém que se distancia do ato de governar, é um “regulador” do sistema, que exerce poderes de direção política e de controle. Nesse cenário, o modelo francês seria mais relevante na medida em que o presidente tem maiores poderes executivos. Há mais espaço para o primeiro-ministro governar. Assim, eu diria que, para um sistema presidencialista como o brasileiro, seria mais apropriado evoluir para o modelo francês, onde o poder do presidente continua forte.
A oposição no Brasil tem outra tese, a de que a criação do semipresidencialismo significaria entregar o poder ao Congresso. A tese faz sentido?
Pode fazer sentido se continuar o atual sistema de fragmentação partidária. O Brasil está entre os países que têm maior fragmentação de partidos na Câmara dos Deputados e no Senado. O semipresidencialismo tem uma componente parlamentar, o governo cai se não tiver a confiança do Parlamento. Seria possível o governo ter uma base de apoio para a estabilidade com uma fragmentação tão grande? Se o Brasil evoluísse para um sistema semipresidencialista com o sistema partidário fragmentado que tem, isso seria um convite à total instabilidade. Qualquer mudança deveria implicar uma reforma eleitoral radical que reduzisse o número de partidos políticos para um terço dos representados no Congresso, o que ainda seria muito. É necessário reformar radicalmente o sistema partidário e eu não vejo grande possibilidade atualmente. Os partidos não querem cometer eutanásia, e tenho dúvidas que a cláusula de desempenho consiga reduzir os partidos.
A cláusula de barreiras atingirá seu ápice nas eleições de 2030, mas defensores do semipresidencialismo sugerem que já esteja operando em 2026. É viável e prudente substituir o atual modelo de governo antes desse prazo?
Eu acho que tentar mudar o sistema político antes de mudar o sistema eleitoral é uma temeridade. Primeiro tinha que haver uma reforma eleitoral drástica. A cláusula de barreira tem esse efeito de diminuição de muitos partidos políticos, mas eu sei que isto pode levantar mais críticas, porque não vamos aproveitar muitos votos. Portanto, eu acho que o Supremo Tribunal Federal poderia alterar a sua jurisprudência sobre a inadmissibilidade da cláusula de barreira, seguindo-se alguma emenda constitucional nesse sentido, antes de migrar imediatamente para o semipresidencialismo. Eventualmente, seria melhor antecipar a reforma eleitoral, e depois fazer a reforma política, para não cair em um mal maior. O semipresidencialismo funciona, desde que com uma redução muito significativa de partidos políticos no Congresso.
O semipresidencialismo é aventado no Brasil como um sistema que seria o contencioso de crises institucionais mais agudas, com destaque ao impeachment. A implementação de um novo modelo de governo é solução mais efetiva para a realidade brasileira do que a criação de dispositivos para controle de crises, como o recall eleitoral?
O problema brasileiro é que, como não há uma moção de censura parlamentar ao governo que o possa fazer cair, os pedidos de impeachment surgem como seu mau substituto com grande frequência. Querem que o governo caia, mas, como não é possível fazer cair apenas o governo, fazem sucessivas tentativas de impeachment. É fato que o semipresidencialismo retira essa carga, porque é possível mover moções de censura que geram menos dramatismo do que o impeachment, que implica responsabilização criminal do presidente. As censuras são vistas como crises políticas, o sistema reage bem. Porém, elas também podem causar instabilidade se forem feitas de forma sucessiva. Se o Brasil vier a ter o semipresidencialismo, é fundamental que tenha moções como na Alemanha, que impõem ao Congresso a obrigação de definir um novo primeiro-ministro ao tentar derrubar o governo. Isso responsabiliza quem se move para derrubar uma gestão.
As críticas ao semipresidencialismo também se concentram em seus aspectos similares ao parlamentarismo – modelo duas vezes recusado pela população brasileira. O semipresidencialismo está mais próximo do parlamentarismo ou do presidencialismo?
Se estivermos pensando no modelo francês, estaremos mais próximos de um governo presidencialista. É o que eu acho que se ajustaria mais ao Brasil em um cenário de transição.
Governos mais radicais e que eventualmente contam com apoio popular seriam pressionados a fazer concessões em seu projeto político em busca de apoio?
Se um governo radical sem maioria no Parlamento entra em conflito com os parlamentares por não conseguir viabilizar o seu programa político, o Parlamento derruba o governo. Quando um presidente se confronta com um Parlamento que não lhe agrada, o melhor que tem a fazer é designar um primeiro-ministro dentro de uma coalizão no Parlamento e coabitar com ela. O semipresidencialismo não é uma receita mágica. A chamada coabitação é um risco: um presidente radical de uma determinada tendência política deve coexistir com um Parlamento com uma orientação completamente distinta. Imagine que o presidente Bolsonaro é reeleito, mas quem ganha as eleições parlamentares é o PT ou uma coligação de esquerda. Seria necessário coexistir. Essas situações onde há uma grande polarização política seriam pouco desejáveis. Esse é o caso de Portugal, onde um presidente eleito pela centro-direita tem que coexistir com governos de esquerda ou centro-esquerda.
A fragmentação partidária e o fisiologismo apontados diversas vezes no sistema político brasileiro podem produzir o efeito inverso do esperado e acabar estimulando reiteradas dissoluções de governo, ao invés da almejada estabilidade?
É possível, desde que haja fragmentação partidária. Se houver poucos partidos políticos no Parlamento e partidos da mesma tendência que possam formar uma coalizão, a possibilidade de derrubada é menor. Além disso, no caso de se instituir a moção de censura construtiva, haverá ainda maior estabilidade. No entanto, é óbvio que com parlamentarismo ou o semipresidencialismo, com a atual fragmentação partidária ou uma próxima da metade da atual, o risco de derrubada do governo é permanente. Só não tem o trauma do impeachment.
A presença periódica do primeiro-ministro no Parlamento é por si só um mecanismo de contenção de crises?
Eu acho que a presença ritual do primeiro-ministro no Parlamento é muito midiatizada e teatralizada, portanto, tem ajudado mais do que prejudicado o governo. O diálogo entre o governo e o Parlamento passa por contatos mais discretos, através dos líderes de bancada com os ministros do governo. Do ponto de vista da opinião pública, é importante dar respostas a situações relevantes da vida nacional. Mas a essência das relações entre o governo e a oposição passa por negociações permanentes, fora dos holofotes.
A senadora Simone Tebet criticou o sistema presidencialista dizendo que seria inviável com a atual composição do Congresso. A criação da figura do primeiro-ministro traz mais estabilidade ao governo ou pressiona o presidente a indicar um nome de interesse do establishment para garantir apoio?
Depende. O semipresidencialismo com o atual Congresso não funcionaria, mas, na medida que se resolva o problema da fragmentação parlamentar e partidária, a situação mudaria significativamente. Obviamente que, se os partidos do establishment tiverem uma maioria no Parlamento, condicionariam o presidente na escolha do primeiro-ministro. Se o presidente escolher alguém de sua confiança, mas que não tivesse apoio parlamentar ou afrontasse a maioria, obviamente que o governo poderia não subsistir. O presidente muitas vezes teria de aceitar a indicação feita pela bancada majoritária, seja ela o Centrão ou qualquer outra.
ENTENDA O SISTEMA DE GOVERNO
Como funciona o semipresidencialismo em Portugal?
Em Portugal, o presidente atua como uma espécie de mediador da relação entre os poderes. Ele não governa de fato, mas tem o poder de promulgar ou vetar leis e dissolver o Parlamento. O presidente se baseia no resultado das eleições parlamentares para indicar o primeiro-ministro, que é quem governa o país de fato.
Quem escolhe os ministros?
O primeiro-ministro é quem escolhe os integrantes da equipe de governo. É comum que presidentes de centro-direita indiquem primeiros-ministros de centro-esquerda, por causa da composição de maioria parlamentar.
Como funciona o semipresidencialismo na França?
Na França, o presidente indica o primeiro-ministro entre os deputados do partido ou da coalizão majoritária. Diferentemente de Portugal, é ele quem nomeia e comanda os ministros.
Quem faz a articulação política?
O presidente da França coordena a política externa, comanda as Forças Armadas e também tem o poder de dissolver o Parlamento. Neste modelo é o primeiro-ministro que exerce a função de articulador entre a Presidência e o Legislativo.
(*) Nos dois países o presidente é eleito por voto direto