quinta-feira, 3 de junho de 2021

PT QUER IMPEDIR A REALIZAÇÃO DA COPA AMÉRICA

 

Recurso no STF

Por
Alexandre Garcia – Gazeta do Povo

PT entrou com ação no STF para tentar barrar a realização da Copa América no Brasil. na foto, a presidente da legenda Gleisi Hoffmann| Foto: Lula Marques/Fotos Públicas

A Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão em Manaus, nesta quarta-feira (2), na Operação Sangria, que investiga desvios na saúde. O principal alvo foi o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC). Essa é a primeira vez que isso acontece a um governador do estado.

O curioso é que quando chegou na casa do empresário, Nilton Costa Lins Júnior, para cumprir um mandado, a PF foi recebida a tiros. Ninguém se feriu, felizmente.

Uma conclusão que cai por terra — mais uma vez — é a insistente narrativa de que o presidente Jair Bolsonaro influencia a Polícia Federal. Wilson Lima e Bolsonaro são aliados, mas de nada adiantou isso ontem.

Outro episódio que derruba essa história foi a operação contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, suspeito de facilitar o contrabando de madeira protegida da Amazônia. Vamos esquecer essas narrativas.

Porta aberta para governadores
Imediatamente após a operação, o senador Marcos Rogério (DEM-RO) pediu ao presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM), que é ex-governador do Amazonas, que fosse antecipada a convocação de Wilson Lima para prestar depoimento na comissão. Essa decisão poderia ter sido tomada pelo próprio Aziz.

É bom lembrar que a esposa de Aziz já foi presa temporariamente duas vezes, por um total de cinco dias, em uma operação que investigava, vejam só, desvios na saúde do Amazonas. Dois irmãos dele também foram detidos pelo mesmo motivo. Mas, atualmente, as investigações estão suspensas.

Voltando ao Lima. Ele foi um dos que assinou a ação no STF para suspender a convocação de governadores na CPI. Mas ele será convocado mesmo assim. O depoimento foi marcado para o dia 10 deste mês. Com essa porta aberta, outros chefes de Estado terão que comparecer também.

“Feixe de luz” na CPI
Aliás, a CPI está cada vez mais risível. O problema é que quando cai no ridículo os senadores perdem a credibilidade — não que alguns deles tenham credibilidade.

Nesta quarta, a médica Luana Araújo foi perguntada pelo senador Heinze (PP-RS) sobre quantos pacientes com coronavírus ela atendeu e ela afirmou que não sabia, que não tinha contado. Ainda assim, ela afirma ter soluções para a pandemia.

Todo mundo a tratou bem. Omar Aziz chegou a dizer que ela é um “feixe de luz”. Quando os senadores faziam perguntas que poderiam deixá-la desconfortável, eles eram interrompidos por alguns. É isso que nós temos visto todos os dias na CPI.

É muita hipocrisia
Achei muito engraçado o PT entrar no Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar impedir a Copa América no Brasil. Logo eles que fizeram a maior força no passado para promover a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016 no Brasil. Eu ouvi declarações antigas do ex-presidente Lula. Em uma delas, ele diz “não se faz Copa do Mundo com hospital, tem que fazer com estádio” para justificar gastos exorbitantes com arenas de futebol.

A outra afirmação que escutei é de 2013 em que ele afirma: “tem gente que acha que não pode fazer Olimpíada porque não tem hospital. Olha, sinceramente, acho isso um retrocesso enorme”.

É interessante a hipocrisia. Não só do PT, mas também de quem transmite o Campeonato Brasileiro e é contra a Copa América. Tem também os que estão se preparando para a Olimpíada de Tóquio, sendo que os japoneses ainda não imunizaram com duas doses nem 3% da população.

A força do agronegócio
A XP Investimentos sinalizou que o PIB brasileiro pode crescer 5,2%. A Bolsa de Valores de São Paulo está se aproximando dos 130 mil pontos. O Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo.

Já somos o maior em soja e o segundo em milho. Os suinocultores abateram 57 milhões de porcos em 2020. Esse é o futuro. A China está estimulando as famílias a terem um terceiro filho. Com mais bocas para alimentar, o mercado do agronegócio vai aumentar. Esse é o futuro que deixa desesperados aqueles que querem puxar o Brasil para baixo.


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MACHISMO NA CPI DA CLOROQUINA COM AS MULHERES

 

Por
Cristina Graeml – Gazeta do Povo

Nise Yamaguchi foi a vítima da vez. É mais uma mulher a sofrer com o machismo, a falta de educação e a arrogância daquele grupo de senadores da CPI da Covid que não quer investigar nada, apenas tentar a todo custo tirar uma frase, um mísero depoimento que seja para confirmar a tese pré-concebida de que o presidente Bolsonaro é o responsável pelas mortes de Covid-19 no Brasil.

Até parece que no resto do mundo não há um vírus mortal em circulação. Até parece que não houve desvios de dinheiro da Saúde nos estados e municípios, já largamente expostos pelas investigações da polícia federal e do Ministério Público.

Os senadores insistem que o culpado é o presidente e voltam sua verve inquisitória contra médicos que, onde já se viu, decidiram tratar seus pacientes logo nos primeiros sintomas com os remédios disponíveis no mercado.

Gente inconsequente assim, que não entende que o correto é largar os pacientes à própria sorte com um comprimidinho para dor de cabeça e a orientação para ficar em casa até ter falta de ar, merece ser mesmo ser jogada aos leões (no caso, às hienas do Senado). E foi o que aconteceu com a Dra. Nise Yamaguchi nesta terça.

Nise Yamaguchi, os machistas do Senado e o duplo padrão das feministas
Não imaginei que precisaria voltar tão cedo ao tema do abuso de senadores metidos a delegados quando têm diante de si uma mulher, mas aconteceu de novo. Apenas uma semana depois de vermos a Dra. Mayra Pinheiro passar horas sendo interrompida pelos machos do Senado, a filha de imigrantes japoneses, de fala mansa e currículo extenso, foi tratada como se fosse uma criminosa pega em flagrante delito.

Não há como se calar diante dos absurdos daquela inquisição acusatória contra a médica oncologista e imunologista, com 40 anos de serviços prestados ao tratamento de pacientes (mais de 15 mil atendidos), vasta experiência acadêmica internacional e reconhecimento também com pesquisadora, com doutorado em biologia molecular.

E bato de novo em outra tecla: a da falta de empatia da turma que finge defender mulheres vítimas de qualquer tipo de agressão. Essas pessoas não só não defenderam a Dra. Nise, como partiram também para o ataque, reforçando o deboche nas redes sociais, exatamente como já tinham feito com a Dra. Mayra Pinheiro na semana passada.

A exceção foram duas senadoras de oposição ao governo e ao tratamento precoce defendido pela Dra. Nise, que se manifestaram diante de uma das sequências de interrupções bruscas no depoimento. Eliziane Gama (Cidadania-MA) e Leila Barros (PSB-DF) reclamaram que a médica não conseguia concluir um único raciocínio e que homens não eram tratados dessa forma na CPI.

Se para as feministas em geral o que vem acontecendo na CPI da Covid pouco importa, para milhares de mulheres que não se sentem representadas pelo discurso rancoroso dessas falsas defensoras das causas femininas, importa.

O bordão “mexeu com uma, mexeu com todas” pode estar esquecido pelas adeptas do feminismo seletivo, mas é nessas horas que precisa ser lembrado pelo maior número possível de mulheres.

É triste ver mais um episódio de machismo explícito no Senado, a suposta casa da temperança, onde deveriam estar parlamentares preparados e ciosos de sua responsabilidade de representar não apenas pessoas, mas os entes federativos.

É também lamentável ver os senadores desperdiçando uma chance única de apurar corrupção nos governos estaduais e municipais, enquanto tentam sustentar narrativas que interferem na autonomia médica e na relação médico-paciente, algo que está fora da alçada legislativa.

Abusos e esclarecimentos
No vídeo que acompanha este artigo juntei trechos da famigerada sessão de terça-feira na CPI da Covid para ir pontuando as tentativas de alguns senadores de impedir que a Dra. Nise Yamaguchi compartilhasse um pouco do muito que estudou e sabe sobre Covid-19. (CPI da Covid: desrespeito no depoimento de Nise Yamaguchi – YouTube)

Fiz questão também de dar voz a esta médica que já foi chamada a ajudar ministros da Saúde dos governos FHC e Lula, antes de ser convidada pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, do atual governo Bolsonaro, para compartilhar sua experiência clínica tratando doentes graves e salvando vidas durante a pandemia.

Não vou transcrever trechos do depoimento, porque este é realmente o tipo de assunto que precisa ser visto e ouvido para ser melhor compreendido. Prepare o estômago, porque a atitude de alguns senadores chega a causar náuseas.

Há também algumas falas sem interrupção. Deixei fluir no vídeo os raros momentos em que a Dra. Nise Yamaguchi conseguiu falar. Assim a voz desta profissional, que vem salvando tantas vidas, chega ao maior número possível de brasileiros.

Para assistir ao vídeo basta clicar no play da imagem no topo da página. Como degustação destaco uma fala em tom de desabafo do presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM). Ele é um dos que costumeiramente ajudam a criar um clima hostil nos interrogatórios, mas não gostou de ver a interrupção brusca já na primeira resposta da depoente.

“Desse jeito o Brasil tá lascado, ‘mermão’.”

Senador Omar Aziz, pres. CPI da Covid, na sessão em 1 de junho
Veja com seus próprios olhos a petulância do senador Otto Alencar (PSD-BA) querendo dar um de professor em dia de prova oral, ignorando as respostas que a “aluna” Yamaguchi dava e, no fim, respondendo ele próprio o que havia perguntando (repetindo a resposta dada por ela três vezes seguidas antes) e ainda dizendo: “a senhora não sabe a resposta”. Ridículo é pouco para definir a cena.

Nise Yamaguchi acerta sobre protozoário e vírus e senador Otto Alencar erra taxonomia
Não à toa o movimento Médicos Pela Vida e o Conselho Federal de Medicina divulgaram cartas de repúdio ao tratamento dado à Dra. Nise Yamaguchi na sessão que abriu os trabalhos da CPI neste mês de junho. E os assinantes da Gazeta do Povo também externaram sua revolta com veemência.

“Eu vivi para ver uma mulher com currículo invejável, dando um show de educação, calando a boca de muito marmanjo metido a ‘dotô’.”

Assinante da Gazeta do Povo

“Paciência e estômago para suportar tanta cretinice. Ver uma médica do nível dela ser emparedada por gente dessa estirpe é constrangedor. Alguns chamam de circo, mas seria uma tremenda injustiça com os representantes de um segmento artístico tão valioso”, escreveu outro assinante na área de comentários de uma reportagem sobre a CPI.

“Mais um dia de vergonha para os inquisidores. Falta o quê para esses palhaços saírem do picadeiro?”, perguntou um terceiro, bastante indignado. Deixe você também sua opinião sobre a postura dos senadores e participe do debate. A minha está toda externada no vídeo acima.


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O HOMEM É MAU E REINA NA MALDADE

 

O que Shakespeare tem a dizer sobre Renan Calheiros e a maldade

Por
Paulo Polzonoff Jr. – Gazeta do Povo

O verso “O homem é mau e reina na maldade” reduz o homem a um amontoado de perversidade ambulante. Pode servir para Calheiros. Mas não para todo mundo.| Foto: Fotos Públicas

“O homem é mau e reina na maldade”. Essa é a conclusão do estranho Soneto 121, de William Shakespeare. Eu tinha uns 12 anos quando me deparei com a frase numa Reader’s Digest qualquer. Na época, não sabia nem o que era soneto nem maldade. Mas desde então a frase me assombra e enoja como uma barata existencial que preciso esmagar todas as manhãs para sobreviver.

O curioso é que, na tradução de Vasco Graça Moura, o verso, aqui e ali usado como prova de que Shakespeare não era muito afeito aos seus semelhantes ou de que o ser humano é incorrigível em sua perversidade, tem um sentido totalmente diferente. Ele encerra o poema dando a entender que é a retidão que triunfa sobre a maldade, restrita aos “oblíquos” que buscam, mas nunca alcançam, a primazia do mal.

Eu recto, eles oblíquos, nem podiam
seus pensamentos vis medir-me os actos,
a menos que esse mal fique de vez
e, todos maus, governe a malvadez.

Traduções à parte, o fato é que me lembrei do sombrio diagnóstico shakespeariano ontem, ao assistir à sessão da CPI (Circo Parlamentar da Ignomínia) da Covid que interrogou a médica Nise Yamagushi. Ao longo de toda a sessão de tortura, as palavras de Shakespeare me vinham como uma espécie de saco de risadas acionado sempre que os senadores Renan Calheiros e Omar Aziz se manifestavam.

Às 13 horas, quando outros compromissos me impediram de acompanhar o espetáculo funesto da nossa Câmara Alta, o estrago já estava feito. Eu estava semiconvencido de que, sim, o homem é mau e reina na maldade. E a maior prova disso é o senador alagoano e sua verve cínica, marcada pelo escárnio e pelo desprezo a tudo o que remotamente se assemelha à virtude.

Será que havia por aí outras pessoas na mesma condição? Pessoas que, no cotidiano, abrem sorrisos sinceros e distribuem abraços fáceis e procuram na palavra alheia sempre algo de bom, mas que, por causa de gente como o senador Renan Calheiros, hoje vislumbraram a ruína desse castelo panglossiano?

Imagine o bafo na alma!
Por mais que eu seja xingado de ingênuo, realmente acredito que é impossível para um corrupto (e, aqui, uso a palavra em seu sentido mais amplo, isto é, o de uma pessoa que se deixou afogar num pântano de más intenções) ser genuinamente feliz. Esse é o truque para compreender a maldade: ela tem em si um componente de sadismo que impede que o homem mau sinta o prazer que tanto busca no sofrimento alheio. O castigo do homem corrompido é a insatisfação eterna.

“Mas por que Deus deu a esses abutres a capacidade de planar e ver a beleza do mundo do alto?”, perguntei para o apartamento vazio, pensando justamente na aparente vida fácil de um senador que parece ter como único propósito de vida atazanar os outros. Ao ouvir minha voz, a Catota veio me estudar com seu olhar de felino julgador e seu ronronar generoso. Com a gata devidamente encolhida no meu colo, lembrei-me da resposta para a pergunta retórica: “Abutres se alimentam do que é podre. Imagine o bafo na alma!”. Foi assim que vi restabelecida, ainda que parcialmente, minha esperança.

Minha opção por rejeitar a conclusão fatídica de Shakespeare é racional e, portanto, intencional. Demanda certo esforço da razão e do espírito. Tenho cá nas minhas costas cicatrizes o bastante que me provam que, exageros poéticos à parte, o ser humano é, sim, mau e reina na maldade. Mas em algum momento dos últimos anos decidi ignorar o latejar insistente dessas feridas para me ater aos pequenos atos de bondade que fazem o meu dia.

Para me ater ao nascer do sol que registro diariamente como se fosse novidade. Ao ronrom da Catota. À risada do meu filho. Ao olhar apaixonado da minha mulher. À conversa matutina diária que tenho com meu amigo Cidão. À gargalhada de algum mendigo feliz por ter recebido um pão amanhecido de um benfeitor qualquer. E isso é algo que nenhum Shakespeare ou Calheiros vai me tirar.


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BIDEN DESCONFIA QUE A DISSEMINAÇÃO DO VÍRUS FOI PARA BENEFICIAR TRUMP

 


A Origem: Biden, China e a nova Caixa de PandoraPandemia x Geopolítica

Por
Daniel Lopez – Gazeta do Povo

Investigação sobre o coronavírus aumente tensão entre EUA e China| Foto: AP/Getty Images/Nikkei Asia

Em janeiro de 2020, eu conversava com alguns médicos sobre o que pensavam das notícias relacionadas ao novo vírus que havia aparecido na China. A esmagadora maioria defendia que se tratava, provavelmente, de um problema interno, sem potenciais riscos de transformar-se numa questão mundial. A opinião de grande parte dos analistas do mercado seguia na mesma linha. Minhas pesquisas indicavam o contrário. Um dos critérios que utilizei para suspeitar que haveria uma abrangência maior era o fato de que estávamos entrando num ano de eleições americanas, que sempre trazem a famosa Surpresa de Outubro, aquele evento extraordinário de grande potencial midiático para influenciar o resultado do pleito nacional, que tradicionalmente acontece no mês de novembro. Dessa forma, eu temia que o “sistema” (na ótica de Trump, composto por Big Tech, Big Media e Big Money) não perderia a oportunidade de usar a então incipiente crise sanitária como uma espécie de coringa contra a reeleição do presidente republicano.

Porém, outro aspecto de minhas investigações conduziu a um criterioso estudo sobre os laboratórios dedicados a pesquisas biológicas de segurança máxima, um tema ainda desconhecido do grande público e que apenas recentemente recebeu “autorização” para ser tratado nas plataformas online. Durante o ano de 2020, o tema sobre a origem do famigerado vírus foi transformado numa espécie de Caixa de Pandora, um tópico proibido, um tabu. Qualquer referência ao assunto era automaticamente classificada como negacionismo, ignorância e, até mesmo, xenofobia, principalmente quando proferido por Trump ou pelo presidente brasileiro. No entanto, de uma hora para outra, o assunto tornou-se não apenas aceitável, tanto pela mídia quanto por cientistas, mas foi transformado em ordem do dia, a matéria mais importante do momento. Ganhou outra coloração quando trazido à tona por Joe Biden, que ordenou, inclusive, uma extensa investigação sobre as origens do agente infeccioso. Essa mudança não é ocasional nem aleatória. É bem provável que exista uma grande estratégia geopolítica por trás de tão drástica alteração de postura. Contudo, antes de abordar esse aspecto, gostaria de trazer algumas informações.

No início do ano passado, fiz uma série de estudos sobre o estranho surto que preocupava o governo de Pequim. Um dos textos que usei de base foi um artigo publicado no dia 22 de fevereiro de 2017, diretamente da cidade de Wuhan, por David Cyranoski, na importante revista Nature. O título é Inside the Chinese lab poised to study world’s most dangerous pathogens (“Dentro do laboratório chinês pronto para estudar os patógenos mais perigosos do mundo”, em tradução livre do inglês). Nele, o correspondente da Nature na Ásia explica que o laboratório de Wuhan estava prestes a receber autorização para trabalhar com os agentes mais perigosos do mundo. A inauguração fazia parte de um projeto para construir entre cinco e sete laboratórios de nível 4 de biossegurança (BSL-4) em toda a China continental até 2025. O jornalista afirma, então, que a notícia foi recebida, ao mesmo tempo, com entusiasmo e preocupação.

No segundo parágrafo, o correspondente ressalta que alguns cientistas fora da China estavam muito apreensivos com a possibilidade de “fuga de patógenos” e com o “acréscimo de uma dimensão biológica às tensões geopolíticas entre a China e outras nações”. Quando li esse trecho pela primeira vez, fiz a mim mesmo a seguinte pergunta: “Já houve, por acaso, alguma ocorrência de fuga de patógenos de alta periculosidade?”. A resposta não é muito reconfortante. Reproduzo aqui o trecho da matéria que respondeu minha dúvida:

“O vírus SARS escapou de instalações de contenção de alto nível em Pequim várias vezes, observa Richard Ebright, biólogo molecular da Universidade Rutgers em Piscataway, Nova Jersey. Tim Trevan, fundador da CHROME Biosafety and Biosecurity Consulting em Damascus, Maryland, diz que uma cultura aberta é importante para manter os laboratórios BSL-4 seguros, e ele questiona quão fácil seria isso na China, onde a sociedade enfatiza a hierarquia” (tradução livre do inglês).

No trecho final do artigo, há dados ainda mais preocupantes. O autor cita que o biólogo Richard Ebright, quando questionado sobre o tema, colocou em dúvida a necessidade de mais de um laboratório BSL-4 na China continental. Ele receava que a iniciativa tivesse como motivação responder à grande quantidade de instalações de pesquisas biológicas espalhadas pelos Estados Unidos e Europa, que, segundo ele, também seriam injustificadas. O pesquisador acrescentou que o incomodava o fato de as pesquisas envolverem testes em primatas, o que poderia representar um nível ainda maior de risco, uma vez que são animais maiores, mais fortes e com capacidade de correr, arranhar e morder. Isso tudo começa a ficar muito estranho quando lemos que, segundo o Wall Street Journal, três cientistas de Wuhan buscaram tratamento hospitalar após ficarem doentes um mês antes do primeiro caso oficialmente confirmado de Covid-19.

Analisando novamente este artigo de 2017, muitas coisas passam a fazer mais sentido. Temos, inclusive, a impressão de que seria até muito nobre e justificado o recente interesse de Biden sobre a origem de tudo. Mas não podemos esquecer que o novo presidente americano possui uma agenda que caminha de mãos dadas com o Complexo Industrial-Militar, sempre ávido por iniciar novas guerras. Vocês se lembram quando Bush estava com muita pressa para invadir o Iraque, e procurava incansavelmente um motivo para inaugurar sua campanha bélica no Oriente Médio? A resposta veio com o suposto perigo trazido pelas armas de destruição em massa – tudo baseado em informações duvidosas, segundo demonstraria o Relatório Chilcot. Tenho o receio de que estamos diante de um cenário muito semelhante. Porém, desta vez, o perigo seriam armas biológicas. Olhando friamente para tudo isso, repito o que disse em janeiro de 2020: não estou gostando nada disso.


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REVOGAÇÃO DE LEI DE SEGURANÇA NACIONAL FICA PARADA NO SENADO

 

  1. Política 

Casa nem sequer definiu um relator para analisar projeto que altera a legislação elaborada no período da ditadura militar; proposta já foi aprovada na Câmara

Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Um mês após a Câmara decidir pela revogação da Lei de Segurança Nacional (LSN), a medida ainda segue em vigor. O projeto que altera a legislação elaborada no período da ditadura militar empacou no Senado, que nem sequer definiu um relator para analisar a proposta. O governo é contra a redação aprovada pelos deputados e atua para barrar o projeto. Enquanto isso, a regra segue sendo usada para inibir críticos do presidente Jair Bolsonaro.

Um dos casos mais recentes ocorreu no início da semana, em Trindade (GO), onde um policial militar deu voz de prisão a um professor que se negou a retirar do seu carro uma faixa em que chamava Bolsonaro de “genocida”. O agente de segurança citou como justificativa artigo da LSN que trata como crime “caluniar” o presidente da República, com pena de até quatro anos de detenção. A Polícia Federal, no entanto, não viu ilegalidade e liberou o professor.

Para a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), a ação do policial poderia ter sido evitada caso o Senado já tivesse revogado de uma vez a lei atual. “É estarrecedora e fruto de total abuso de autoridade a prisão do professor em Goiás. Esse despojo da ditadura vem sendo utilizado como medida de intimidação contra os cidadãos que se manifestam pacificamente contra o governo”, afirmou ela, que é autora de um projeto semelhante ao que foi aprovado na Câmara para substituir a LSN. “Vamos cobrar a votação da proposta e levar o assunto ao colégio de líderes na próxima reunião”, afirmou Gama ao Estadão/Broadcast. Desde a aprovação pelos deputados, no dia 4 de maio, o Senado já realizou dez sessões e votou outros 38 projetos.

O plenário do Senado Federal
O plenário do Senado Federal Foto: Dida Sampaio/Estadão

Entre os motivos apontados por senadores para o freio está a necessidade de se ampliar o debate sobre a mudança. Ao revogar a LSN, a Câmara criou no lugar a chamada “Lei do Estado Democrático”, que tem como pressuposto, entre outros pontos, instituir o crime de golpe de Estado, inexistente na legislação atual nestes termos. O texto, porém, sofre resistência de governistas, que tentam barrar a previsão de prisão de até cinco anos para quem fizer disparos de fake news em massa durante o período eleitoral.

Bolsonaro é alvo de ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que investigam, justamente, a contratação de empresas de tecnologia para disparo de mensagens em massa pelo WhatsApp durante a campanha em que foi eleito, em 2018. O tribunal, no entanto, já rejeitou processos semelhantes por falta de provas.

Aliados do presidente também são contrários a retirar da lei a punição para quem caluniar ou difamar o presidente da República, sob o argumento de que seria uma “carta branca” para Bolsonaro ser chamado de “genocida”. Apesar da pressão governista, o trecho foi revogado pela Câmara.

“O texto aprovado na Câmara vai ter que ser analisado com calma, pois há temas delicados como a inclusão de 14 novos crimes, os chamados ‘crimes contra o Estado Democrático de Direito’”, afirmou o vice-líder do governo, senador Marcos Rogério (DEM-RR), que cita entre os “novos crimes” o compartilhamento de mensagens em massa nas eleições. Ele se diz favorável à revogação da LSN, que chama de “entulho autoritário”, mas pede cautela com o que vai ser aprovado no lugar. “Teve uma nova Constituição em 1988 e a LSN tinha que ser interpretada à luz dela”, disse.

Como mostrou o Estadão no domingo, a ofensiva jurídica de Bolsonaro contra críticos ao governo tem sofrido seguidos reveses na Justiça e no Ministério Público. Ao menos dez pedidos de investigações, quatro delas baseadas na LSN, foram suspensas nos últimos meses. Para especialistas, apesar de derrotadas nos tribunais, as ações servem como uma forma de intimidação a oposicionistas.

O número de procedimentos abertos com base na lei pela Polícia Federal para apurar supostos delitos contra a segurança nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, na comparação com o mesmo período das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer.

Oposição

Além de governistas, partidos de oposição também defendem mudanças na proposta aprovada na Câmara. Parlamentares de siglas de esquerda veem uma brecha que, na visão deles, permitiria criminalizar a atuação de movimentos sociais.

Na Câmara, a relatora do projeto, deputada Margarete Coelho (Progressistas-PI), acatou em parte a demanda da oposição e acrescentou uma ressalva para resguardar a manifestação crítica aos poderes e reivindicação de direitos por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou qualquer outra forma de manifestação política. A mudança, porém, não foi suficiente e parlamentares pedem que essa “blindagem” seja mais clara.

Prioridade

Diferentemente do Senado, na Câmara o projeto foi tratado como prioridade e contou com o apoio do presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL). Ao revogar a LSN, os deputados se anteciparam a uma possível decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para limitar o alcance da legislação atual. Ao menos cinco ações de partidos políticos, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, questionam trechos da regra em vigor, e magistrados já indicaram ver inconstitucionalidades.

Durante as discussões na Câmara, Margareth Coelho chegou a se reunir com o presidente do Corte, Luiz Fux, para pedir que aguardassem uma definição do Congresso Nacional antes de as ações que questionam a LSN serem julgadas. O argumento foi o de que o STF poderia se debruçar sobre uma legislação que já não teria mais validade.

O impasse do Senado para analisar a revogação da LSN é visto com apreensão por ministros do Supremo, mas o discurso é de que o ideal é aguardar uma “solução política”. A preocupação da Corte é que uma decisão agora seja interpretada como mais uma interferência do Judiciário no momento em que o Legislativo ainda discute a medida.

“Esse fato envolvendo um professor em Goiás é emblemático da importância da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (que substitui a LSN), porque a livre manifestação do pensamento é um direito constitucional, é um dos pilares da democracia”, disse Margareth Coelho ao Estadão/Broadcast Político, que disse caber a ela agora apenas aguardar o avanço do seu projeto no Senado.

Procurado, o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não respondeu aos questionamentos da reportagem.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

O CONHECIMENTO COMO PAIXÃO

 

  1. Cultura 

Afogado em livros e contando com apoio da família de classe média, Glauco nunca pensou no momento posterior. Sua paixão era o conhecimento

Leandro Karnal, Especial para o Estado

Glauco fez um bom curso de Filosofia. Leu os clássicos, dominou inglês, francês e até, após muitos esforços, era capaz de explorar o texto do imperador Marco Aurélio em grego. Seu empenho no debate conceitual era bem recebido pelos professores. Era um bacharel e licenciado em Filosofia, com três letras mágicas no diploma: USP.

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Obra ‘Escola de Atenas’, feita entre 1509 e 1511, por Rafael, com filósofos gregos Foto: Reprodução

Afogado em livros e contando com apoio da família de classe média, ele nunca pensou no momento posterior. Sua paixão era o conhecimento. Como todos os seus colegas, ironizava autoajuda, coach e o tom dominante das frases que circulavam nas redes. Irritava-se com os recortes que se fazia, especialmente de Nietzsche, transformando o alemão em incentivador de carreiras: “Torna-te quem tu és”. 

Ele começou a dar aula e queria, realmente, ensinar a pensar. Elaborou provas simples. As respostas estavam, com frequência, no enunciado da questão. Mesmo assim, mais da metade da turma achava que “filosofar” era “dar a sua opinião” e tinham rendimento ruim. Como os alunos eram clientes antes de tudo, a escola concordou que o professor era complexo demais e não conseguia se comunicar com o grupo discente. Foi demitido no fim do primeiro semestre.

Sem a escola, por ironia do destino, conseguiu emprego na redação da mesma revista que ele atacara em sala de aula como exemplo de má divulgação. Envergonhava-se de estar nela. Tentava se consolar com exemplos de Voltaire simplificando coisas para Frederico ou Descartes para a rainha Cristina. A publicação era menos do que uma corte ilustrada da Europa moderna. A revista tinha de vender e o que agrada ao grande público é uma tabela simples com cinco pontos centrais na obra de Tomás de Aquino ou boxes com detalhes picantes da vida de Michel de Foucault. Menos de um ano após a formatura, nosso jovem estava escrevendo sobre a relação do francês com garotos de programa em saunas da Califórnia. 

Glauco tivera dificuldades como professor, todavia, curiosamente, estava prosperando como um “fofoqueiro” filosófico. Gostaria de assinar com um pseudônimo. Tinha medo de que o professor Franklin Leopoldo Silva lesse um daqueles textos. A revista acrescentou a foto dele em uma coluna do tipo: “Tudo o que você queria saber sobre os filósofos e tinha medo de perguntar”. A sífilis de Nietzsche passou a ter enorme importância. Marx e o filho ilegítimo com a empregada? Quem quer saber das ideias do Capital? Nada! Como era a criança e como a esposa reagiu era o interesse. Verdade que Engels sustentou a criança? Platão saía com outros homens? Detalhes da proverbial falta de higiene de Diógenes eram sucesso absoluto. Havia espaço para explicar um princípio como “a navalha de Ockham”, desde que os exemplos envolvessem alguma relação com o Big Brother. Anacronismo? Desvio? Falácias? Ninguém que comprava a revista ou acessava o site tinha inclinações para tais sutilezas. O sucesso de Glauco crescia. Era grande, igualmente, a dor do nosso jovem filósofo. 

Houve novidades. Surgiram os cursos do YouTube. Nosso professor, agora com 26 anos, poderia falar para muita gente. Gravou uma aula sobre ética em Kant. Comparou com outras concepções da área e analisou um parágrafo do autor por meia hora. Mostrou o peso de cada palavra e da argumentação. Identificou interpretações divergentes sobre o trecho e, por fim, usou termos como hermenêutica, imperativo categórico, etc. Finalmente, parecia, tinha dado uma aula de Filosofia, ainda que de História da Filosofia, mas uma experiência que ele poderia ter tido na USP. Vaidoso, achou sua exposição sobre ética kantiana muito bem estruturada e original. Postou o vídeo e recebeu enormes elogios. As 14 pessoas que o viram disseram que era muito bom e que aguardavam novos vídeos. 

A escassez de público o abalou mais do que a demissão na primeira vez. Glauco habitava um limbo: era técnico demais para o grande público e raso demais para os acadêmicos que condenavam sua experiência na revista popular. E… havia contas, uma proximidade com a namorada que já indicava vida estável. As sereias do mundo imanente cantavam. Ele não poderia se amarrar ao mastro do navio como Ulisses. Teria de verificar o valor da passagem para chegar a Ítaca. 

Glauco andava sobre dois mundos, sem cidadania fixa. Refletiu e fez um vídeo sobre Schopenhauer com boas frases e imitando sotaque de alemão. Duração? Quinze minutos, com piadas da relação do filósofo com Hegel. Pediu ajuda a um amigo designer digital e encheu o vídeo de imagens, efeitos e de música. Resultado? Oito mil visualizações. O segundo vídeo do novo modelo, agora sobre Erasmo de Roterdã, saltou para 40 mil visualizações. Frases costuradas aqui e ali, uma tirada cômica, câmera ágil e, de repente, o site monetizado estava pagando mais do que a escola que o demitira anos antes. 

O sucesso era exponencial. Ele tinha descido do muro e aberto um delivery com as sereias do mercado. O vídeo sobre como cada filósofo encararia uma live chegou aos trending topics. Como você encerraria essa história? Haverá esperança?

É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO 

DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, 

AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-

ESPINHO’, ENTRE OUTROS

OUVINDO MÚSICA NA PANDEMIA

 

  1. Cultura 

Como combinar o amor daqueles que fabricamos com o nosso sangue, com a dramática obrigação de “educar” e corrigir, podar e, no extremo, punir – tudo isso que vem de fora, dos costumes, para a nossa intimidade?

Roberto DaMatta, ESPECIAL PARA O ESTADÃO

A alegria musical é, então, a da alma, convidada excepcionalmente a se reconhecer no corpo. 

Claude Lévi-Strauss 

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George Gershwin Foto: Reprodução

Cresci numa casa sem livros, mas com um piano. E mais que isso: com uma pianista que “tocava tudo” e era mãe e “dona da casa”. Uma “dona” ciente de que o mandão da “porta da rua” em diante era o marido. O pai que, preocupado com os seis filhos e a “carestia de vida”, não tocava nada. Estava sempre preocupado com sua pré-ocupação. Era austero e, pouco falando, errava pela mudez. Mas nos levava à praia, à piscina e ao cinema. Adorava os filmes de Tarzan e de guerra, então em moda. Quando via um filme excepcional, dizia: “esse é de encher a medida”.

Eu me arrependo de não ter falado – confesso ao leitor nesta coluna escrita com o coração – com ninguém o quanto eu os amava. 

O mundo nos obriga a disciplinar e a “dar exemplo” e isso torna as relações entre pais e filhos um elo insolúvel. Se perguntam demais, são insolentes ou intrusos. Se ficam afastados, viram indiferentes. Como combinar o amor daqueles que fabricamos com o nosso sangue, com a dramática obrigação de “educar” e corrigir, podar e, no extremo, punir – tudo isso que vem de fora, dos costumes, para a nossa intimidade? A preocupação com o “educar” é difícil e quase sempre reprime o encontro amoroso com os filhos.

A música do piano de mamãe fazia esse ligação de modo preciso e alegre. E, assim, ela ficou para sempre nos nossos corações. 

As melodias “entram” pelos ouvidos e fazem do escutar um ouvir ou do ouvir um escutar. Um ouvir, porém, cujo entendimento não requer nenhum esforço porque, dentro de cada um de nós, a música encontra um sentido imediato (de indiferença, repulsa ou de imenso prazer) sem nenhuma mediação. Em todas as linguagens, há uma diferença entre o som e o sentido – esse clássico enigma da comunicabilidade. A música, entretanto, como diz Lévi-Strauss, é uma linguagem nua: um código no qual som e sentido se confundem.

De fato, ao ouvir uma melodia, não cabe perguntar se ela é entendida ou não. Seu propósito é complicado (senão misterioso), justo porque ela pode ser instrumentalizada, e ajuda a despertar alguma emoção ou identidade (caso dos hinos nacionais e as músicas de amor ou de carnaval), mas a música não tem finalidade, exceto a de existir. É o belo em estado puro, pois nem material ela precisa ser para se materializar. Se o escultor usa mármore ou bronze e o pintor, tela e tinta, o músico usa o próprio som que passa em sucessão harmônica e, passando, fica na nossa memória musical, uma recordação, aliás, especial e a última que perdemos. 

A música é uma linguagem que dispensa tradutores e nos obriga a tomar parte dela pela passividade e, muitas vezes, pelo gesto ritmado. O que confunde numa língua estrangeira é descobrir o que o som exótico significa. Mas, na música, conforme aprendi com Lévi-Strauss, tem-se uma língua na qual som e sentido chegam juntos – são inseparáveis. 

Mamãe foi um prodígio ignorado pelo meio no qual nasceu e cresceu. Aos 5 anos, tocou uma música folclórica que fez com que sua professora deixasse de cobrar as aulas para a menina talentosa. Vivendo numa casa sem piano, a mãe viúva de mamãe pediu a um carpinteiro que fabricasse numa tábua as 88 teclas desenhando nela seus sustenidos e bemóis. Foi nesse “teclado” de mentira que mamãe descobriu a profunda lição de que, na vida como na arte, tudo é simbólico e até mesmo os sons existem somente na nossa mente e cultura. 

Todos os dias, a pianista deixava de ser dona de casa, mãe e esposa e, no final da tarde – um pouco antes do jantar –, ela dava um recital caseiro, fazendo o piano substituir as rotinas particulares da casa pela criação universal da música. De harmonias que nem sempre existiam no grupo.

Talvez, quem sabe, as músicas escolhidas de Ary Barroso, Eduardo Souto, Chopin, Liszt, Lamartine Babo, Pixinguinha, Jobim, Strauss, Franz Lehár, Gershwin, Jerome Kern, Cole Porter e Irving Berlin tivessem alguma intenção velada. Quem sabe faziam parte de um código secreto, familiar aos adultos, desenhado para aguentar este mundo. 

Mamãe tocava e, muitas vezes, cantava e explicitava a súbita beleza das letras. Na medida em que envelheceu, foi recitando cada vez mais as letras ao mesmo tempo em que mencionava os nomes das pessoas que gostavam de tal ou qual canção. Eu aprendi inglês com as músicas americanas tocadas por Lulita (era o seu nome). Ela adorava o refrão “I love you, and you love me”, tão rotineiro nessas músicas – hinos a uma reciprocidade banida da vida moderna…

Todo dia, eu ouço música. Todos os dias, a música traz no seu espírito a alma das pessoas que me fizeram humano e que estão nas harmonias que escuto no centro do meu ser. Cada melodia faz surgir uma alma que a música libertou da minha alma. Vejo os irmãos, os tios e o pai orgulhoso, mas ciumento, da mulher com aquele talento dividido pelo piano. Vejo muito as namoradas com as quais dividi um amor virginal. 

Pode haver coisa mais sublime do que viver o belo no bom piano daquela que lhe trouxe ao mundo? 

É ANTROPÓLOGO SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’Tudo o que sabemos sobre:músicaTarzanPixinguinhaEduardo SoutoFrederic ChopinCole Porter

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