quarta-feira, 2 de junho de 2021

CPI DA INQUISIÇÃO QUER METER O BICO NA COPA AMÉRICA

 

Senado

Por
Alexandre Garcia – Gazeta do Povo

Senador falou até em convocar o presidente da CBF para depor na CPI da Covid caso a Copa América seja confirmada no Brasil.| Foto: Lucas Figueiredo/CBF

O Congresso Nacional aprovou nesta terça-feira (1º) a recomposição de quase R$ 20 bilhões em verbas que precisaram ser cortadas do orçamento deste ano em nome do equilíbrio fiscal. Já estamos entrando no sexto mês do ano e resolveram esse problema agora em comum acordo com o presidente da República.

O processo foi rápido graças a um trabalhoso acordo entre lideranças de todos os partidos, governo e oposição. Esse valor poderá ser integrado porque foram derrubados vetos assinados por Jair Bolsonaro. Mas todos os vetos derrubados neste momento tiveram o consentimento do presidente.

A recomposição de valores se deu em diversas áreas, entre elas, o agronegócio. A verba direcionada para o Plano Safra será liberada e o pagamento de serviços ambientais na área agrícola.

Além disso, foi liberado crédito para que estados e municípios disponibilizem gratuitamente internet para alunos e professores do ensino público. Outro veto derrubado é o que prioriza o pagamento do auxílio emergencial para mães ou pais chefes de família. Foi um acordo bem sucedido conduzido pelo senador Eduardo Gomes (MDB-TO), que foi o relator dessa matéria.

PIB do Brasil surpreende em 2021
Essa recomposição só pode ser feita porque a economia brasileira está otimista. Nesta terça, o IBGE mostrou que no primeiro trimestre de 2021 houve um crescimento do PIB do Brasil de 1,2% — o mercado esperava 0,8%. Quatro pontos percentuais a mais. Algumas previsões apontam o crescimento do PIB de 2021 em 5%.

Imaginem que no ano passado o FMI chegou a mostrar uma retração de 9%, e no final a queda foi de 4,1%. Neste momento, a Fundação Getúlio Vargas prevê um crescimento de 4,2%.

Temos recorde de arrecadação e, além disso, o índice de formação de capital (que mede a capacidade de empresas produzirem de bens que produzem outros bens) ficou em 17% — esse resultado é essencial para atrair investimentos.

Uso emergencial da Coronovac
Uma boa notícia para quem foi vacinado com o imunizante Coronavac, o que representa três em cada quatro brasileiros. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou para uso emergencial a vacina produzida pela Sinovac e que, no Brasil, é fabricada pelo Instituto Butantan. Outro laboratório chinês, o Sinopharm, já tinha conseguido essa aprovação para a sua vacina em maio lá.

Espetáculo de inquisição na CPI
Na CPI da Covid, vi mais alguns atos que revoltam o estômago. Eu tive que parar de assistir antes do almoço e esperei bastante tempo depois para ligar. A impressão que dá é que estão numa delegacia de polícia.

A inquisição é tanta que parece que os senadores estão tratando com pessoas que recebem propina de empreiteiras, ou com alguém que desviou recursos da saúde, ou com alguém que roubou da Petrobras.

Mas a realidade é que os parlamentares estavam ouvindo o depoimento de uma médica oncologista e cientista, a doutora Nise Yamaguchi. Foi uma falta de educação para dizer o mínimo.

O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), chegou a dizer que quem afirma que os profissionais de saúde do Amazonas fizeram testes com cloroquina somente com o intuito de comprovar que o remédio é ineficaz, e com isso levou alguns pacientes a óbito, vão para o inferno.

Copa América no Brasil
A CPI da Covid virou a CPI da Bola? O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) pretende convocar o presidente da CBF para explicar porque o Brasil irá sediar a Copa América. Os jogos acontecerão no Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia e Campo Grande (MS).

No domingo (30), a cidade de Indianápolis, nos Estados Unidos, estava cheia de gente, com milhares de pessoas, para acompanhar uma corrida de Fórmula Indy. O brasileiro Hélio Castroneves ganhou pela quarta vez as 500 Milhas, uma das corridas de automobilismo mais famosas do mundo [nota da edição: nos EUA, 41% da população já recebeu as duas doses da vacina contra Covid-19, o equivalente a 135 milhões de americanos].

Dentro de 50 dias pode acontecer a Olimpíada em Tóquio. Só que o Japão só vacinou 2,7% da população com as duas doses, foram 13 milhões. O Brasil imunizou com ambas as doses mais de 10% da população, ou seja, 67 milhões de pessoas.

Não querem que a Copa América aconteça no país, mas a Argentina está um caos e não poderia sediar o campeonato.
Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/alexandre-garcia/cpi-da-inquisicao-quer-se-meter-ate-na-copa-america/
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DEPOIMENTO DA CLOROROQUINA NA CPI DA CLOROQUINA VAI TERMINAR?

 

Próxima fase
Por
Olavo Soares
Brasília

O presidente da CPI da Covid, Omar Aziz, disse que participação de Nise Yamaguchi foi um baita engodo.| Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

A participação da médica Nise Yamaguchi na CPI da Covid nesta terça-feira (1º) pode ter finalizado as discussões da comissão em torno do chamado tratamento precoce contra a Covid-19. A avaliação é do presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM). “A CPI não tem mais que tratar de cloroquina”, afirmou o parlamentar, em entrevista coletiva após a conclusão da sessão desta terça.

Mais cedo, sob a mesma justificativa, Aziz já havia cancelado a audiência que a comissão faria nesta quarta-feira (2) com médicos favoráveis e contrários ao tratamento precoce, e no lugar agendou o depoimento da médica Luana Araújo, que permaneceu por apenas 10 dias no posto de secretária de enfrentamento à Covid do Ministério da Saúde.

Aziz chamou a participação de Nise Yamaguchi de “baita engodo” e disse que a médica “passou oito horas e não conseguiu apresentar uma publicação científica” que comprovasse os resultados do tratamento precoce. Ele também declarou que o procedimento “não deu certo em lugar nenhum” e que o Amazonas, seu estado, teve “vidas ceifadas” por conta da adoção da medida. No início do ano, Manaus registrou um colapso em sua rede de saúde, com recorde nos casos de Covid-19 e elevadas taxas de mortalidade de pacientes.

O presidente da CPI descartou a reconvocação de Nise à comissão. Um novo depoimento da médica foi cogitado ao longo da fala desta terça, principalmente por senadores que fazem oposição ao governo de Jair Bolsonaro. Alessandro Vieira (Cidadania-SE), por exemplo, chegou a sugerir que a sessão fosse encerrada, pelo motivo de Nise Yamaguchi estar falando na condição de convidada, e não de testemunha. Como testemunha, um depoente tem compromisso maior com a verdade e pode eventualmente ser preso se mentir à comissão.

O próprio Aziz mencionou a possibilidade de uma reconvocação da médica, antes de anunciar a retirada da ideia. Ele sugerira uma acareação entre Nise e o diretor da Anvisa, Antonio Barra Torres, para que ambos falassem sobre a reunião no Palácio do Planalto em que se teria discutido a possibilidade de modificação na bula da cloroquina, para incluir no texto que a substância é eficaz contra a Covid-19.

O episódio foi confirmado por Barra Torres e pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, em depoimentos que ambos prestaram à CPI, mas negado por Nise Yamaguchi. Segundo a médica, houve a reunião e houve discussões sobre as potencialidades da cloroquina, mas sem a hipótese de alteração na bula do medicamento.

Cloroquina vai mesmo sair de pauta?
Adversário do presidente Jair Bolsonaro, o senador Humberto Costa (PT-PE) disse concordar com Omar Aziz quanto ao término das discussões científicas em torno da cloroquina, mas declarou que outros elementos relacionados ao tratamento precoce ainda devem ser considerados pela comissão.

O parlamentar, que também é médico, mencionou que a defesa da cloroquina pelo governo federal integrou uma estratégia para o combate à pandemia que, na sua avaliação, é equivocada.

“A cloroquina fazia parte de uma estratégia que consistia em dar o remédio à pessoa e fazê-la ir para a rua trabalhar”, criticou. Costa também falou que a comissão precisa apurar a quantidade de comprimidos de cloroquina comercializados nos últimos meses para apurar se “muita gente ganhou dinheiro com isso”.

No outro campo do debate ideológico, o senador governista Luis Carlos Heinze (PP-RS) reiterou sua defesa do tratamento precoce. O parlamentar, como tem feito nas sessões da comissão, citou exemplos de cidades que teriam alcançado resultados positivos com a adesão dos procedimentos e indicou que “interesses” poderiam explicar a rejeição ao método. Heinze disse que o tratamento precoce é mais barato do que outros encaminhamentos, o que seria desinteressante a alguns agentes públicos.


Senador apresenta “organograma do gabinete paralelo” da Saúde
Como já havia feito durante o período da manhã, Nise continuou sua fala na CPI respondendo a perguntas sobre o tratamento precoce e sobre o suposto “gabinete paralelo”, uma estrutura informal de aconselhamento ao presidente Bolsonaro da qual faria parte.

Em relação ao tratamento, a médica disse que considera a aplicação dos medicamentos como “mais uma” ação para o combate à pandemia ao lado de outros procedimentos, como o distanciamento social, o uso de máscaras e a vacinação. Neste aspecto, Nise Yamaguchi foi confrontada por senadores oposicionistas, que recordaram declarações e ações do presidente Bolsonaro em contrariedade a estas medidas, especialmente as de isolamento. A médica disse que não comentaria os atos de Bolsonaro e que não tem “ascendência” sobre o presidente.

A participação no gabinete paralelo — e mesmo a existência do grupo — prosseguiu negada por Yamaguchi. A médica reforçou que sua atuação junto ao governo federal se dá na condição de “colaboradora eventual”, com a participação em reuniões pontuais. Ela disse também que não foi convidada por Bolsonaro para exercer o cargo de ministra da Saúde e que tampouco se ofereceu ao posto.

Em sua fala, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) exibiu uma apresentação em power point na qual fez um “organograma” do que seria o gabinete paralelo. A estrutura teria três subdivisões, o “núcleo negacionista”, o “núcleo operacional” e o “núcleo gabinete do ódio”. A médica estaria no primeiro recorte, que seria responsável pela definição de estratégias para combate à pandemia.

Além dela, integrariam o grupo o empresário Carlos Wizard Martins e o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), entre outros. A médica se disse ofendida com a apresentação e, novamente, negou fazer parte do grupo.
Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/depoimento-de-nise-encerra-fase-cloroquina-da-cpi-diz-presidente-aziz/
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TRATAMENTO PRECOCE NA PANDEMIA SERÁ RECONHECIDO

 

Covid-19
Por
Eli Vieira*, especial para a Gazeta do Povo

Caixa com ivermectina, um dos medicamentos usados no chamado “tratamento precoce” da Covid-19.| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

A mudança de tom sobre a plausibilidade de o SARS2, vírus causador da pandemia, ter se originado em laboratório foi uma das maiores reviravoltas na cobertura de opiniões de especialistas na imprensa nas últimas décadas. Ao ponto de a revista eletrônica Vox ter sido pega editando silenciosamente um artigo do ano passado para amenizar o tom de certeza que tinha dado para a origem natural do vírus — o jornal Washington Post fez a mesma coisa. O Facebook parou de censurar artigos que defendessem a origem laboratorial — mas continuará insistindo em não dar liberdade de expressão aos usuários, apesar do fiasco (de fato, mal escrevi as linhas acima, fui censurado lá por esse motivo). Até o governo Biden andou se movimentando para exigir uma investigação melhor das origens do vírus, já que a da OMS não serviu.

Assim como se revelaram apressadas a afirmações peremptórias contra a origem laboratorial do vírus, é bem possível que aconteça uma outra virada e uma outra reedição de afirmações contra todo e qualquer tratamento precoce da doença que ele causa, a Covid-19.

Não faltam exemplos, entre influenciadores da mídia tradicional e da nova mídia, de quem decretou que as soluções quase improvisadas dos médicos para tratamento precoce seriam indignas de confiança, talvez pseudocientíficas, certamente “negacionistas” — o adjetivo lamentável da moda que foi cunhado originalmente para malucos que duvidam do Holocausto dos judeus.

Há uma grande intersecção entre o grupo que descartou cedo demais a origem laboratorial e o grupo que ainda afirma a ineficácia de todo e qualquer tratamento precoce. Merecem uma segunda chance? É o que analisaremos aqui.

Primeiro, deixemos claro do que estamos falando: tratamentos precoces são intervenções pré-hospitalares (os italianos dizem “tratamento domiciliar”), com a intenção de que aliviar os sintomas da Covid-19, e, de preferência, impedir que esses sintomas se agravem e o paciente seja hospitalizado. Há um segundo significado relevante para “precoce”, aqui: que esses tratamentos devem ser aplicados assim que os sintomas começam, pois os efeitos podem ser sensíveis ao tempo.

O tratamento precoce não foi proposto como cura originalmente, mas como esperança. Havia um senso de urgência. Como disseram pesquisadores italianos numa revisão de tratamento domiciliar de meados de 2020, mencionando pedidos de conselho vindo de médicos da América Latina: “Você só pode contar com evidências muito escassas na literatura e com seu próprio conhecimento para administrar os sintomas dos seus pacientes, e com a experiência” dos autores.

Uma resposta definitiva na ciência demora muito, e, quando chega aos livros-textos, já é tarde demais para uma primeira resposta a uma nova doença. Não só a busca de alternativas é prerrogativa médica, é bem possível que seja uma obrigação médica nessas situações. Essa investigação clínica antecede a aplicação da pesquisa científica na medicina. A primeira pode ser tão bem feita quanto a última, a qual pode vir para confirmar o que foi originalmente descoberto na prática clínica.

Como julgar os estudos

A pesquisa médica, que consiste não só em ciência, mas também em investigação clínica, tem diferentes graus de rigor que vão do mais baixo (mas potencialmente útil) estudo de caso, em que se descreve o que ocorreu com um paciente, ao rigor médio dos estudos observacionais, seguidos pelo rigor mais alto de estudos clínicos randomizados e controlados (ECRs), depois estudos randomizados duplo-cego, que são casos especiais dos ECRs, até aos enormes estudos com coortes que duram anos.

Os ECRs são, portanto, uma base firme para que se possa afirmar algo a respeito da eficácia das drogas do tratamento precoce (a seguir nos referiremos aos ECRs simplesmente como “estudos”). Neles, os pacientes são divididos em dois grupos, nos quais são postos por sorteio: o grupo experimental, que toma a droga sendo investigada, e o grupo controle, que não a toma. Quanto maior for o número de pacientes incluídos num estudo, e maior a diferença encontrada nos desfechos entre os dois grupos, maior é o grau de certeza dos resultados.

Porém estudos com um número exorbitante de pacientes costumam ser feitos por farmacêuticas tentando estabelecer a eficácia de novas drogas, não reavaliar drogas baratas já disponíveis no mercado; ou então por governos, com suas burocracias lentas e sujeitas a pressões políticas e lobbies comerciais.

Uma avaliação da eficácia das drogas do tratamento precoce, portanto, dependerá quase que exclusivamente de estudos menores. Ainda que devido ao seu tamanho isoladamente cada um destes estudos possa ter pouca robustez estatística, o grau de certeza aumenta muito quando todos eles são analisados conjuntamente em estudos chamados de metanálises. Há, portanto, um elemento de pragmatismo adicional a ser considerado, sem perder o elemento do rigor.

HCQ: onde a evidência é mais frágil, mas ainda existente

A primeira droga de tratamento precoce a se tornar notória foi a hidroxicloroquina (HCQ), por causa dos resultados de sua aplicação junto ao antibiótico azitromicina pelo médico Didier Raoult. Agora sabemos que os resultados de Raoult eram bons demais para serem verdade. Mais do que isso, os estudos de HCQ conduzidos em pacientes graves o suficiente para serem hospitalizados — os que entraram na chamada “fase inflamatória” — indicam que a droga não é eficaz numa etapa mais adiantada. Mas isso não significa que a eficácia da HCQ no contexto precoce foi totalmente descartada.

O que aconteceu com a HCQ foi que os estudos repetidamente chegaram perto do limiar estatístico convencionalmente aceito para afirmar a eficácia, sem ultrapassá-lo. O fato de os estudos terem se aproximado do limiar repetidamente é sugestivo: pode ser que haja um efeito, porém não muito forte, ou que é mascarado por variáveis como estágio da doença ou pelo tamanho insuficiente da amostra.

Esse limiar é definido através do “valor p”, uma medida estatística que corresponde grosseiramente à probabilidade de o resultado ter sido atingido por “pura sorte”, sem haver realmente eficácia. A convenção metodológica nas últimas décadas, especialmente nessa área, tem sido que não se tolera que esse valor p ultrapasse 5%.

Porém, ao se afirmar a ineficácia da HCQ com base no valor p acima de 5% — às vezes apenas ligeiramente acima — está havendo uma amnésia coletiva dos comentaristas científicos: há poucos anos, em 2019, muitos cientistas propuseram o abandono dessa convenção, ou ao menos de uma interpretação comum dela que é a que vemos em quem afirma ineficácia total da HCQ com base nela. Valentin Amrhein e mais de 800 signatários disseram à Nature que a interpretação dicotômica do valor p deve ser abandonada. De fato, os estatísticos profissionais sempre souberam que, se o p for maior que 5%, isso não significa que a hipótese da eficácia foi descartada, ou que a hipótese da ineficácia deve ser aceita.

Entre as drogas propostas para o tratamento precoce, é verdade que a HCQ não é a estrela, embora haja no conjunto agregado dos estudos do seu uso precoce uma redução de cerca de 25% na taxa de hospitalização, comparando o grupo experimental com o grupo consolidado de placebo. As estrelas são outras.

As estrelas do tratamento precoce: ivermectina, budesonida e fluvoxamina
A ivermectina é um dos poucos medicamentos, se não o único, que pode ser chamado de “antiparasitário de amplo espectro”, ou seja, algo que funciona para parasitas tão diferentes quanto vermes e vírus. Além disso, a ivermectina parece ter uma série de efeitos antiinflamatórios. Para a ivermectina há, no momento, cerca de 18 estudos com diferentes dosagens a diferentes estágios da evolução do quadro da Covid-19. Também temos algumas metanálises publicadas. Os resultados são promissores.

Duas metanálises (esta e esta, a primeira aceita numa revista científica revisada por pares e a segunda já publicada) apontam que a ivermectina reduz o risco de hospitalização em pacientes com casos leves a moderados em cerca de 70%. A Cidade do México obteve o mesmo resultado num teste maciço do uso da droga. Entre outros países que estão aplicando a droga estão Eslováquia, África do Sul e estados da Índia. A eficácia foi observada em roedores em laboratório, e foi proposto um mecanismo de ação da ivermectina: que ela se liga à proteína que o vírus usa como “chave” para entrar nas células, e também à “fechadura” das células, dificultando o encaixe.

Outras duas metanálises da ivermectina merecem ser comentadas. Uma da OMS estima a redução da mortalidade em 80%, mas declara que a qualidade da evidência é baixa. Outra metanálise do Peru conseguiu cometer o erro crasso de trocar os números do grupo experimental pelo grupo controle; uma vez corrigido o erro, ela estima (com p-valor de cerca de 7%) uma redução de cerca de 60% na mortalidade. Portanto, as metanálises de qualidade melhor apoiam a eficácia da ivermectina para o tratamento precoce. Diante desses resultados, o NIH (National Institutes of Health, Institutos Nacionais de Saúde), que financia pesquisas com verbas americanas, decidiu finalmente lançar um estudo grande sobre a droga, com 15 mil participantes, aos 47 minutos do segundo tempo.

Há um estudo duplo-cego publicado no respeitado JAMA (Journal of American Medical Association) em que os autores concluíram que não há eficácia no tratamento precoce com ivermectina. Mas há dois problemas dignos de nota nele. O primeiro é que, apesar da dose de ivermectina ter sido bastante alta, não houve diferença nos efeitos colaterais entre o grupo controle e o grupo experimental. Apesar de o medicamento ser muito seguro, isso é muito estranho: os pacientes do grupo experimental deveriam ter exibido mais efeitos colaterais. O outro problema é o mesmo do caso da HCQ: o estudo mostra que o grupo experimental se saiu melhor que o controle, porém os autores abraçaram a hipótese nula (a não eficácia) só por causa do valor p não ser menor que 5%, embora seja pequeno. Quão melhor o grupo experimental se saiu em comparação ao controle? 43% de redução no risco de piora dos sintomas. Portanto, esse estudo não conta como evidência contrária ao tratamento com ivermectina: conta como uma evidência favorável, porém fraca, por causa do número de envolvidos e o valor p. Está em conformidade, portanto, com o caso geral dos outros estudos que, em conjunto, mostraram-se favoráveis à eficácia de acordo com as metanálises.

A budesonida, medicamento para asma, foi autorizada (“off label”) como tratamento precoce pelo NHS, o serviço de saúde estatal dos britânicos, notório pelo rigor, para ser inalada por pacientes a partir de 65 anos ou a partir de 50 anos com comorbidades. Um estudo menor publicado no periódico médico Lancet foi um de dois que motivaram a decisão do NHS, pois sugere redução de 80% na hospitalização ou atendimento de emergência. Esse número deve mudar conforme mais dados são analisados. O estudo maior indica redução de 20% em hospitalização e morte. A Índia seguiu a confiança dos britânicos e também adotou a budesonida. Esses fatos foram praticamente ignorados pela imprensa brasileira.

Já a fluvoxamina, que é um antidepressivo, parece ter encontrado outra forma de combater a tristeza: como outro tratamento precoce para a Covid-19. A droga dispõe de um estudo duplo-cego publicado no JAMA, uma das principais revistas científicas médicas do mundo, a favor dessa prescrição nova, e mais um estudo com resultados similares. O famoso programa jornalístico americano 60 Minutes cobriu esses resultados porém, mais uma vez, a imprensa brasileira não deu atenção ao assunto. Assim como a ivermectina, tem mecanismo de ação proposto: interfere de diversas formas com o maquinário molecular do vírus e atenua a “tempestade de citocinas”, que é a famosa reação potencialmente letal do sistema imune à infecção.

Por que tanta resistência contra todo tratamento precoce?
Política. O que acontece com propostas que são politizadas é que, para sinalizar membresia à tribo política associada a elas, algumas pessoas se engajam no autoengano propagandista de prometer o que não foi prometido originalmente. E, reativamente, tribos políticas rivais passam a exagerar para o outro lado, declarando-se detentoras de provas definitivas de que essas propostas não funcionam e até que são imorais. A verdade não está necessariamente no meio, assim como a razão não costuma ser a média entre duas loucuras. Mas a verdade é alcançável pela mente paciente e menos atada por compromissos tribais, e os estudos são um auxílio para escapar dessa arapuca, embora alguns possam ser influenciados por ela. Um ingrediente constante da politização é a hipérbole: um lado acusa o outro de homicídio por propor solução ineficiente, e o outro devolve a acusação dizendo que ignorar soluções possíveis é aumentar o número dos que sofrem hospitalizados e mortos.
Falsa dicotomia entre tratamento precoce e vacinas. Quem contrai Covid-19 entre uma dose e outra da vacina, ou antes de ter a oportunidade de ser vacinado, poderia ser beneficiado com o alívio dos sintomas e o efeito protetivo do tratamento precoce. E quem se tratou precocemente com sucesso adquiriu uma imunidade que pode desafogar a fila da vacina, sendo posto na baixa prioridade.
Má interpretação estatística dos estudos. Este motivo mais técnico explica a resistência de alguns especialistas. É preciso lembrar que a maioria dos pesquisadores não é especializada em estatística, e a usa como uma ferramenta, às vezes em programas de computador cujo funcionamento não entendem completamente. Aderem a interpretações míopes do valor p sem perícia estatística.
Captura de órgãos regulatórios e de aconselhamento médico pelas razões acima, e adesão acrítica a eles. Esses órgãos, como a OMS, a FDA e o NIH, podem ser presa fácil das más interpretações de estatística. Os bons observadores viram, especialmente no começo da pandemia, o quanto esses órgãos podem ser falhos. A OMS chegou a desencorajar as máscaras.
Conflito de interesses. A Merck, fabricante da ivermectina, lançou uma nota alegando que a droga não tem eficácia para a Covid-19. A ivermectina é barata e dá pouco lucro, especialmente depois de a Merck ter distribuído bilhões de doses em 49 países antes da pandemia. É mais interessante economicamente para a Merck promover uma nova droga (como Monulpiravir) que está lançando contra a doença. Aqui, não se deve ver necessariamente esse conflito como consistindo em malícia e planejamento vilanesco. As pessoas são perfeitamente capazes de defender seus interesses inconscientemente, com o autoengano. Não que farmacêuticas sejam famosas por errar por boas intenções… especialmente considerando que a Merck já foi acusada de fazer campanha de assassinato de reputação contra médicos.
Alegações de riscos das drogas. Aqui, recomenda-se olhar avaliações de riscos das drogas que antecedem a politização do tratamento precoce para a Covid-19. A ivermectina é usada há décadas sem grandes pânicos, e nos estudos de Covid-19 não foram observadas grandes complicações. Não é difícil exagerar riscos para qualquer droga: até o paracetamol pode matar em doses altas. Além disso, as bulas de remédios não são documentos científicos, mas documentos que conscientemente erram do lado da cautela: incluem todo tipo de complicação que os pacientes passam na fase de testes, mesmo sem evidências de que essas complicações vieram do medicamento. É por isso que as bulas são tão medonhas.
Conclusão

Seria de se esperar que pessoas interessadas em ajudar os pobres teriam como uma das primeiras reações a uma pandemia a procura por algum tratamento já disponível, barato e seguro. Não às cegas, pois existem milhares de tratamentos e drogas e o tempo é premente, mas com base em plausibilidade bioquímica e espectro de ação. Infelizmente, essa expectativa encontrou os empecilhos acima.

A medicina está cheia de acidentes faustos em que uma droga que havia sido pesquisada para um propósito se revela útil para outro. O sedativo brometo de potássio foi proposto no século 19 como uma droga antimasturbatória. O carbolítio (carbonato de lítio) foi proposto para bipolares porque há semelhanças de alterações de humor deles com quem sofre de gota, que advém de muito ácido úrico no sangue, que o carbolítio cortaria. Mas bipolaridade nada tem a ver com ácido úrico: outras formas de cortar o ácido úrico no sangue dos bipolares não surtiam efeito. O carbolítio de fato modula o humor, mas o mecanismo de ação proposto (a “comprovação”) era falso. O primeiro ansiolítico era um aditivo conservante para a penicilina. O famosíssimo Diazepam era só uma tintura para observar amostras de tecido biológico em microscópio. E, outro caso famoso, o Viagra foi estudado inicialmente como tratamento para hipertensão e angina. Não seria uma surpresa muito grande, nem um caso singular, se alguma droga já aprovada para outras doenças pudesse ter algum efeito para tratar Covid-19.

Portanto, a busca de tratamento precoce via reutilização de remédios deveria ser um dos primeiros passos no curso de ação rápida quando uma nova doença aparece. As “evidências anedóticas” dos médicos na prática clínica podem ter valor, e muitos medicamentos eficazes hoje vieram exatamente delas, sem falar em medicamentos que começaram como chás populares.

Os médicos são mais capazes de fazer essas decisões quando estão em dia com o conhecimento científico relevante. Porém não deve ser exigido deles que apliquem o rigor máximo científico onde ele não é nem necessário nem há tempo hábil para ele. Existe rigor clínico, rigor da experiência, que merecem respeito assim como o conhecimento científico, e seu valor foi provado em milênios de prática médica. O que os médicos observam leva a análises mais rigorosas que podem confirmar as suas conclusões, como discutido aqui.

De acordo com as evidências atuais, é possível afirmar que houve um tabu midiático e de profissionais, instituições e empresas com conflito de interesses para suprimir, impedir e silenciar o uso de tratamento precoce para Covid-19, assim como houve a respeito da hipótese de o vírus ter vazado de um laboratório na China. O custo em bem-estar e até em vidas é incalculável. Uma segunda revisão de posturas públicas está por vir.

*Eli Vieira é biólogo geneticista com pós-graduação pela UFRGS e pela Universidade de Cambridge, Reino Unido.

Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/tratamento-precoce-proximo-tabu-origem-laboratorial/
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terça-feira, 1 de junho de 2021

LITERATURA EM TEMPOS DE CRISE

 

Artigo
Por
Rafael Ruiz -Gazeta do Povo

Para que serve a literatura? Para saber que não estamos sós| Foto: Pixabay

Conversando com o meu amigo Paulo Polzonoff Jr., ele me sugeriu que escrevesse este artigo. “Tenta relacionar a literatura com as coisas que vão acontecendo, a pandemia, a CPI, essa loucura toda que estamos vivendo”, disse ele.

Agradeci e disse que gostava da ideia, até porque gosto muito de literatura. Mas depois, quando o papo acabou e voltei para os meus botões, encontrei-me pensando se realmente seria capaz de escrever algo que interessasse minimamente aos leitores e que, de alguma forma, juntasse duas coisas aparentemente tão diferentes: a literatura e, digamos, a CPI e Renan Calheiros.

Demorei um tempo até lembrar do conselho do Prof. Antolini para o Holden Caulfield em “O Apanhador no Campo de Centeio”, pouco antes de ele, adolescente rebelde e desajustado naquela sociedade norte-americana dos anos 1950, abandonar mais um colégio sem terminar o semestre.

“(…) Você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enjoada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho nesse terreno, e se sentirá estimulado e entusiasmado quando souber disso. (…) Muitos homens, muitos mesmo, enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser”.

É isso. A literatura, como dizia C.S. Lewis, ensina-nos que não estamos sós. Que não somos os únicos a ficar desencantados, desanimados e até enjoados com um comportamento tão vil e tão cínico e tão desumano quanto o de um Renan Calheiros. E isso, de alguma forma surpreendente, nos torna mais humanos, mais solidários, mais sofridos, sim, mas ao mesmo tempo mais unidos. “Não sou eu o único que fica enjoado com um homem como esse. Ainda bem”.

A literatura nos ensina ainda que não somos os únicos a ficar empolgados, animados e apaixonados para contribuir com o nosso verso nesse maravilhoso e surpreendente teatro da vida, como dizia Walt Whitman num dos seus melhores poemas, no qual, olhando para a sua própria vida e a para a sociedade sórdida que o rodeava, perguntava: “O que vale a pena por tudo isto? Resposta: que você está aqui, que a vida e a identidade existem, que o poderoso drama da vida continua e você pode contribuir com um verso”.

Sim.  Se você conhece esse poema (O me! O Life!), terá percebido que Whitman escreveu play onde traduzi por drama. E terá razão. Mas em minha defesa e em defesa da minha tradução, também se pode traduzir dessa forma. A ação do teatro, a peça teatral pode ser nomeada de play. E a vida – a vida/life- de Whitman é realmente isso: um maravilhoso drama em que cada um de nós poderá ou não contribuir com seu próprio verso.

Não dá para gostar dos tempos que nos tocaram viver e é normal pensarmos que gostaríamos de que nada disto tivesse acontecido, como exclamava um Frodo desolado ao perceber o peso do Anel e a extensão das sombras de Mordor. Que seria ótimo se não houvesse nem pandemia, nem Covid-19, nem Renan, nem Bolsonaro. Mas, como respondeu Gandalf, “é isso que pensam todos os que testemunham tempos sombrios como este, mas não cabe a eles decidir, o que nos cabe é decidir o que fazer com o tempo que nos é dado”. 

É verdade que não encontro, por enquanto, nenhum exemplo vivo para entusiasmar o leitor. Mas esse é precisamente o poder e a magia da literatura. Ela dá-nos uma forma de olhar para o mundo ao nosso redor e implicar-nos pessoalmente. As palavras dos poetas e os textos dos romances renovam nossos olhos cansados e desanimados perante tanta desumanidade e tanta insensatez.

Vemos, graças a Shakespeare, Cervantes, Dostoiévski, Tolstói, Jane Austen, Emily Brontë, George Sand, Emily Dickinson e Susanna Tamaro, o que são a dor, o amor, a paixão, a traição, a generosidade, a vileza, a corrupção, a honestidade e tudo o que de humano e de desumano vive ao nosso redor e nos habita. E aprendemos com todos eles a ser mais humanos, melhores seres humanos.

A literatura envolve o leitor e o livro, o eu do leitor com os muitos eus das personagens, aproxima experiências, força a comparação, faz com que nós, enquanto leitores, não abdiquemos da nossa condição de humanos. É uma forma de conhecimento que não é nem analítica nem simplificadora, mas é reflexiva, intimista e complexa.

A literatura permite, como diria Ortega y Gasset, encontrar os ossos e a carne dos conceitos. Dá-nos a circunstância, a complexidade, a ambiguidade, a cor e a textura do real. Tudo aquilo que o conceito abstrato nos esconde e teima em fazer-nos acreditar que não existe quando, na verdade, é o que dá o tom e o sentido humano da vida: a tensão de uma espera, a ansiedade de uma procura, as lágrimas de uma derrota, a alegria inexprimível de um encontro. O desespero, a angústia e a esperança da Humanidade vivida e por viver.

Mas, para convencer-se disso, é preciso realmente deixar-se encantar pela literatura.

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IDEOLOGIAS DE VÁRIAS PROCEDÊNCIAS

 

opinião A ideologia se tornou o grande problema político do século XX
Por
Pedro Henrique Alves – Gazeta do Povo

Comunismo: ideologia assassina| Foto: Pixabay
A ideologia se tornou o grande problema político do século XX, parafraseando Margaret Tatcher — e usando de certa liberdade para isso, confesso — “terreno onde as ideologias pisam e dominam, não nascem gramados democráticos”. O grande inventário do século XX — que ainda não foi finalizado — nos mostra que todos os países que se apoiaram em ideários, construídos por engenheiros sociais, acabaram por transformar seus países em laboratórios políticos insanos. A voz brutal que surge do século XX, quando consultamos os necromantes da história, nos adverte sem demora: “não confiem jamais em ideologias e salvadores sociais”. Quem tem ouvidos, ouça.

Apenas alguns ovos
Praticamente tudo aquilo que vimos de mais asqueroso e repugnante na política dos séculos XVIII, XIX e principalmente XX, está diretamente ligado à crença de que é possível alcançar uma perfeição social e política aqui na terra, que é viável uma ordem completa sem o caos, uma a igualdade plena sem a desigualdade, uma liberdade absoluta sem restrições. Enfim, que todos esses axiomas são perfeitamente possíveis e realizáveis no plano terreno, bastando apenas que as engrenagens históricas, políticas e econômicas sejam tecnicamente ajustadas pelos “capazes”.

E se tal proeza de perfeição social — verdadeiramente divina — for possível, por que não seguir tal rumo? E aqui está o X da questão, quando tudo começou a dar assustadoramente errado. Ora, o raciocínio é lógico e linear: se a perfeição política e social é possível, por que não nos utilizarmos de todos os meios disponíveis para alcançá-la? Por que não suprimir oposições e opositores em busca daquela vitalidade final de uma sociedade próspera? O silêncio imposto aos discordantes, até mesmo a morte de alguns resistentes, são coisas com as quais podemos conviver se o que estamos construindo aqui é a realização de uma verdadeira utopia, do fim último da história humana — como chamariam os comunistas mais “raiz”. 

Se realmente estamos falando da realização final de uma sociedade perfeita, justa, igualitária, orgânica e maquinalmente ideal, livre e sem os desprezíveis problemas sociais de agora; se é disso que estamos tratando aqui, então qualquer meio vale a pena ser utilizado para chegar nesse oásis.

Aqueles ovos quebrados (mutilados, fuzilados, torturados, envenenados, etc.) serão para frondosos e deliciosos omeletes, que todos comerão e se saciarão num futuro próximo. A utopia está logo ali.

O homem é de barro
“Mas, por outro lado, a receita para a perfeição me parece a fórmula para o derramamento de sangue, ainda que receitada pelo maior dos idealistas, com o mais puro dos corações” (BERLIN, 2018, p. 52).

Não obstante, por consequência evidente de nossas limitações, sabemos que o homem não é passível de perfeição; até mesmo em suas filosofias sempre faltarão as últimas peças do quebra-cabeça que só seriam encontrados se fôssemos anjos ou deuses. Sendo assim, as suas criações inevitavelmente tendem a ser limitadas ainda que possam ser geniais. Todos os gênios erraram, todos os santos também eram feitos de matéria corruptiva apesar de seus atos heroicos. Todos nós somos de barro, se não da matéria terrosa, mas sim da metáfora tão real quanto a argila. 

Nas palavras de Jordan Peterson: “A serpente habita nossa alma” (PETERSON, 2018, p. 47); creio que, crentes ou não, poucos seriam os tolos que discordariam disso — tirando Rousseau, é claro. 

Ou seja, as nossas teorias e racionalizações humanas invariavelmente guardam teimosas parcelas de falhas, lacunas e detritos. Sendo assim, as ideologias são mentiras políticas tornadas universais, afinal, não passam de construtos ideários de mentes humanas, falhas. Elas vendem a ideia mentirosa — confessa ou não — de um mundo ideal onde as naturais aporias humanas seriam sanadas através de seus métodos “científicos” e visionários.

Resta-nos, então, compreender como nasce essa mentira: a ideologia. Cabe-nos compreender como ela se estrutura, as suas características e constituições.

Como nasce uma ideologia (um tributo a Isaiah Berlin)
Um daqueles que melhor compreendeu as estruturações filosóficas das ideologias, rastreando as suas raízes e motivações, foi Isaiah Berlin — filósofo nascido na Letônia e famoso por sua defesa incessante e ardorosa da liberdade. Grande parte das suas obras fora dedicada às questões de filosofia política e ao poder que as ideias exerciam nas sociedades; como é o caso de seus clássicos: ‘A força das ideias’, e ‘Estudos sobre a humanidade’, ambos editados no Brasil pela Companhia das letras — e esgotados no momento. No entanto, caso queiram algo sumário e assustadoramente completo, indico o livreto ‘Uma mensagem para o século XXI’, da editora Âyiné; é justamente nessa pequena edição que basearemos grande parte desse ensaio, e de onde tentaremos retirar todo o seu sulco de vitalidade intelectual. 

Tal livreto traz dois competentes ensaios do grande filósofo: o primeiro e mais completo deles é o ‘The pursuit of the ideal’, retirado da obra ‘The crooked timber of humanity: chapters in the history of ideas’; e o segundo ‘A message to the twenty-first century’, trata-se de um discurso que proferiu na Universidade de Toronto, quando aceitou o grau honorário de doutor das leis.

Isaiah Berlin dedicou boa parte de sua vida intelectual para compreender as estruturas que impulsionavam certas teorias políticas a se encerrarem em sistemas totalitários pseudo-religiosos (ideologias). Em algum momento do desenvolvimento ideológico, observou Berlin, mais nenhum princípio, valor, virtude ou moral eram respeitados para além dos dogmas do partido — líder e/ou Estado. Nesse sentido, o pensador rastreou quatro grandes trilhas e fontes de irrigação filosófica que deram origem e mantiveram até hoje as ideologias; são elas: racionalismo egocentrista, empirismo mecânico, cientificismo soberbo, e utopismo basbaque.

Falemos brevemente de cada um a fim de rastrear a manjedoura das ideologias modernas.

Racionalismo egocentrista
“Os racionalistas do século XVII entendiam que as respostas poderiam ser encontradas por uma espécie de insight metafísico, uma aplicação particular da luz da razão da qual todo homem gozava” (BERLIN, 2018, p.22).

Desde quando René Descartes cravou no seio filosófico de século XVII, que a razão não era um reluzir da graça suprema de Deus que desce e reflete em nosso intelecto, nos capacitando a enxergar — ainda que limitadamente — as coisas e delas fazer juízo; mas que na realidade era o próprio homem a fonte da “graça” racional, que era o próprio homem o ex nihilo, ou seja: o começo de toda inteligência e realização. Desde esse instante o homem se viu — mais ou menos — emancipado de qualquer força que o antecedesse ou determinasse; o homem era finalmente senhor de si e capaz de racionalizar sozinho a sua vida e meio social.

Cogito Ergo Sum. Desta maneira, o homem passa a ser capaz em si mesmo, afinal, se a existência está condicionada ao seu pensar (penso, logo existo), basta que ele inicie o processo racional para realizar do zero aquilo que ele quiser.

Se o homem é capaz de iniciar tudo, ele é capaz de organizar a sociedade conforme os seus projetos, pois, por consequência, é também a sociedade uma de suas obras. As respostas para os entraves humanos e sociais passam a ser meros problemas de ordem organizacional, basta que o homem rastreie em si mesmo as respostas para solucionar as problemáticas questões existenciais. Tudo era questão de rastreamento das ferramentas e organização racional da sociedade; assim como uma criança localiza as peças do quebra-cabeça e as colocam em sua caixa respectiva. 

Se a razão nasce em mim, se eu tenho as respostas para as problemáticas da existência, se tudo é questão de conhecimento, organização e funcionamento das engrenagens (como a mecânica universal de Copérnico e o empirismo sensorial), basta que acomodemos as informações, localizemos as peças do quebra-cabeça, e pronto, seremos capazes de criar uma sociedade de maneira objetiva, sem escorregões e “tropicadas”. Seremos capazes de pensar uma sociedade perfeita; e se pensamos, logo faremos.

“A reorganização racional da sociedade decretaria o fim da confusão intelectual e espiritual, da obediência cega aos dogmas não analisados e da estupidez e crueldade cultivada e promovida pelos inúmeros regimes opressivos” (BERLIN, 2018, p.24-25). Tudo dependia da sintonia fina com a estação correta, tudo era questão de uma reorganização social baseada nas inferências racionais; novamente, o paraíso está logo ali.

Empirismo do almoxarifado
“Os empíricos do século XVIII, maravilhados com as vastas áreas do conhecimento descortinadas pelas ciências naturais calcadas nas técnicas matemáticas — as quais dissiparam tantos erros, superstições, dogmatismos sem sentido —, perguntavam-se, como o fez Sócrates, por que os mesmos métodos não poderiam também funcionar na construção de leis irrefutáveis no campo das relações humanas” (BERLIN, 2018, p.22-23).

Só pensar a perfeição não fará o perfeito acontecer, pelo menos pensavam assim os empíricos; era preciso pensar, ter e conhecer os instrumentos para além das engrenagens mentais. Em suma, era preciso de um conhecimento mecânico da existência que se organizasse num sistema racional de certezas, que não mais eram dados pela metafísica e pelos dogmas opressivos da teologia, mas sim pelas interligações e percepções sensoriais da realidade; as ciências naturais.

Longe de ser o empirismo e o racionalismo inimigos epistemológicos, são antes concordantes entre si; funciona como um casal que briga pela manhã e de noite dorme de conchinha.

Leia mais: O último bunker da esquerda: a universidade

No racionalismo o homem deixa de ser o intérprete da realidade, sendo promovido a criador, o feitor das verdades, o big bang de seu mundo; no empirismo o homem passa a manusear e localizar os instrumentos que são precisos para pôr em prática as verdades pensadas com a razão abstrata. O empirista tenta entender a realidade experiencial a fim de controlar o seu conteúdo e expor as possibilidades aos construtores de ciências e sociedades; foi o que imaginou Francis Bacon — expoente do empirismo — quando escreveu o seu ‘Novum Organum’. O fim último do empirista é dominar a natureza, para não deixar ser dominado por ela. 

É como se os racionalistas fossem os projetistas e os empiristas os rapazes que cuidam do almoxarifado, organizando as plantas prediais, fazendo a manutenção dos maquinários e peças; ou seja, aquele que fará os cálculos do que será preciso para o projeto. Não obstante ainda falta o engenheiro.

Cientificismo soberbo
“Tendo em mãos os novos métodos descobertos pelas ciências naturais, uma ordem também poderia ser introduzida na esfera social — uniformidades poderiam ser observadas, hipóteses, formuladas e comprovadas por meio de experimentos; sobre elas se baseariam leis, e posteriormente essas mesmas leis levariam a leis mais específicas em campos ainda mais circunscritos; por sua vez, essas leis específicas seriam ramificações de outras mais gerais e por aí em diante, até que um sistema completo e harmonioso, todos interconectado por elos lógicos inquebrantáveis e passíveis de serem elaborados em termos precisos — ou seja, matemáticos —, pudesse ser erigido” (BERLIN, 2018, p.22-23).

O cientificismo, por sua vez, inaugura a era da “mão na massa”; como característica filosófica ele nutre a soberba de se considerar superior à religião, metafísica, e todas as correntes não pragmáticas e experimentais do mundo; dando valor somente àquilo que é passível de experiência real e repetição em fórmulas. A ciência, então, passa a ser o verdadeiro ato de manusear, transformar e criar através das experiências e crivos da matéria dada. Por isso mesmo que o cientificismo passa a ser a prática própria do empirismo, sendo uma consequência direta da outra; se o empirismo buscava o domínio sobre a natureza, a ciência busca manuseá-la ao seu favor ou encerrá-la em fórmulas certas e imutáveis.

Segundo Karl Popper, o cientificismo transformou-se em puro dogmatismo, determinando como desinteressante ou irreal tudo aquilo que não se encaixava em seus pressupostos. Não tardou para que a fórmula política do cientificismo fosse criada com os mesmos rigorismos advindos das certezas dos tubos de ensaio; a essa vertente deu-se o nome de “positivismo”, seu maior expoente foi Auguste Comte. 

Tal teoria política acredita que a sociedade funciona a partir de inferências científicas determinantes; que as relações e disposições humanas são catalogáveis e entendidas assim como um inseto qualquer que é dissecado e catalogado segundo as subcategorias pré-determinadas da entomologia. O positivismo crê que certezas e padrões humanos poderiam ser identificados se os ajustes certos de temperatura e pressão fossem encontrados no terreno social. A sociedade, dessa maneira, poderia ser cientificamente traçada, chegando àquilo que Isaiah Berlin chamou de “certeza no campo do comportamento humano” (BERLIN, 2018, p.22).

Utopismo basbaque
“O denominador comum de todas essas perspectivas era a crença de que havia soluções para todos os problemas, que alguém poderia encontrá-las e, com uma boa dose de esforços altruístas, realizá-las na terra. Todos eles acreditavam que a essência do ser humano era poder escolher como viver; sociedades poderiam ser transformadas sob a luz de verdadeiros ideais graças a uma boa dose de fervor e de dedicação” (BERLIN, 2018, p. 20-21).

Tudo isso, quando batido no liquidificador da história e das mentes sedentas por um paraíso terreno gera automaticamente a busca pela utopia. Se temos uma razão organizadora e senhora de si, o empirismo catalogador e a ciência experimental, estamos prontos para criar a perfeição social. Tiram do céu a perfeição e tentam a todo custo construí-lo aqui na terra. “O sonho utópico da humanidade foi assim transformado, substituído, transferido de um paraíso primordial para a terra prometida do futuro” (LEHMANN, 2016, p. 71). Foi sobre os ombros dessas conexões que os iluministas fizeram as suas balbúrdias e tiranias.

Se a razão começa em mim, se eu conheço o almoxarifado da realidade, se sou capaz de catalogar seus elementos, organizar suas constituições, e, posteriormente, manusear tais materiais sob uma certeza cortante de fórmulas e leis; e se tudo isso for cambiável para as relações humanas e estruturas sociais, então eu posso — com uma boa dose de destreza — alcançar uma sociedade perfeita aqui na terra. A utopia passa a ser realizável, e se o mundo perfeito é alcançável, qualquer meio é justificado para chagar a ele; e com isso voltamos à introdução desse ensaio.

Sai Deus, entra Stálin
“O que motiva a rebelião moderna era a convicção de que a humanidade havia sido até então impedida de desabrochar pela influência obscurantista do cristianismo” (LEHMANN, 2016, p. 70).

Eric Voegelin e Raymond Aron, por exemplo, exploram o utopismo com extrema competência e trazem uma nova perspectiva ao debate, usando agora da filosofia da religião como explicação mais ampla dessas problemáticas. Segundo Voegelin e Aron, a utopia como empreitada possível na realidade é consequência de uma invasão da Cidade dos homens na Cidade de Deus — referência à obra magna de Santo Agostinho: ‘Cidade de Deus’. 

Voegelin via tal situação como reflexo das ideias de Joaquim de Fiore, que pretendia estender na terra a “Era do Espírito”, que nada mais era do que uma sociedade perfeita ao modo evangelical (Cf. VOEGELIN, 2012, p. 145). Aron (assim como o excelente filósofo brasileiro Nelson Lehmann), por sua vez, via tal situação como uma consequência natural da secularização que corre a partir do século XVI; quanto mais o homem se afastou da religião e sua teologia escatológica, mais ele buscou ocupar o lugar vazio do Soberano com projetos políticos que tinham tantos dogmas quanto as próprias religiões abandonadas. De certa maneira os seculares queriam Deus, e para isso tentaram fazer o seu próprio; novamente Israel constrói seu bezerro de ouro.

“É verdade que o comunismo atrai ainda mais quando o trono de Deus está vazio. Caso o intelectual não se sinta mais ligado nem à comunidade nem à religião dos seus antepassados, ele pede às ideologias progressistas o pleno preenchimento da sua alma” (ARON, 2016, p. 267).

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Para tal abordagem, a religião é o contrapeso social necessário, pois atua no campo escatológico e transcendente; deixando para a política as diplomacias estatais e os campos do imanente. Ou seja, os campos do possível, do prudente, da têmpora, da diplomacia, do diálogo e do debate. Na política não cabem dogmas! Mantendo, assim, a clássica e providencial separação agostiniana de Cidade dos homens e Cidade de Deus. 

A política que se arroga à teologia, o partido que se ergue como Igreja oficial, os militantes que se tornam fiéis e o Estado que se proclama Deus; são esses os ingredientes para as carnificinas, ditaduras e tiranias. O grande pensador brasileiro J. O. de Meira Penna disse certa vez: “O Estado foi então ressacralizado — à medida que se secularizava a religião” (PENNA, 2017, p. 24). 

Ou seja, há uma grande tendência, desde o fim do século XIX, a compreender que há uma ligação direta com a queda da influência da fé cristã na sociedade ocidental, com o crescimento exponencial dos Estados totalitários que se nutriam de uma ideologia pseudo-religiosa, que exigia de seus adeptos: obediência aos seus dogmas e sacrifício por seus fins.

Não cabe, neste momento, nos aprofundarmos nessa teoria ampla e ainda tão virgem em desenvolvimentos mais robustos no país, mas deixamos a dica para aqueles que queiram estudar com mais profundidade as Religiões políticas.

Ou seja, o problema é a soberba
Não obstante tudo isso que falamos, seriamos outros tolos se julgássemos que censurar as ideias racionalistas, as inferências empiristas e cientificistas, seja algo a ser sadiamente considerado. O assassino não é a arma que o bandido usou, mas sim o bandido que livremente escolheu puxar o gatilho. Desta feita, não é o racionalismo, o empirismo e o cientificismo os construtores de tiranias; são antes os instrumentos que as mentes tirânicas se utilizaram para fundamentar as retóricas de suas ideologias. 

Não tem como voltar os ponteiros relógio, e ainda que tivesse, não seria o apropriado. Não estamos, dessa maneira, jogando na fogueira inquisitória as ideias filosóficas abordadas; se censurar desse certo, ainda estaríamos sob as normas do Index Librorum Prohibitorum. Prefiro acreditar que os homens livres são maduros o suficiente para tomarem consciência das ideias que defendem, e saberem que elas têm consequências.

Saber onde e como surgem as ideologias, é uma empreitada imprescindível na modernidade que novamente flerta com teorias políticas totalitárias. Como exposto no início, todos os países onde as ideologias reinaram, carnificinas ocorreram — de maior ou menor grau. Onde a insanidade política e a fé num paraíso terreno se mancomunaram, campos de concentração foram erigidos e valas comuns foram lotadas por corpos humanos. Somente um déspota se veria inerte à essa realidade; e por isso que conhecer as raízes desse mal é algo extremamente necessário, talvez o mais necessário de todos os conhecimentos políticos na contemporaneidade.

Referências:
ARON, Raymond. O ópio dos intelectuais, São Paulo: Vide Editorial, 2016.

BERLIN, Isaiah. Uma mensagem para o século XXI, 2ª Edição, Âyiné: Belo Horizonte/Veneza, 2018.

PENNA, J. O. de Meira. A ideologia do século XX: Ensaios sobre o nacional-socialismo, o marxismo, o terceiro-mundismo e a ideologia brasileira, 2ª Ed, São Paulo: Vide Editorial, 2017

PETERSON. Jordan. B. 12 regras para a vida: um antídoto para o caos, Alta Books: Rio de Janeiro, 2018.

SILVA, Nelson Lehmann da. A religião civil do Estado moderno, 2ª Ed, Campinas: Vide Editorial, 2016.

VOEGELIN, Eric. História das ideias políticas: Idade média até São Tomás de Aquino – Volume II, É realizações: São Paulo, 2012.


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