‘Lava Jato vira Mãos Limpas se Moro for declarado parcial’, diz Fachin
Em entrevista ao Estadão, ministro do STF destacou que decisão que beneficiou Lula foi ancorada em 20 precedentes da Corte; sobre protestos que chegaram à sua vizinhança, afirmou que prefere ‘solidariedade dos colegas às ameaças e às intolerâncias’
Rafael Moraes Moura/ BRASÍLIA
Na véspera de a Lava Jato completar sete anos de existência, o relator da operação no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, disse ao Estadão que, se o ex-juiz Sérgio Moro for declarado parcial, a investigação terá o mesmo fim que a Operação Mãos Limpas teve na Itália. Fachin anulou nesta semana as condenações impostas ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em um esforço para esvaziar as discussões na Segunda Turma sobre a suspeição do ex-magistrado na ação do triplex do Guarujá.
O ministro Gilmar Mendes, no entanto, contrariou o colega e, com o apoio da maioria, decidiu retomar o julgamento – o placar está empatado em 2 a 2, faltando o voto de Kassio Nunes Marques. A discussão pode sofrer uma reviravolta, já que a ministra Cármen Lúcia, que se posicionou em dezembro de 2018 contra o pedido de Lula, avisou que deve se manifestar novamente.
Confira abaixo os principais pontos da entrevista de Fachin, concedida por meio de videoconferência e e-mail.
A Lava Jato completa sete anos no próximo dia 17. Qual vai ser a história da investigação?
Depende do que for decidido nos próximos dias ou nos próximos meses. E, portanto, se continuar no caminho de entender que há suspeição (do ex-juiz federal Sérgio Moro), a história da Lava Jato será a história do que aconteceu com as Mãos Limpas na Itália (investigação conduzida por um time de procuradores que desvendou um esquema de corrupção sistêmico naquele país, expedindo mais de 3 mil mandados de prisão e investigando mais de 6 mil pessoas investigadas, incluindo empresários e parlamentares. A operação, no entanto, foi desmontada antes de completar três anos, após a eleição de Silvio Berlusconi.) É a história de uma derrocada, em que o sistema impregnado pela corrupção venceu o sistema de apuração de investigação e de condenação dos delitos ligados à corrupção. Portanto, esse é o diagnóstico que eu faço.
Quando o senhor assumiu a relatoria da Lava Jato em 2017, se comprometeu a agir com “prudência, celeridade, responsabilidade e transparência”. Quatro anos depois, como o senhor vê a sua atuação à frente dos casos da maior investigação contra corrupção que já existiu no País?
Entendo que para esse questionamento os números falam melhor que palavras. De acordo com o último levantamento feito pelo meu gabinete, com base em dados oficiais atualizados em 10/03/2021, desde o início da operação Lava-Jato, foram homologadas 120 colaborações premiadas e arrecadado cerca de R$ 1.369.665.781,61 (um bilhão, trezentos e sessenta e nove milhões, seiscentos e sessenta e cinco mil, setecentos e oitenta e um reais e sessenta e um centavos), isso para citar apenas o STF, sendo que há valores mais expressivos recuperados nos juízos de primeiro grau. Foram proferidos, desde 2016, mais de 12.800 atos decisórios (entre decisões monocráticas e despachos) e protocolados mais de 20.863 petições e expedientes pela defesa Ministério Público e outros órgãos.
Para além dos números, sempre tenho destacado que o enfrentamento à corrupção deve ser apartidário, democrático, efetivo e constante. É dever de todos lutar contra esse mal que assola o país e foi evidenciado nos últimos anos de maneira assombrosa.
Faço essa constatação não como lamento, mas como reconhecimento do valoroso trabalho prestado por instituições que, ao longo dos últimos anos, souberam profissionalizar e instrumentalizar o controle público. Graças a elas esse trabalho vai continuar e são altos os custos para quem se aventurar pelo desvio. A tarefa agora é evitar que o retrocesso pontual na política de combate à corrupção se transforme em retrocesso institucional.
Por que o senhor derrubou as condenações contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva agora?
A observância da jurisprudência do Tribunal traduz a máxima segundo a qual casos análogos devem ser tratados de forma análoga. Como dizia o juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos Brandeis, ou temos igualdade e democracia, ou não temos democracia. Como Relator da Lava Jato no Tribunal, busquei defender a manutenção da competência da 13ª Vara para que ela apurasse os delitos contra a Petrobrás que tivessem sido praticados de modo semelhante. A maioria da Segunda Turma, no entanto, optou por restringir a competência apenas aos casos que envolvessem diretamente a estatal. A posição é respeitável e tem amparo na posição de grandes juristas. Ainda que mantenha reservas em relação a esse entendimento, não posso impor aos jurisdicionados a minha posição minoritária.
O presidente Jair Bolsonaro criticou a decisão, dizendo que o senhor “sempre teve forte ligação com o PT”. Como o senhor responderia?
Na decisão da última segunda-feira, destaco um histórico de precedentes firmados pelos órgãos colegiados, em especial da Segunda Turma do Tribunal, sobre a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba. Não se trata de um entendimento individual, ao contrário, trata-se da reiterada jurisprudência da Corte em que, em mais de 20 casos, entendeu pela retirada de processos da referida vara federal, dos quais, na maioria das vezes fiquei vencido. Como disse, em relação a outros agentes políticos que o Ministério Público acusa de praticarem condutas semelhantes à do ex-Presidente da República, o Plenário e a Segunda Turma entenderam pela retirada da competência do Juízo de Curitiba. Por força dos princípios da isonomia e do juiz natural, deve-se garantir o mesmo tratamento e interpretação a todos os investigados em situação análoga, independentemente de quem seja e de qual partido faça parte. Só assim estará garantida a imparcialidade da atuação jurisdicional.
A decisão do senhor repercutiu no mundo político.
A decisão, a rigor, embora seja de segunda, já está no passado. As repercussões fazem parte da vida democrática. E a vida democrática é um canteiro de obras, e não yn olhar contemplativo de um quadro como o da Monalisa em silêncio. Isso tudo integra exatamente uma sociedade democrática. Eu estou mesmo preocupado é com os ganhos institucionais que nós tivemos e eu lhe diria que os ganhos que tivemos nos últimos 30 anos, que foram propiciados pela Lava Jato, são inegáveis.
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Quais foram esses ganhos institucionais?
Se você olhar, da Constituição Federal de 1988 pra cá, coisas institucionais extremamente positivas aconteceram. As carreiras públicas tiveram a regra do concurso público e isso gerou uma qualificação dos agentes públicos, do Ministério Público, da Polícia Federal… Eu estive em Brasília trabalhando em 1986, 1987, quando integrei um dos subgrupos que fazia parte do programa de governo do falecido presidente Tancredo Neves e conheci o procurador-geral da República, que respondia pela advocacia da União. Essa separação foi um ganho institucional muito grande. E leis que vieram, embora com alguma demora, a lei sobre lavagem de capitais, a adesão do Brasil a tratados e convenções internacionais, na área de direitos humanos, um conjunto de normas internacionais, foi internalizada regularmente no Brasil, foram ganhos extraordinários. A lei sobre colaboração premiada e organização criminosa, enfim, portanto, a Lava Jato não é uma chuva, enxurrada de um dia. É um percurso de um desejo de um Estado que seja ao mesmo tempo democrático, eficiente e evidentemente sem corrupção. Portanto, os ganhos institucionais que foram proporcionados a partir da Lava Jato são inegáveis. Vejam: você tem aí em mãos o relatório atualizado do nosso gabinete, é apenas uma franja, passamos à casa do bilhão, 120 delações homologadas. Quantas até agora foram declaradas nulas, anuladas? Tem alguns questionamentos, algumas revisões, tem 120 delações premiadas, mostrou-se um instituto eficaz e efetivo.
Mas também tivemos denúncias rejeitadas pela Segunda Turma, por decisão da maioria, contra a vontade do senhor.
Como tudo no plano do direito, abriu-se um espaço no canteiro de obras para a disputabilidade dos sentidos. Afinal de contas, qual o valor da colaboração premiada? Aí o tribunal começou a esculpir esse valor e gradativamente foi adelgaçando (diminuir de densidade, emagrecer), diminuindo o valor atribuído às delações premiadas, tanto que a orientação hoje majoritária na (Segunda) Turma é que sequer se recebe denúncia com base na colaboração premiada. Hoje a orientação no recebimento de denúncia é quase um julgamento, precisa quase estar demonstrada a culpa para começar a ação penal. Portanto, começou já há algum tempo, logo depois que eu assumi a relatoria, esse adelgaçamento.
A Lava Jato sofreu duras derrotas no plenário do STF, como a derrubada das conduções coercitivas e da prisão após condenação em segunda instâncias. Nesses dois casos, o senhor votou a favor das medidas, consideradas pilares da Lava Jato.
O mecanismo que eu continuo entendendo que é constitucional da prisão em segunda instância foi retirado por compreensão majoritária do pleno. A condução coercitiva, quiçá merecia, sem dúvida nenhuma, algum ajuste, mas praticamente foi retirada. Além disso, as prisões preventivas foram cada vez mais rechaçadas, especialmente pelo critério da denominada contemporaneidade. É uma coisa, digamos assim, que merece um olhar, porque se a pessoa é preventivamente presa, se o passar do tempo por si só esvazia o decreto da prisão, bom então isso significa que o sentido da prisão preventiva está sendo questionado. A questão é saber se o fundamento da prisão preventiva permanece. E quais são os fundamentos da lei? Ordem pública, instrução processual, portanto, enquanto eu não acabar a instrução processual, a prisão preventiva pode ser mantida. E isso tudo foi também, digamos assim, se adelgaçando.
Em março de 2019, o STF decidiu que Justiça Eleitoral julga corrupção quando houver caixa 2, também contra a vontade do senhor.
A minha posição não prevaleceu na remessa para a Justiça Eleitoral. A pergunta que eu faço é: quantas condenações houve na Justiça Eleitoral de lá para cá? Eu não tenho a notícia de nenhuma, é claro que deve existir, mas eu não tenho a notícia de nenhuma.
É culpa da Justiça Eleitoral, ministro?
Isso não é culpa da Justiça Eleitoral, porque a Justiça Eleitoral substancialmente se destina a outra coisa: fiscalizar eleições, administrar eleições, regulamentar eleições. Portanto, e aos poucos começou-a se deslocar a competência, dizendo, ‘bom isso, não é Lava Jato’, e num primeiro momento, me parecia ‘vamos ver então’. Eu mesmo redistribuí vários processos para colegas ministros. Esse tema vinha até chegar a interposição do habeas corpus (da defesa de Lula) em novembro (do ano passado), peguei o período do recesso e estudei essa circunstância. E ao lado disso, emergiu com força a questão da suspeição do magistrado e, portanto, a suspeição do magistrado.
Como o senhor vê a questão das mensagens obtidas por um grupo criminoso de hackers?
Eu não acho que a prova ilícita pode ser varrida para debaixo do tapete, agora é preciso saber o que fazer com ela.
Ministro, a residência onde o senhor mora foi alvo de buzinaços em Curitiba, e o STF acabou reforçando a sua segurança. Em 2017, o senhor já havia relatado ameaças contra familiares. Como o senhor avalia esses episódios?
Eu prefiro o apoio institucional que sempre recebi dos ministros que durante esse período estiveram na Presidência do Tribunal e a solidariedade dos colegas às ameaças e às intolerâncias.