Retrocesso tributário na PEC Emergencial
Rodrigo Spada, Michel Gradvohl e Jefferson Valentin*
02 de março de 2021 | 05h00
Inegavelmente, a criação, em 2020, do auxílio emergencial demonstrou ser uma forma eficaz de mitigar os malefícios econômicos, sobretudo para os mais pobres, advindos do isolamento social necessário, em maior ou menor grau, ao combate da crise na saúde pública causada pela Covid-19.
Em 2021, a crise não dá sinais de arrefecer. Pelo contrário, sobretudo em razão do mau comportamento de muitos brasileiros e pela falta de vacinas em quantidade suficiente para imunizar percentual relevante da população. A necessidade de retomar o auxílio emergencial é premente.
No momento, assim como em quase todos os demais países do mundo, a única forma de sustentar auxílios econômicos é por meio do endividamento público. Este, por sua vez, encontra limites constitucionais que precisam ser relativizados nesse momento ímpar.
Nesse sentido, está em discussão no Senado Federal a Proposta de Emenda Constitucional – PEC 186/2019 (PEC Emergencial) que, ao criar a solução constitucional para o pagamento do auxílio emergencial, sugere diversas medidas que não estão relacionadas com a urgência imposta pela pandemia e que deveriam, portanto, ser tratadas separadamente e com amplo debate da sociedade.
Algumas medidas inicialmente propostas foram rechaçadas de pronto pelo relator, senador Marcio Bittar, e entre as que foram mantidas está a modificação do inciso IV do artigo 167 da CF, que permite a vinculação de receitas de impostos para realização de atividades da administração tributária.
Inicialmente, o relator havia retirado do texto, também, a possibilidade de vinculação de receitas para as ações e serviços públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino, mas diante da forte repercussão negativa da sociedade e de parlamentares, o relator voltou atrás excluindo apenas a vinculação de receitas para atividades da administração tributária.
Apesar de quase ninguém gostar de pagar impostos, a verdade é que sem os recursos oriundos dos tributos não é possível manter e ampliar os serviços públicos. Os próprios serviços de educação e saúde pública, essenciais à garantia do desenvolvimento de nosso país, não estarão assegurados apenas com a previsão constitucional de recursos. É indispensável que existam efetivamente, o que se dá apenas por meio da atividade da administração tributária. Não foi sem motivo que o constituinte dispôs no mesmo inciso sobre saúde, educação e tributação.
Enquanto uma pequena parte privilegiada da população pode custear as próprias saúde e educação, além de segurança, alimentação e lazer, a grande maioria dos brasileiros depende da arrecadação dos impostos para ter à sua disposição o mínimo necessário a uma vida saudável e a um futuro melhor.
Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), quanto maior a autonomia financeira, orçamentária e administrativa da administração tributária, mais eficiente ela será. E eficiência não é cobrar mais, é arrecadar melhor. Fazendo que quem pode mais, efetivamente contribua com uma maior parcela para o bem-estar geral da população. É ter uma relação mais saudável com os contribuintes. É ser prioritariamente orientadora ao invés de punitiva. Isso não interessa a alguns, mas é fundamental para muitos.
A autonomia é essencial ao desenvolvimento dos trabalhos do ministério e da defensoria públicos, órgãos que somente poderão defender a população se houver os recursos indispensáveis à sua manutenção. A possibilidade de vinculação de receitas de impostos para a administração tributária é o mínimo necessário para a construção de sua autonomia.
A garantia de que esta função de Estado seja desenvolvida sem nenhum tipo de cooptação é de grande interesse para a sociedade. A simples disputa política com outras atividades para a obtenção de recursos orçamentários pode resultar em privilégios fiscais ineficientes e de motivação pouco republicana.
Mais do que garantidora da arrecadação necessária à manutenção das atividades estatais, a vinculação de receitas para o exercício dessa importante atividade pública é o pilar de eficiência estatal, de justiça fiscal e de isonomia entre os contribuintes. Sua extinção representaria um enorme retrocesso, enquanto a sociedade, ao inverso, clama por uma reforma tributária que nos aproxime do que há de melhor no mundo.
*Rodrigo Spada é agente fiscal de Rendas do Estado de São Paulo e presidente da Febrafite (Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais). Formado em Engenharia de Produção pela UFSCar, em Direito pela Unesp, com MBA em Gestão Empresarial pela FIA
*Michel Gradvohl é auditor fiscal do Estado do Ceará e diretor da Febrafite (Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais). Especialista em gestão empresarial pela FGV e doutor em Direito pela UMSA/AR. Conselheiro no Contencioso Administrativo Tributário e no Conselho de Defesa dos Contribuintes do Ceará
*Jefferson Valentin é agente fiscal de Rendas do Estado de São Paulo, graduado em Letras pela Unesp e em Ciências Contábeis pela Universidade Católica Dom Bosco, MBA em Gestão Pública pela Universidade Anhanguera Uniderp. Coautor do livro Manual do ITCMD-SP, pela editora Letras Jurídicas