Congresso antecipa votação da PEC da imunidade, mas adia análise da PEC do auxílio
Longe de ser a pandemia, o que agita o mundo político é o apetite de tubarão por cargos
Adriana Fernandes*, O Estado de S.Paulo
O Congresso fala em urgência das votações para as medidas de combate à covid-19, mas age com o mesmo negacionismo do presidente Jair Bolsonaro diante do quadro devastador da pandemia no Brasil.
É inaceitável que, na pior semana desde o início da pandemia, os deputados tenham parado qualquer discussão para tirar de supetão uma proposta de mudança na Constituição para blindagem parlamentar, apelidada de PEC da “impunidade”. Numa operação a jato, a PEC, se transformou no assunto de “maior relevância” para os deputados.
Nada, absolutamente nada, tem mais importância do que enfrentar com foco e determinação a pandemia. Parlamentares têm a responsabilidade de não apenas votar projetos voltados para o combate da pandemia, mas também atuar como instrumento de pressão sobre os governos federal, estaduais e municipais agirem.
Para votar a PEC da imunidade parlamentar, ritos de tramitação foram sendo atropelados e subjugados à vontade soberana das lideranças congressistas. Suas Excelências, as majestades, reis intocáveis, como bem batizou a senadora emedebista Simone Tebet ao comentar as negociações políticas para aprovação da PEC.
Já para a PEC do auxílio, o Congresso enrola e adia a sua tramitação na esteira de “bodes na sala” colocados no substitutivo do relator, senador Marcio Bittar, como o fim dos pisos de saúde e educação. Dois pesos e duas medidas. Ou melhor, duas PECs, dois pesos.
Também não houve movimentação forte no Parlamento para garantir mais recursos para hospitais que se encontram com falta de leitos de UTIs. Cadê a votação do Orçamento de 2021? Também não é importante, nem ao menos para arrumar dinheiro para a saúde.
Não cabem desculpas dos deputados. O certo teria sido a Câmara se envolver mais diretamente nas discussões da PEC do auxílio e junto com o Senado avançado na votação do Orçamento. Inclusive na busca de um acordo político de fatiamento com o Senado para deixar o texto mais compacto, sem todas as medidas fiscais, para agilizar o processo.
Mais uma semana perdida. Sem antes o presidente da Câmara, Arthur Lira, ter reclamado da falta de articulação para a votação da proposta, e das críticas que a PEC recebeu, inclusive do apelido dado.
Lira não conseguiu nessa sexta fechar um acordo para votação da proposta mais rapidamente e acabou decidindo que o tema deverá ser discutido em uma comissão especial. Uma derrota para ele, mas não deixa de ser mais uma proposta a concorrer com a prioridade da guerra contra a pandemia. O jogo vai seguir, mesmo com esse revés.
Longe de ser a pandemia, o que agita mesmo o mundo político é o apetite por cargos nas mudanças prometidas pelo presidente Bolsonaro de tubarões. Um deles já se sabe é o presidente do Banco do Brasil, André Brandão, que colocou o cargo à disposição antevendo mais fritura e o risco de humilhação. Esse é o assunto em Brasília e será nos próximos dias com a cobiça por outros cargos, inclusive do ministério de Paulo Guedes.
Tem muita disputa interna, de construção de espaço com o Centrão. Desenho já pronto de divisão do Ministério da Economia, separando Previdência e Emprego já circula a pressionar a equipe do ministro.
Enquanto o efeito Petrobrás segue alimentando a desconfiança, o governo dança na corda bamba: quer que o mercado seja fiador, agora centrando na PEC do auxílio e contrapartidas, com os “enfeites” das privatizações da Eletrobrás e Correios. Ao mesmo tempo, dança com o Centrão, que é a política do dia a dia. Não tem nem auxílio e nem reforma.
Nesse meio termo, a economia mergulha com a pandemia em seu pior momento e a vacinação desorganizada. E Bolsonaro dificulta ainda mais ao ameaçar os governadores, que anunciarem lockdown, de ficarem sem o auxílio daqui para frente.
A poucos dias de completar um ano da pandemia, o Brasil parece o filme Feitiço do Tempo. A diferença é que no retorno do tempo o cenário é pior ainda. Acelerem o passo, suas Excelências, parlamentares!
Ingerências na Petrobrás não são uma novidade do atual governo
Desde a democratização, todos os governos adotaram intervenções na empresa em diferentes contextos
José Márcio Camargo*, O Estado de S.Paulo
A intervenção do presidente da República na Petrobrás gerou forte volatilidade nos mercados financeiros e aumento de incerteza. Ainda que seja uma prerrogativa do sócio majoritário, no caso o governo, indicar o presidente da estatal para a aprovação de seu Conselho de Administração, a pergunta que ficou no ar é se esta intervenção foi localizada ou indica uma mudança mais geral na política econômica em direção a algo mais intervencionista, menos liberal e mais populista. A reação dos investidores foi imediata e bastante negativa: fuga de recursos do País, desvalorização do real, inclinação da curva de juros e queda generalizada nos preços das ações, principalmente das empresas estatais. A permanência do ministro da Economia no cargo chegou a ser colocada em dúvida.
Intervenções na Petrobrás não são uma novidade, nem é uma prerrogativa do atual governo. Sem levar em consideração o período autoritário, durante o qual a empresa foi gerenciada segundo os interesses do Executivo, todos os governos desde a democratização adotaram intervenções na empresa em diferentes contextos. Sem dúvida, a forma como a decisão de substituir o presidente da empresa foi anunciada, através de uma “live” pública, intensificou o mal-estar entre os investidores.
A situação da Petrobrás é delicada. Além de ser a maior produtora de petróleodo País, um produto que é insumo para praticamente tudo o que se produz hoje e, portanto, qualquer variação em seus preços afeta diretamente todos os setores e agentes da economia, a empresa é monopolista no refino da commodity e, portanto, tem grande poder de determinar o preço para o consumidor final dos derivados do petróleo, em especial, gasolina e óleo diesel.
Por ser uma empresa de economia mista, precisa atender aos interesses dos sócios minoritários, que são privados, e do sócio majoritário, que é o Estado. A questão é que nem sempre os interesses dos sócios privados coincidem com os do sócio majoritário. E sempre que isto ocorre, o incentivo para que o sócio majoritário faça alguma intervenção para atingir seus próprios objetivos acaba dominando o cenário.
Em geral, o impasse ocorre na definição da política de preços da empresa. Para os sócios privados, seguir os preços internacionais do petróleo é importante, pois significa maximizar os lucros da empresa e, portanto, seu valor de mercado. Porém, para o controlador, quando os preços internacionais da commodity estão em trajetória de forte elevação, repassar estes aumentos para os preços internos do produto significa aumentar a taxa de inflação, o que afeta a popularidade do governo. A questão dos caminhoneiros intensifica este conflito.
Existem duas soluções extremas para este dilema: a venda do controle da companhia por parte do governo ou a completa estatização. A questão é que nenhuma destas duas possibilidades parece estar no horizonte no momento. Uma pergunta é se existe alguma solução intermediária.
A política da atual diretoria de vender uma parte importante do parque de refino, além de gerar recursos para reduzir o endividamento da companhia, teria o efeito de aumentar a competição nos mercados de derivados do petróleo, reduzindo o poder de mercado da Petrobrás nestes mercados, o que amenizaria o dilema. Neste sentido, uma pergunta importante é se esta estratégia será mantida pela futura diretoria. Uma reversão desta estratégia seria um importante sinal de mudança em direção a uma política econômica mais intervencionista.
Após a intervenção na Petrobrás, o governo enviou ao Congresso medida provisória regulando a privatização da Eletrobrás e projeto de lei para iniciar o processo de privatização dos serviços dos Correios, por meio de concessões e parcerias com o setor privado. São sinais positivos. Entretanto, insuficientes para reverter o estrago causado pela intervenção. Os investidores continuam desconfiados!
*PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC/RIO E ECONOMISTA-CHEFE DA GENIAL INVESTIMENTOS
Crise na região pode abrir caminho para a eleição de candidatos populistas
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
A insatisfação generalizada na América Latina com os altos e persistentes níveis de desigualdade, corrupção, criminalidade e serviços públicos precários provocou um visível desgaste na redemocratização iniciada nos anos 80. Emblematicamente, 2019 foi marcado por protestos violentos, notadamente no Chile, Equador, Bolívia e Colômbia. A pandemia esvaziou as ruas, mas agravou as tensões, prometendo um ciclo eleitoral em 2021-22 dos mais incertos e instáveis.
Como conclui uma análise do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, em inglês), a pandemia, a recessão econômica e os debates emocionalmente carregados sobre o desempenho dos governos “podem fortalecer a mão dos candidatos populistas, que podem levantar poderosos argumentos anti-establishment prometendo ao mesmo tempo pródigos aumentos nos gastos públicos”.
Nenhuma região foi mais impactada pelo vírus. Com cerca de 8% da população mundial, a América Latina responde por quase 20% dos casos e 30% das mortes. Os dois maiores países, Brasil e México, presididos por populistas e negacionistas, respectivamente à direita e à esquerda, detêm o segundo e o quarto recorde de mortes.
O FMI estimou uma contração de 8% do PIB latino-americano em 2020 e projeta uma retomada modesta de 3,6% em 2021. O colapso do turismo e do varejo praticamente pulverizou as receitas de muitas localidades. Os níveis de pobreza, desigualdade e desemprego aumentaram drasticamente em um mercado de trabalho já marcado pela alta informalidade. Estima-se que 45,5 milhões de latino-americanos caíram na pobreza e 28,5 milhões na miséria – no agregado, 231 milhões (37% da população) são hoje pobres ou miseráveis.
A dívida pública cresceu de 57% para 67% em 2020. No Brasil e Argentina margeiam 100%. Os programas de vacinação – e consequentemente a abertura econômica – serão bem mais lentos do que na Europa ou EUA. Como aponta o IISS, os governos enfrentarão um dilema: cortar gastos rápido demais pode inflamar a revolta social, mas prorrogar estímulos fiscais por tempo demais pode elevar a dívida a níveis insustentáveis, deteriorando as condições de crédito. Nesse cenário, oito países realizarão eleições em 2021 e três, em 2022.
Em vários deles a corrupção endêmica deflagrou uma epidemia antipolítica – sintetizada na fórmula “que se vayan todos!”. É possível que alguns líderes e partidos eleitos, num cenário institucional já tenso e fragmentado, tenham pouca experiência de governo. É grande o risco de que as eleições presidenciais do Equador, Peru e Chile em 2021 levem à ascensão de líderes populistas – embora os conservadores tenham chances – e as eleições do Brasil em 2022, à sua manutenção.
Em relação às ditaduras de esquerda há pouca esperança no horizonte. Em Cuba, a dinastia de 60 anos dos Castros deve se encerrar formalmente com Raúl Castro cedendo a sua posição de primeiro-secretário do Partido Comunista a Miguel Díaz-Canel. Mas não é claro quem prevalecerá no Politburo: os reformistas ou os stalinistas. Em prol dos últimos, o filho de Raúl, Alejandro, segue no comando dos serviços de inteligência. O ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, deve manipular as eleições para inaugurar sua própria dinastia, transferindo o poder à sua mulher, Rosario Murillo. Nicolás Maduro dividiu a oposição venezuelana e conquistou o Parlamento.
Ainda assim, alguns países desafiaram as tendências antidemocráticas. O Chile referendou uma Assembleia constitucional na esperança de tornar o país mais equânime e democrático. A Bolívia, mesmo elegendo o herdeiro político de Evo Morales, Luis Arce, interrompeu suas pretensões bolivaristas em um processo eleitoral legítimo e relativamente tranquilo.
Tudo somado, as eleições latino-americanas darão às suas populações, como sempre, uma oportunidade de renovação. As constelações políticas tradicionais podem aproveitá-la para um realinhamento virtuoso. Mas, dado que o crisol da crise potencializou os riscos de aventuras populistas, tudo dependerá de sua capacidade de engendrar amplas coalizões representativas e republicanas.
Bolsonaro diz desconhecer ‘PEC da Blindagem’ e nega que medida beneficie sua família
‘São uns 30 mil projetos tramitando no Congresso Nacional’, diz o presidente durante sua transmissão semanal nas redes sociais
Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – O presidente Jair Bolsonaro disse nesta quinta-feira, 25, desconhecer a proposta em discussão na Câmaraque blinda parlamentares ao limitar situações em que podem ser presos ou afastados do mandato. Em transmissão ao vivo pelas redes sociais nesta quinta-feira, 25, Bolsonaro buscou se desvincular da proposta, chamada nos bastidores do Supremo Tribunal Federal de “PEC da Blindagem”.
O texto, que estava em discussão por deputados no momento em que Bolsonaro falava, foi elaborado por determinação do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL).
“Essa PEC é do Legislativo, não tenho qualquer participação sobre ela”, disse. “O pessoal não gostou de alguns artigos dessa PEC e começa a atirar em mim. Não tenho conhecimento dessa PEC. São uns 30 mil projetos tramitando no Congresso Nacional. Não tem como eu saber tudo o que acontece lá. Não tem nada a ver comigo. O pessoal começa a atirar e fala que minha família vai ter proveito próprio em cima disso.”
O filho mais velho do presidente, Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), é acusado de comandar um esquema de “rachadinha” no período em que foi deputado estadual no Rio de Janeiro. O processo tramita no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
A PEC, que tramita com o apoio de governistas e do Centrão, foi criada após a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ). O parlamentar foi detido há nove dias, depois dee ofender ministros do STF e fazer apologia do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), o mais duro da ditadura militar. A prisão foi determinada pelo ministro Alexandre de Moraes e confirmada depois por unanimidade pelo plenário do tribunal e pela própria Câmara.
A PEC teve sua admissibilidade aprovada na noite desta quarta, 24, pelo placar de 304 votos a favor, 154 contra e duas abstenções. Foi uma etapa prévia à votação dos termos do texto, que ainda precisa ser aprovado em dois turnos com, no mínimo, 308 votos em cada etapa, antes de ser enviado ao Senado. A proposta original redigida por aliados de Lira, dizia que a prisão só caberia em crimes que fossem inscritos na Constituição como inafiançáveis, como os hediondos.
Em uma tentativa de acordo entre líderes, no entanto, o texto foi desidratado e a nova redação é menos restritiva e vai estabelecer que a prisão cabe em casos de flagrante de crimes inafiançáveis “nos termos da lei”. Para aumentar o rol de crimes, será preciso apenas alterar leis, e não mais a Constituição. Ainda assim, há limitações às possibilidades de prisão de parlamentares.
Máscaras
Sem citar a fonte, Bolsonaro também aproveitou a transmissão ao vivo para as redes sociais, nesta quinta-feira, 25, para criticar o que chamou de “efeitos colaterais” do uso de máscaras contra a covid-19. “Começam a aparecer estudos aí, não vou entrar em detalhes, sobre o uso de máscaras. No primeiro momento, uma universidade alemã fala que elas são prejudiciais a crianças”, disse.
Em seguida, passou a ler em uma folha de papel sintomas que teriam sido apontados no estudo mencionado. Entre eles, irritabilidade, dificuldade de concentração, diminuição da percepção de felicidade, recusa de ir para escola, vertigem e desânimo. “Então, começam a aparecer os efeitos colaterais das máscaras”.
O presidente não mencionou a capacidade de a proteção facial reduzir a circulação do novo coronavírus. Ele não costuma usar máscaras em agendas públicas. Na transmissão, o presidente afirmou ter a própria opinião sobre o uso da cobertura facial e disse aguardar um “estudo mais aprofundado por parte de pessoas competentes”.
Desde meados do ano passado, a Organização Mundial da Saúde recomenda o uso de máscaras para conter o avanço do novo coronavírus, principalmente em situações em que não é possível manter o distanciamento social.
Em dezembro, a entidade reiterou a orientação para uso da proteção e desencorajou o uso de máscaras com válvulas porque esse tipo de objeto permite que o ar escape sem ser filtrado.
Na Alemanha, desde janeiro, regras para uso de máscaras foram endurecidas. O País passou a banir proteções caseiras em locais públicos e a exigir coberturas cirúrgicas, mais eficientes contra a disseminação de variantes mais perigosas do vírus. A mesma medida preventiva tem sido seguido por outros países da Europa.
Na transmissão, Bolsonaro também não fez referência à marca de 250 mortes no Brasil provocadas pelo novo coronavírus, nem às novas etapas do plano de imunização.
O iminente colapso do sistema de saúde em boa parte do País não permite relaxamento – nem das autoridades nem dos cidadãos
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
O Brasil superou a terrível marca de 250 mil mortes em decorrência da covid-19. É a maior tragédia nacional a se abater sobre as atuais gerações. Para aumentar ainda mais a angústia de milhões de brasileiros, nada indica que a pior fase da peste já tenha passado. Ao contrário, há evidentes sinais de recrudescimento da pandemia. No Amazonas, por exemplo, só nos dois primeiros meses de 2021 foram registradas mais mortes por covid-19 do que ao longo de todo o ano passado.
O novo coronavírus se espalha como nunca antes pelo País desde o início deste flagelo, há um ano. Há mais de um mês, os brasileiros convivem com a morte de mais de mil de seus concidadãos todos os dias. O número é subestimado. A baixa testagem e a imprecisão diagnóstica escondem a real dimensão da tragédia.
A campanha de vacinação, única saída para pôr fim ao morticínio, segue lenta, incerta. A distribuição das poucas vacinas que há é atabalhoada, vide a recente trapalhada ocorrida no envio dos imunizantes para o Amapá e o Amazonas.
Novas cepas do coronavírus, mais contagiosas, já circulam livremente Brasil afora, sem qualquer tipo de rastreamento pelas autoridades sanitárias.
Os sistemas de saúde de pequenas e médias cidades do interior do Brasil entraram em colapso. Médicos têm de decidir na porta dos hospitais quem será socorrido e quem terá de se haver com a própria sorte. Muitos cidadãos, em especial os mais jovens, comportam-se como se a pandemia tivesse passado. Ou pior, como se não lhes dissesse respeito. É muito difícil nutrir a esperança por dias melhores diante da ausência de um espírito mais fraterno que una a sociedade nos esforços para superar um mal que, independentemente da medida, afeta todos, sem distinções de qualquer ordem.
No mais rico Estado do País, São Paulo, estima-se que em apenas três semanas não haverá leitos de UTI para dar conta do atendimento de todos os doentes. É de imaginar o que pode ocorrer – na verdade, já está ocorrendo – em Estados sem as mesmas condições dos paulistas. O governador João Doria (PSDB) anunciou uma “restrição de circulação” entre 23 e 5 horas, que valerá de hoje até o dia 14 de março, para tentar conter o avanço da doença.
A medida está longe do ideal. Mas o que é “ideal” no atual estágio da pandemia e dos humores da sociedade? Ideal é o que é possível fazer. É verdade que a maior parte das pessoas já estaria recolhida naquele período, mas também é fato que há muitos eventos e festas clandestinas que reúnem pequenas multidões nas madrugadas. Os objetivos do governo paulista são coibir, na medida do possível, esses eventos e alertar a população, mais uma vez, de que as coisas não vão bem. Qualquer medida de restrição tem também essa função de alertar os cidadãos para o risco.
Sempre é possível questionar as chances de eficácia das medidas impostas pelo Palácio dos Bandeirantes, seguindo a recomendação do Comitê de Contingência da Covid-19, na contenção do espalhamento do vírus. No entanto, o fato é que, sejam quais forem as medidas adotadas por governos, no Brasil e no mundo, por melhores que sejam entre as paredes dos gabinetes de crise, de nada valerão se os cidadãos não as respeitarem na vida cotidiana. Em outras palavras, a solução para uma crise da magnitude da pandemia de covid-19 não depende apenas da atuação do Estado, mas também do engajamento da sociedade.
Evidentemente, não se está aqui a relativizar a enorme responsabilidade que os atos e as omissões das autoridades, em especial do presidente Jair Bolsonaro e de seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, têm na construção dessa tragédia sem paralelos recentes. Chegará o dia em que a negligência de um e de outro será escrutinada pela Justiça. Entretanto, não cabe uma postura igualmente omissa e passiva de cada um dos cidadãos.
Hoje, o País chora a morte de 250 mil dos seus, e nada indica que a pandemia arrefecerá sem uma robusta campanha de imunização e sem a adoção de rigorosas medidas preventivas. O iminente colapso do sistema de saúde em boa parte do País não permite relaxamento – nem das autoridades nem dos cidadãos.
LONDRES – Quatro de cada cinco doses da vacina contra a covid-19 da AstraZeneca-Oxford entregues aos 27 países da União Europeia não foram usadas, apontou uma investigação do jornal britânico The Guardian publicada nesta quinta-feira, 25. Usando dados do Centro Europeu de Controle de Prevenção de Doenças (ECDC, na sigla em inglês) e outras fontes oficiais, o jornal estimou que 4.849.752 das 6.134.707 doses distribuídas não foram usadas.
De acordo com o Guardian, a decisão das autoridades de França, Alemanha, Polônia e Itália de recomendar o uso da vacina de Oxford só para pessoas com menos de 65 anos, aliada à falha dos governos em redirecionar o imunizante para os mais jovens, seria o motivo para a lenta administração das doses.
Nesta semana, a chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou ao jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung que a vacina também é rejeitada após uma série de informações negativas sobre a eficácia e a segurança do imunizante.
“Há atualmente um problema de aceitação da vacina AstraZeneca”, disse Merkel, na entrevista. “AstraZeneca é uma vacina confiável, eficaz e segura, aprovada pela Agência Europeia de Medicamentos e recomendada na Alemanha até os 65 anos de idade. Todas as autoridades nos dizem que essa vacina é confiável. Com imunizantes tão escassos quanto agora, você não pode escolher com o que vacinar.”
Conforme levantamento feito pelo jornal El País, a Alemanha armazenou 85% das vacinas da empresa – de quase 1,5 milhão de doses recebidas, pouco mais de 200 mil foram aplicadas. Na semana passada, o presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que a vacina é “quase eficaz”. Segundo o Guardian, das 1.137.600 de doses recebidas pelos franceses, 125.859 ou 11%, tinham sido aplicadas.
A Organização Mundial da Saúde(OMS) recomenda a vacinação para todas as pessoas com mais de 18 anos. Quando aprovou o uso do imunizante, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) também disse que a vacina poderia ser usada por todas as pessoas com mais de 18 anos.
Apesar da liberação, a agência alemã resolveu não recomendar doses da AstraZeneca para pessoas acima de 65 anos, alegando que a maioria dos participantes nos testes tinha entre 18 e 55 anos de idade. A empresa afirmou que a eficácia da vacina em grupos etários mais altos não pôde ser avaliada e continua a fazer estudos.
A vacina da AstraZeneca já foi licenciada em pelo menos 50 países – o primeiro foi o Reino Unido, ainda no ano passado. “Estamos trabalhando bastante para tentar convencer as pessoas a aceitar a vacina e para construir novamente a confiança da população. Infelizmente, levará algum tempo para atingir esse objetivo”, afirmou à Radio 4’s Today Thomas Mertens, presidente da agência alemã que decidiu barrar a vacina para os mais velhos. / AP e REUTERS
‘Imunização VIP’ para os poderosos e seus comparsas choca a América do Sul
Uma onda de escândalos de corrupção está expondo como os poderosos e os que têm contatos importantes na América do Sul furaram a fila para obter vacinas mais cedo. A consternação pública está se transformando em raiva
The New York Times, O Estado de S.Paulo
LIMA — A esperança trazida pela chegada das primeiras vacinas contra a covid-19 na América do Sul está se transformando em raiva à medida que as campanhas de vacinação se transformaram em escândalo, clientelismo e corrupção, abalando governos nacionais e minando a confiança no establishment político.
Dois ministros do Peru e um da Argentina renunciaram por receber ou dar acesso preferencial a vacinas escassas. Um ministro do Equador está sendo investigado por fazer o mesmo. Os promotores desses países, e no Brasil, estão examinando milhares de outras acusações de irregularidades nas iniciativas de vacinação, a maioria envolvendo políticos locais e suas famílias cortando a fila.
À medida que as acusações de transgressão enredam mais presidentes, a tensão está aumentando em uma região onde a indignação popular com a corrupção e a desigualdade se espalhou nos últimos anos em protestos ruidosos contra o status quo político. A frustração pode encontrar uma válvula de escape nas ruas novamente – ou nas urnas, moldando as decisões dos eleitores nas próximas disputas, como as eleições no Peru em abril.
“Todos sabiam que pacientes estavam morrendo”, disse Robert Campos, de 67 anos, médico da capital do Peru, Lima, sobre os políticos do país. “E eles vacinaram todos os seus amiguinhos.”
A raiva contra poderosos furadores de fila foi ampliada pela escassez das vacinas. A América do Sul, como outras regiões em desenvolvimento, tem lutado para adquirir doses suficientes, já que os países ricos compraram a maior parte do suprimento disponível.
Campos disse que não fez parte da lista de vacinação quando doses limitadas chegaram para a equipe do hospital na semana passada.
A América do Sul foi atingida pelo vírus, responsável por quase um quinto de todas as mortes por pandemia em todo o mundo – 450 mil, de acordo com a contagem oficial – apesar de representar cerca de 5% da população mundial. Os dados de mortalidade sugerem que o número real da pandemia na região é pelo menos o dobro dos números oficiais.
O vírus causou o colapso dos sistemas nacionais de saúde e mergulhou a região em sua pior crise econômica da história moderna.
Apesar do pesado custo, a pandemia conseguiu apoio público para a maioria dos governos da região, já que vários ofereceram apoio financeiro às suas populações e pediram unidade.
Os escândalos das vacinas podem acabar com essa boa vontade, anunciando uma nova onda de instabilidade, alertam analistas. “As pessoas acham muito mais difícil tolerar a corrupção quando a saúde está em jogo”, disse Mariel Fornoni, pesquisadora de Buenos Aires.
Os escândalos refletem casos semelhantes no Líbano, na Espanha e nas Filipinas – e nos Estados Unidos, onde também houve casos de acesso da elite aos primeiros lotes e distribuição desigual entre grupos raciais e étnicos. Na América Latina, a natureza descarada de alguns dos casos alimentou a indignação.
‘Área VIP’
No Peru, um vice-ministro da Saúde foi vacinado com doses extras de um ensaio clínico, junto com sua mulher, irmã, dois filhos, um sobrinho e uma sobrinha. O ministro da saúde do Equador enviou doses do primeiro lote de vacinas do país, que o governo disse ter sido reservado para o setor público, para um asilo privado de luxo onde mora sua mãe.
Um importante jornalista argentino divulgou na semana passada em uma entrevista de rádio que teve uma chance contra o ministério da saúde depois de ligar para seu amigo, que era o ministro da saúde, expondo o que os moradores locais chamaram de “Clínica de Imunização V.I.P. ”para aliados do governo. No Brasil, os promotores pediram a prisão do prefeito de Manaus, cidade do norte devastada por duas ondas de coronavírus, sob suspeita de dar aos aliados acesso preferencial à vacina.
E no Suriname, o ministro da saúde de 38 anos atribuiu a si mesmo a primeira injeção de vacina do país para “dar o exemplo”.
À medida que as denúncias chegavam, cidadãos de toda a América do Sul recorreram às redes sociais para denunciar os abusos e identificar os suspeitos de furarem a fila. Médicos e enfermeiras no Peru protestaram fora dos hospitais na semana passada para exigir vacinas enquanto o escândalo do suborno de vacina crescia no país.
Ministros da Saúde renunciaram no Peru e na Argentina, onde o ex-funcionário foi acusado de abuso de poder; O ministro da Saúde do Equador enfrenta um julgamento de impeachment e uma investigação criminal.
Os escândalos da vacina repercutiram especialmente no Peru, onde a pandemia matou mais de 45 mil pessoas, de acordo com a contagem oficial, embora os dados de mortalidade excessiva sugiram que o número real pode ser mais do que o dobro desse número.
No início deste mês, o médico que conduziu o primeiro ensaio de vacina do Peru reconheceu vacinar cerca de 250 políticos, seus parentes e conhecidos, bem como administradores universitários, estagiários e outros, com doses extras não declaradas. Alguns receberam três doses, segundo o diretor do ensaio, Germán Málaga, na tentativa de maximizar sua imunidade.
O escândalo abalou uma nação que já se recuperava de uma série de investigações de corrupção que minaram a confiança nas instituições democráticas e envolveram os seis ex-presidentes mais recentes do país.
Apenas um dos ex-presidentes, Martín Vizcarra, deixou o cargo com altos índices de aprovação, graças à sua posição dura em relação à corrupção. Agora, Vizcarra se envolveu no escândalo do teste de vacinas depois que se descobriu que ele recebeu uma injeção secretamente enquanto estava no cargo, antes mesmo que o Peru aprovasse ou comprasse qualquer vacina. Ele então tentou encobrir.
“Achamos que ele era uma boa pessoa”, disse Ana Merino, uma vendedora de jornais em Lima cujo marido morreu de covid no ano passado. “A quem podemos recorrer? Quem sobrou? ”
A lista dos que se beneficiaram ilicitamente do teste da vacina no Peru inclui o ministro da saúde, os reguladores da vacina, os anfitriões acadêmicos do teste e até mesmo o enviado do Vaticano ao país. O enviado, Nicola Girasoli, disse à mídia local que recebeu a vacina por ser um “consultor de ética” da universidade responsável pelo ensaio.
Depois de renunciar, a ministra da Saúde do Peru, Pilar Mazzetti, disse que tomar a injeção foi “o pior erro da minha vida”. Outra política que aproveitou o julgamento, a ministra das Relações Exteriores do país, Elizabeth Astete, também pediu demissão, depois de argumentar que ela “não tinha o luxo” de ficar doente no trabalho.
O escândalo da vacina pode sacudir as eleições gerais do Peru em abril, beneficiando candidatos que prometem uma ruptura radical com o sistema político atual, disse Alfredo Torres, chefe da empresa de pesquisas Ipsos em Lima.
Entre eles estão Keiko Fujimori, filha de um ex-presidente preso, que disse que transformará o Peru em uma “demodura”, uma mistura de palavras em espanhol para democracia e ditadura, e Rafael López Aliaga, que propôs condenar à morte políticos.
Como a maioria dos países da região recebeu até agora apenas uma pequena fração das vacinas de que precisam, vários grupos têm lutado pela prioridade.
No Peru e na Venezuela, os governos disseram que as forças de segurança teriam prioridade junto com os profissionais de saúde, o que gerou protestos da comunidade médica.
No Brasil, que vacinou apenas 3% de sua população, um terço dos 210 milhões de habitantes do país estão incluídos na lista de prioridades, ultrapassando em muito o número de doses disponíveis. O grupo inclui veterinários, que argumentaram que atuam na área de saúde; caminhoneiros, que ameaçaram greve caso não tomassem a vacina; e psicólogos, bombeiros e construtores.
A confusão foi agravada pela decisão do governo brasileiro de delegar parcialmente a ordem de vacinação às autoridades locais, levando a um caleidoscópio de regras conflitantes. Alguns promotores que investigam o desvio de vacinas disseram que o caos burocrático pode ter sido deliberadamente ampliado para esconder o clientelismo e a corrupção.
“Os médicos sempre me ligam dizendo que têm medo de morrer”, porque não podem se vacinar, disse Edmar Fernandes, presidente do sindicato dos médicos do Ceará. “Esse tipo de corrupção mata.”