sábado, 2 de janeiro de 2021

LEIS PROTEGEM O CRIME E NÃO SÃO PUNIDOS

 

Aberrações legais protegem o crime e facilitam impunidade

Após dois anos de governo Bolsonaro, há uma situação em que o poder público incentiva ainda mais a atividade criminosa no Brasil

  •  J. R. Guzzo, O Estado de S.Paulo

 

 

 


Um dos maiores projetos do governo do presidente Jair Bolsonaro, exposto em volume máximo durante toda a sua campanha eleitoral, era o combate ao crime – um dos piores inimigos da população brasileira nas últimas décadas, em razão da impunidade dos criminosos, da baixa eficiência do aparelho policial e judiciário e da aberta submissão da lei aos interesses dos escritórios de advocacia penal mais prósperos deste país. Passam dois anos e o que se tem hoje? Uma situação em que o poder público incentiva ainda mais a atividade criminosa no Brasil.

Não apenas não foi feito o prometido. Inventaram-se, com a cumplicidade objetiva do governo federal, novas aberrações legais para proteger o crime e deixar sem punição os criminosos. Uma das mais perversas foi a criação do “juiz de garantias”, pela qual todo processo penal no Brasil passa a ter dois juízes – isso mesmo, dois juízes diferentes – um para cuidar da papelada e outro para encontrar motivos que possam ser utilizados para soltar bandidos presos em flagrante.

 

Com a desculpa de que esse tipo de juiz existe “em outros países”, e como se o Brasil fosse um exemplo mundial em matéria de criminalidade baixa, deputados e advogados espertos enfiaram num “pacote anti-crime” apresentado pelo governo – justo aí – o contrabando desse segundo juiz. O presidente da República poderia vetar o texto de lei, aprovado no final de 2019. Não vetou. Também poderia vetar, e não vetou, outro presentaço para os criminosos e seus advogados: a soltura de réus que estejam presos há mais de 90 dias sem terem “condenação definitiva”. Em nenhum governo anterior o crime conquistou duas vitórias como essas.

Sabe-se muito bem o uso que já se fez dessa história dos 90 dias: o ministro Marco Aurélio mandou soltar um traficante de drogas milionário que teve como advogado um ex-assessor dele mesmo, Marco Aurélio. O homem estava condenado, em duas sentenças, a 25 anos de cadeia, e obviamente desapareceu assim que saiu do xadrez. Agora, um grupo de advogados que costumam cobrar honorários de milhões entrou com um habeas corpus coletivo contra a liminar do presidente do STF, Luiz Fux, que suspendeu em janeiro último a existência do “juiz de garantias”. É o “pacote pró-crime” do governo de novo em ação.

É abusivo e ilegal: não cabe a apresentação de habeas corpus contra decisão do presidente do STF. E daí? A ala do tribunal que está o tempo todo ao lado da imunidade quer dar um troco no presidente Fux, que já há tempo se tornou um dos seus desafetos – e vai jogar tudo para recuperar os benefícios que o crime espera obter com o “juiz de garantias”. Fica aberto, tecnicamente, o caminho para que sejam soltos todos os criminosos que não passaram pelo segundo juiz 24 horas depois da sua prisão.

O “processo civilizatório” do Brasil é isso aí.

 


FEMINICÍDIO TEM QUE SER COMBATIDO E EVITADO

 

Resolução: combater crimes contra mulheres

Abusos podem levar a episódios que constituem o prelúdio dos assassinatos

João Gabriel de Lima*, O Estado de S.Paulo

 

 

 


Em plena véspera de Natal, as manchetes das plataformas de notícias estampavam um crime revoltante: o assassinato da juíza carioca Viviane do Amaral Arronenzi. Ela foi esfaqueada pelo ex-marido na frente das três filhas, quando levava as crianças para passar o Natal com o pai. Viviane vinha sofrendo ameaças desde que terminou o casamento com o engenheiro Paulo Arronenzi. Chegou a andar com escolta, mas acabou por dispensar os guardas. O feminicídio é um crime tristemente comum no Brasil – só no Rio foram registrados 67 casos em 2020. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios no País são praticados por ex-cônjuges.

Notícias de violência contra a mulher marcaram o final de 2020. Uma deputada de São Paulo e uma atriz e roteirista de televisão foram vítimas de assédio sexual – por parte, respectivamente, de um colega de plenário e de um diretor de programas humorísticos. O que todos esses crimes têm em comum, além de as vítimas serem mulheres, é que em geral andam encadeados. Abusos podem levar a episódios de violência, que muitas vezes constituem o prelúdio dos assassinatos. Por isso, é necessária tolerância zero em todos os passos da escalada.

A luta contra esse tipo de crime começa na seara da cultura. De acordo com a cientista política Manoela Miklos, personagem do minipodcast da semana, apenas punir exemplarmente os criminosos não resolve. “A Lei Maria da Penha é boa, mas os incentivos para que uma vítima não recorra à Justiça são enormes”, diz ela. “Os processos são custosos e demorados, e a mulher tem que repetir sua história várias vezes para que acreditem nela, reforçando o estigma de vítima. As mulheres que procuram a Justiça buscando algum tipo de reparação têm que dedicar muito tempo aos processos, e acabam desistindo.” Como lembrou Eliane Cantanhêde em sua coluna no Estadão, há também agentes da Justiça que ofendem as vítimas: “A mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor”.

As providências passam por modificar a estrutura de incentivos, com melhores condições e acolhimento para a mulher que denuncia – coibindo os crimes nos primeiros passos da escalada. Para combater casos de assédio e violência, Manoela Miklos propõe o uso da Justiça Restaurativa, técnica de resolução de conflitos que coloca em contato ofensores e vítimas.

Uma reportagem da revista americana The Atlantic narra o caso de uma mulher que passou a dar palestras para homens abusadores após sofrer violência doméstica. Reunir vítimas e ofensores para conversar a respeito – não necessariamente protagonistas de um mesmo caso – é outro procedimento clássico da Justiça Restaurativa. Estudos acadêmicos mostram que tais medidas, nos Estados Unidos, chegam a diminuir em 40% a reincidência em violência doméstica. No Brasil, experiências-piloto são aplicadas em alguns municípios, como Novo Hamburgo (RS), e já existe inclusive literatura acadêmica a respeito. A reportagem e os papers estão anexados à versão digital da coluna.

Não há consenso sobre o uso da Justiça Restaurativa em todos os casos. Ela leva, no entanto, ao caminho que precisamos trilhar: o da mudança cultural. Uma boa resolução de ano-novo seria não ter nada parecido com o assassinato de Viviane Arronenzi no próximo Natal.

 

UM ANO SEM ESCOLAS FREQUENTADAS POR ALUNOS

 

Um ano sem escolas

No longo prazo, diferença entre escolas privadas e estatais na pandemia aumentará a desigualdade

José Márcio Camargo, O Estado de S.Paulo

 


Um ano sem escola. Esse é o saldo da pandemia de covid-19 para milhares de alunos das escolas estatais brasileiras. Em todos os níveis de ensino. Das creches às universidades. Isso se tivermos vacinas no começo de 2021. Afinal, os sindicatos de professores dessas escolas decidiram que somente voltarão ao trabalho quando tivermos vacinas para todos.

Por outro lado, uma parte importante das escolas privadas conseguiu manter as aulas com a utilização de tecnologia digital. Ainda que se possa questionar se as escolas conseguiram ou não manter a qualidade dos cursos presenciais, essa dicotomia terá um efeito extremamente importante sobre a desigualdade da distribuição da renda no País no longo prazo.

Isso é particularmente importante para as creches. Como mostrei em meu último artigo neste espaço, o auge do desenvolvimento da capacidade de aprendizagem do ser humano ocorre entre os seis meses de gravidez e os 5 ou 6 anos de idade. Como o estoque de capital humano acumulado pelos membros adultos das famílias está diretamente relacionado ao desenvolvimento da capacidade de aprendizado das crianças (os adultos são fundamentais para ajudar as crianças no desenvolvimento de capital humano) e ao nível de renda das famílias, uma das principais funções das creches e dos primeiros anos de escola é exatamente compensar, ao menos em parte, esse diferencial de estoque de capital humano das famílias. Como resultado desta diferença de comportamento entre as escolas privadas e as estatais durante a pandemia, a disparidade de capital humano acumulado vai aumentar nas próximas gerações, aumentando a desigualdade no longo prazo.

A possibilidade de utilizar recursos públicos para financiar alunos nas creches e na pré-escola, um dispositivo incluído no novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), poderá ser um importante instrumento para minorar este processo. Como não existem vagas suficientes para estes níveis de ensino na maior parte das cidades brasileiras (somente 35% das crianças entre zero e seis anos de idade estão em creches e na pré-escola), as prefeituras poderiam criar um programa de financiamento de escolas privadas para estes níveis de ensino, na medida em que construir mais prédios e infraestrutura física, contratar novos professores, etc., para criar creches pode ser impossível, dadas as restrições fiscais dos municípios.

Para uma escola já existente, o aumento de custo decorrente da adição de um aluno é relativamente pequeno. As instalações já estão prontas, o aluno adicional terá pouco efeito sobre a qualidade do ensino, a infraestrutura física da escola é pouco afetada pelo aluno adicional, etc. À medida que o número de novos alunos aceitos cresce, o custo por aluno adicional também aumenta. Afinal, para manter a qualidade do ensino será necessário aumentar o número de salas de aula, de professores, etc. Ou seja, o custo de cada aluno que é acrescentado à sala de aula aumenta com o número de alunos adicionais que a escola estará disposta a aceitar.

Se a prefeitura criar um programa que transfira uma determinada quantidade de recurso por aluno pobre aceito pela creche, como são escolas privadas, elas irão aceitar alunos se o custo adicional do aluno for igual ou menor que o valor da transferência. Em especial, a creche vai aceitar novos alunos até o ponto em que o custo adicional, que, como vimos, é crescente, for igual ao valor da transferência.

Seria uma forma relativamente barata de aumentar o número de alunos de famílias pobres em creches, com o mínimo de burocracia. Por outro lado, um programa como este irá aumentar o conjunto de creches que as famílias pobres poderiam escolher para colocar seus filhos. O resultado, no longo prazo, seria uma diminuição da desigualdade do estoque de capital humano entre as famílias e, portanto, na desigualdade de renda no País.

* PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE

ECONOMIA DA PUC/RIO, É ECONOMISTA CHEFE DA GENIAL INVESTIMENTOS

 

AS ARMADILHAS DA INTERNET E OS FOTÓGRAFOS NÃO NOS DEIXAM TRABALHAR

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