É preciso combater o colonialismo de dados
Giselle Beiguelman – Select

Ulises Mejias é professor associado da State University of New York
(SUNY), em Owego. Nascido no México, vive desde os anos 1990 nos Estados
Unidos. Autor, com Nick Couldry (London School of Economics and Political
Science) de The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life
and Appropriating It for Capitalism, é diretor do Institute for Global
Engagement, uma instituição acadêmica multidisciplinar voltada para a promoção
da diversidade e da diferença e para o interculturalismo. É também cofundador
da rede Tierra Común, uma rede de ativistas com foco na América Latina e no Sul
Global, que propõe intervenções para descolonizar os dados. De acordo com
Mejias, apesar de o colonialismo histórico e o dos dados serem muito distintos
no conteúdo e na forma, seu pressuposto é o mesmo: apropriar-se do cotidiano de
todos pela ideia de que a extração e a expropriação são processos naturais e
que não temos escolha, a não ser contribuir para essa expropriação.
seLecT: Comecemos nossa conversa pela questão da língua. Em nossa
correspondência, você comentou que seu “espanhol está um pouco atrofiado”.
Entre nós é famoso o verso “Minha língua é minha pátria”, de Fernando Pessoa,
popularizado pela canção de Caetano Veloso. A descolonização dos dados não
começaria pela linguagem?
Ulises Mejias: Realmente, a questão da linguagem pode nos ajudar a entender o
problema da colonização de dados. Se me permitem uma breve nota bibliográfica,
nasci no México, mas moro nos Estados Unidos há mais tempo do que vivi em meu
país natal. Falo inglês melhor do que espanhol e faço meu trabalho na língua
gringa. A minha língua não é a minha pátria porque, como imigrante, não sinto
que tenho uma pátria. Além disso, o espanhol e o português também são línguas
coloniais, portanto, falar essas línguas em vez de falar inglês não é
necessariamente um ato de descolonização, certo? Por isso acho que a fantasia
de podermos descolonizar nossas línguas é um pouco inútil. Primeiro, porque a
maioria de nós é mestiça e as línguas coloniais são de fato nossas línguas
nativas (eu gostaria muito de aprender Náhuatl, mas como mestiço não posso
fingir que é a minha língua nativa). Em segundo lugar, as línguas coloniais
podem ser muito úteis para expressar ideias e sentimentos descoloniais. Como
disse Audrey Lorde, as ferramentas do senhor podem ser usadas para desmontar a
casa do senhor. O mesmo acontece com os dados: são a nova linguagem colonial.
E, sim, você tem de criticar e analisar essa situação, mas também tem de
aprender a expressar ideias descoloniais usando essa nova linguagem. É
importante promover a internet em outros idiomas, mas, para mim, pessoalmente,
acho mais importante que todos falemos mais de um idioma, inclusive idiomas
que, para o bem ou para o mal, são efetivamente universais. Como o inglês ou a
linguagem dos dados, hoje. A descolonização também pode ocorrer nessas línguas,
se a fizermos de forma crítica.
Em The Costs of Connection, você e Nick Couldry argumentaram
que a descolonização dos dados passaria por outros sistemas de pensamento. As
matrizes indígenas nos permitem pensar sobre outros formatos algorítmicos?
Em última análise, a colonização de dados é uma tentativa de universalizar
uma ideia, a de que a extração e a expropriação são processos naturais e que
não temos escolha a não ser contribuir para essa expropriação, por meio de uma
abstração de nossas vidas, realizada cotidianamente pelos dados. Em nosso livro
definimos o colonialismo de dados como uma ordem emergente para a apropriação
da vida humana, de forma que dados possam ser continuamente extraídos dela com
fins lucrativos. Não estamos dizendo que o colonialismo histórico e o
colonialismo de dados são exatamente a mesma coisa. A forma e o conteúdo são
muito diferentes. Mas a função é a mesma, e essa função é a expropriação. A
questão é como se pode resistir a esta nova forma de expropriação, e dizemos no
livro que podemos aprender muito com os povos que resistem ao colonialismo e ao
capitalismo há 500 anos. Mas aqui é preciso esclarecer algumas coisas. Em
primeiro lugar, não estamos dizendo que resistir ao colonialismo de dados nos
coloca no mesmo nível que os povos indígenas que sofreram um nível de violência
inimaginável durante a história do colonialismo. Como diria Philip J. Deloria,
não estamos “fingindo ser índios”, porque isso seria grosseiramente
desrespeitoso. Sim, o colonialismo de dados nos torna sujeitos coloniais
subalternos, mas mais do que nativos, creio que agora somos informantes nativos
que, como Gayatri Chakravorty Spivak diria, são aqueles que desempenharam o
papel de fornecer informações para que o sujeito etnográfico europeu pudesse
“ler” ou compreender as culturas que estavam colonizando. Como La Malinche,
traduzimos nossas vidas para a linguagem dos dados para que as empresas possam
nos entender e usar esses dados para nos colonizar. Em outras palavras, não
somos vítimas, mas participantes ativos neste processo. O segundo ponto é que a
descolonização é um projeto transmoderno, segundo Enrique Dussel. Não sou um
especialista em modelos indígenas de pensamento coletivo e meus colegas teriam
de me educar a esse respeito. Mas acho que esses modelos, mesmo que nos
inspirem, não serão suficientes para resistir ao colonialismo de dados. Teremos
de misturá-los com outros modelos, como o feminismo, o marxismo, a teoria
crítica da raça etc., para gerar uma playlist completamente
transmoderna. Os problemas transmodernos requerem soluções transmodernas. Essas
soluções podem incluir modelos de pensamento indígenas, sim, mas também devem
incluir muitas outras coisas.
Nessa mesma obra, vocês demonstram o surgimento de um novo Império da
Nuvem protagonizado pelos Estados Unidos e a China. Estamos vivendo na era dos
Estados plataforma? Uso aqui uma expressão de Benjamin Bratton em The
Stack: On Software and the Sovereignty. Que posição ocupam países como o
Brasil nesta nova dinâmica do capital?
O papel de países como o Brasil vai ser muito importante. No momento, as
opções são entre o Caríbdis do Vale do Silício e a Cila do Partido Comunista
Chinês. Mas não temos de escolher entre esses dois monstros. Os países do Sul
Global têm de formar um novo Movimento de Países Não Alinhados, para gerar
alternativas ao colonialismo de dados. Essas alternativas terão de vir da
sociedade civil, pois é claro que a maioria dos nossos atuais governos está no
caminho oposto, rumo ao tecnototalitarismo e ao populismo. Em uma publicação na
Al-Jazeera, argumentei que os governos do Sul Global poderiam nacionalizar
dados, obrigando empresas como Facebook e Google a pagarem uma taxa pelo uso de
dados gerados por usuários do Sul. Mas nenhum governo atual consideraria tal
coisa no momento. Temos um longo caminho a percorrer. Mas é preciso levar em
consideração que, se esses problemas fazem parte de uma história de mais de 500
anos, não seremos capazes de resolvê-los em alguns dias.
Qual é o papel das artes neste sistema de nova colonialidade por meio
dos dados?
As respostas
culturais e artísticas ao colonialismo transformaram profundamente nossas
sociedades e continuarão a fazê-lo. Quando não se podia resistir ao
colonialismo com o corpo, podia-se resistir com a mente, e estamos à beira de
um novo movimento cultural de resistência ao colonialismo de dados. Essas
formas de resistência sempre estiveram lá, mas têm sido o domínio de grupos
excêntricos ou minorias, como os hackers. A pandemia global está
ajudando essas alternativas a se tornarem mais corriqueiras. Mas não será fácil
e sempre haverá uma reação contra a resistência. Além do mais, a arte também
pode servir a propósitos coloniais ou comerciais.
No mundo pós-pandêmico, quais cenários de colonialismo ou descolonização
são anunciados?
O que mais me
preocupa é que as medidas de “emergência” que supostamente foram tomadas para
combater a pandemia se tornem mais permanentes. Disseram-nos que os dados eram
necessários para combater o Sars-cov-2 e, claro, a epidemiologia precisa ser
baseada em resultados empíricos. Mas, com essa desculpa, foram introduzidas
várias tecnologias de vigilância e análise de dados que minam a liberdade do
indivíduo e os princípios de uma sociedade aberta. Voltar no tempo vai ser
difícil. Vimos isso depois dos atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos:
a pretexto de segurança nacional foi institucionalizado todo um “teatro” de
segurança que não nos deixava mais seguros e, pelo contrário, foi utilizado
para perseguir alguns membros da sociedade, muçulmanos em particular. Vinte
anos depois, continuamos sofrendo com essa herança, e temo que o mesmo aconteça
agora. Em vez dos muçulmanos, o novo inimigo será o imigrante, pois também há
muitas histórias de como os dados têm sido usados como ferramentas de
higienismo colonial para definir quem está dentro e quem é a ameaça infecciosa
de fora. Por isso é preciso combater o colonialismo de dados.