Sai Celso de Mello, entra Kassio Nunes: qual o
impacto da troca para o STF?

Com a aposentadoria ministro Celso de Mello na próxima terça-feira
(13/10), o Supremo Tribunal Federal (STF) ficará sem aquele que tem sido o
principal contraponto ao presidente Jair Bolsonaro dentro da Corte.
© Ascom/TRF1 Presidente Bolsonaro
tem manifestado confiança de que seu indicado, o desembargador Kassio Nunes,
será um forte aliado no STF
Em junho, o decano (ministro mais antigo do Tribunal) disse ser
"inconcebível que ainda sobreviva no íntimo do aparelho de Estado
brasileiro um resíduo de forte autoritarismo" ao responder as ameaças do
presidente e de seus ministros de que o governo poderia descumprir decisões do
Supremo.
A expectativa de Bolsonaro é de grande mudança nesse aspecto — o
presidente tem manifestado confiança de que seu indicado para substituir o
atual decano, o desembargador Kassio Nunes, será um forte aliado no STF:
"ele está 100% alinhado comigo", asseverou no domingo (04/10), ao
defender seu escolhido de críticas no Facebook.
No entanto, o passado mostra que os indicados ao Supremo muitas vezes
procuram se desvincular do presidente que o escolheu, para firmar uma atuação
independente, observa o professor de Direito Constitucional da FGV-SP Roberto
Dias.
"Foi o caso do ministro Joaquim Barbosa. Nomeado pelo então
presidente Lula, foi considerado depois pelos próprios petistas como o grande
algoz do partido no julgamento do Mensalão", lembra ele.
Essa autonomia é possível porque o ministro do STF, após sua posse, não
depende mais do apoio presidencial — e só pode pode ser destituído do cargo com
um processo de impeachment no Senado, algo que nunca ocorreu no Brasil.
Embora não seja garantido que o novo ministro atuará 100% de acordo com
os desejos de Bolsonaro, os juristas ouvidos pela BBC News Brasil consideram
que a aposentadoria de Celso de Mello deve deixar um vácuo de liderança no
Supremo em um momento que a Corte tem servido de contraponto à gestão
Bolsonaro.
Calouro
Mesmo se quiser se desvincular de Bolsonaro após sua esperada posse,
Nunes não teria condições de exercer esse papel justamente por ser um novato na
Corte.
Já os dois ministros mais experientes da Corte — Marco Aurélio, que ser
tornará o novo decano até sua aposentadoria em julho de 2021, e Gilmar Mendes,
que o substituirá em seguida no posto de ministro mais antigo — não têm a
descrição e o perfil agregador de Celso de Mello para liderar a Corte, nota o
professor Roberto Dias.
"Ao longo dos anos, Celso de Mello construiu uma sólida reputação
como juiz ao associar decisões bem fundamentadas e um comportamento discreto.
Assim, a primeira mudança no equilíbrio de forças que sua saída provoca é
justamente a perda, pela Corte, dessa figura de autoridade moral que, ao longo
do tempo, ele construiu", acredita também Jane Reis, professora de Direito
Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
"Nos momentos delicados, de atritos entre os Poderes, a coerência
entre a sua defesa da autonomia do Tribunal e seu comportamento público
contribuiu decisivamente para reforçar a autoridade das decisões da
Corte", reforça ela.
© Lula Marques Saída de Celso de
Mello abrirá vaga na turma do STF que costuma julgar processos da Lava Jato
Para além desse impacto institucional que a troca de ministros trará
para o Supremo, entenda a seguir como a mudança pode (ou não) influenciar o
rumo de julgamentos importantes aguardados no STF.
A investigação contra Bolsonaro
Pelas regras do STF, Kassio Nunes, caso tenha sua indicação aprovada
pelo Senado, deve herdar todos os processos e investigações hoje relatados por
Celso de Mello. Entre esses casos está o inquérito aberto pela
Procuradoria-Geral da República para investigar se Bolsonaro atuou para
interferir na Polícia Federal, conforme disse o ex-ministro da Justiça, Sergio
Moro, ao se demitir do cargo em abril.
É possível, porém, que o presidente do STF, Luiz Fux, determine a
redistribuição do caso para um dos outros dez ministros da Corte, logo após a
aposentadoria de Mello, antes que Nunes tome posse.
A medida poderia ser adotada para evitar que o novo ministro já chegue
ao Supremo enfrentando desconfianças sobre sua atuação em uma investigação
contra aquele que o indicou à Corte.
Caso Fux faça isso, estará seguindo o precedente da ministra Cármen
Lúcia — quando o antigo relator da Lava Jato, o ministro Teori Zavascki,
faleceu, a então presidente do STF determinou que a relatoria da operação fosse
redistribuída, evitando assim que os casos ficassem nas mãos de Alexandre de
Moraes, ministro indicado pelo ex-presidente Michel Temer, que era investigado
por corrupção. Com isso, o ministro Edson Fachin foi sorteado o novo relator da
Lava Jato.
© PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA Ministro
do STF, Dias Toffoli, buscou relação "harmoniosa" com o presidente
Jair Bolsonaro
"Os ministros (que chegam à Corte) têm tido um certo distanciamento
(do presidente que o indicou) após a nomeação, mas não sabemos se isso vai se
repetir nos próximos anos. Por isso, o mais prudente seria que houvesse a
redistribuição do inquérito contra o presidente Bolsonaro, para evitar que esse
problema (de desconfiança sobre o novo ministro) sequer fosse aventado",
defende Roberto Dias, da FGV.
O presidente do STF terá algum intervalo entre a aposentadoria de Mello
e a provável posse de Nunes para redistribuir o inquérito porque o indicado
ainda precisa ser sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do
Senado e aprovado pelos senadores em votação secreta no plenário da Casa.
Embora a aprovação do indicado seja dada como certa nos bastidores do
Senado, a presidente da CCJ, Simone Tebet (MDB-MS), disse que "seria
desrespeitoso" realizar sua sabatina antes da aposentadoria do decano.
Celso de Mello tem conduzido com rigor a investigação contra Bolsonaro. Na
quinta-feira (08/10), última sessão do plenário do Supremo com participação do
decano, a Corte decidirá se o presidente terá que prestar depoimento
presencialmente, como quer o relator, ou se poderá fazer por escrito.
Futuro da Lava Jato e de HC do Lula
A aposentadoria de Celso de Mello abrirá uma vaga na Segunda Turma do
STF, colegiado que julga a maioria dos casos da Lava Jato.
O decano tem sido o voto decisivo na maioria desses julgamentos, ora
compondo maioria com os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia, de perfil mais
rigoroso na aplicação da lei penal, ora ficando ao lado dos ministros Gilmar
Mendes e Ricardo Lewandowski, que tem atuação mais garantista (dão maior peso
aos direitos dos réus em seus votos).
Por isso, a forma como seu sucessor na Segunda Turma atuará será
fundamental para o equilíbrio de forças no colegiado.
Caso Nunes seja confirmado ministro, ele entrará no lugar do decano, a
menos que um dos ministros da Primeira Turma peça transferência para a vaga
aberta antes de sua posse.
© imagemABR Ministro Luiz Fux
pode redistribuir processos de Celso de Mello quando este se aposentar
Os ministros mais antigos têm prioridade no pedido de mudança de Turma,
mas Marco Aurélio de Mello, o primeiro da lista na Primeira Turma, é crítico
dessa dança das cadeiras. Por isso, há uma expectativa de que Dias Toffoli, o
segundo mais antigo da Primeira Turma, possa pedir transferência para a
Segunda, o que desequilibraria as forças dentro do colegiado a favor do grupo
mais garantista.
Na hipótese de isso não ocorrer e Kassio Nunes se tornar o quinto
integrante da Turma que julga os casos da Lava Jato, ainda não está totalmente
claro qual pode ser o impacto para o balanço de forças porque ele não atuou em
muitos processos penais desde que se tornou desembargador do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região (TRF-1).
Porém, o fato de ele ter conquistado o apoio de Toffoli e Mendes na sua
indicação para o Supremo é uma sinalização de que ele pode pender para o lado
menos punitivista.
Para o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido
como Kakay, ainda não é possível dizer que Nunes seja um
"garantista".
"Gosto do Kassio, acho uma pessoa correta, trabalhador, discreto. É
um juiz com perfil humanista, eu diria. Não foi muito testado (julgou poucos
processos) na área criminal para dizer se é um juiz garantista, mas é um juiz
que eu respeito e que tem uma boa e sólida formação jurídica", disse Kakay
à BBC News Brasil.
Um dos mais rumorosos casos que aguardam julgamento da Segunda Turma é
o habeas corpus apresentado pelo ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva que pede que seja considerada suspeita a atuação de Sergio Moro
como magistrado nos casos contra o petista.
Caso o recurso de Lula seja aceito, suas condenações pelo ex-juiz serão
anuladas, o que devolveria ao ex-presidente seus direitos políticos e a
possibilidade de disputar eleições.
Interesses de Flávio Bolsonaro
O sucessor de Celso de Mello também poderá atuar em casos de interesse
do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente que vem
sendo apontado como um dos que defendeu a indicação de Nunes para a vaga.
Se ele entrar na Segunda Turma, participará do julgamento de um recurso
do Ministério Público do Rio de Janeiro que contesta o foro privilegiado
concedido a Flávio Bolsonaro pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ)
na investigação que apura suposto esquema de desvio de recurso do antigo
gabinete de deputado estadual do atual senador.
O tribunal entendeu que ele ainda teria direito ao foro do seu antigo
cargo, o que passou o caso da primeira instância judicial para o próprio TJ-RJ.
Esse recurso, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, ainda não tem data
para julgamento na Turma.
Além disso, o novo ministro deve herdar do decano a relatoria de uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta pela Rede que também
questiona o foro especial concedido ao filho do presidente pelo TJ-RJ.
Novo voto conservador?
Bolsonaro escolheu Kassio Nunes convencido de que ele manterá em suas
decisões o alinhamento à postura conservadora. Ao responder crítica a sua
escolha em comentário no Facebook, o presidente manifestou confiança de que ele
se posicionará contra a descriminalização do aborto, caso a ação proposta pelo
PSOL (ADPF 442) vá a julgamento.
Não há, porém, previsão de que o caso entre em pauta nos próximos dois
anos, período em que Fux preside a Corte.
Bolsonaro destacou também em seu comentário que Nunes tem posse de arma,
incluindo ele no grupo CAC, sigla que se refere a colecionadores, atiradores
desportivos e caçadores.
"Kassio é contra o aborto (votará contra a ADPF 442 caso seja
pautada). É pró armas nos limites da lei (ele é CAC). Defende a família e as
pautas econômicas (quem duvida que aguarde as votações). Resumindo, ele está
100% alinhado comigo, por isso a ferrenha campanha para desconstruí-lo",
escreveu Bolsonaro na rede social.
© Ascom/TRF1 Bolsonaro escolheu
Kassio Nunes convencido de que ele votará no Supremo alinhado a sua postura
conservadora
Se o posicionamento aguardado pelo presidente se confirmar, a troca de
ministro significará a entrada de um voto mais conservador na Corte.
As decisões progressistas, porém, têm sido aprovadas com grande vantagem
de votos ou por unanimidade, o que indica que, por enquanto, o eventual voto
contrário de Nunes não deve ser suficiente para mudar o rumo de decisões nesse
campo.
No ano passado, por exemplo, o STF decidiu por 8 a 3 enquadrar a
homofobia e a transfobia como crimes de racismo. Apenas Marco Aurélio, Toffoli
e Lewandowski não acompanharam o voto do decano, relator da ação.