Fim da Lava Jato? 'Oposição
do governo' e outros 3 fatores que explicam crise
A simbólica saída do procurador Deltan Dallagnol da força-tarefa da Lava
Jato em Curitiba e o pedido de demissão coletiva de procuradores do grupo em
São Paulo são os dois mais recentes episódios da crise na Lava Jato.
© Reuters Aras
esteve com Bolsonaro seis vezes desde que assumiu
Se o futuro da investigação iniciada em 2014 já estava em discussão nos
últimos meses, as avaliações de que ela de fato está chegando ao fim ganharam
força na última semana.
Quais são os fatores que explicam esse declínio? Para responder a essa
pergunta, a BBC News Brasil entrevistou cinco pesquisadores, no Brasil e no
exterior, que estudam o combate à corrupção há anos.
Uma parte da explicação tem a ver com características relacionadas à
operação em si: desde os elogios ao sucesso alcançado a partir das
investigações até as críticas a métodos considerados controversos e ao fato de
a operação ter ficado personalizada nas figuras do ex-juiz Sergio Moro e de
Dallagnol.
Mas não é só isso. O enfraquecimento da Lava Jato neste momento também é
fruto, na avaliação de especialistas, da oposição por parte do governo ao
trabalho de combate à corrupção, além da redução do apoio popular à operação.
1. Oposição do governo
O pesquisador americano Matthew Taylor, professor da American
University, em Washington (EUA), descreve que hoje há um contexto de
"resistência contra a Lava Jato" por parte do procurador-geral da
República, Augusto Aras, de Jair Bolsonaro e de "Brasília de forma mais
ampla".
Nesse cenário, diz Taylor, a saída de Dallagnol e a perda de força de
equipes associadas de investigação "parecem significar o fim da Lava Jato,
pelo menos da forma que foi conhecida nos últimos seis anos".
Autor de diversos estudos sobre corrupção e democracia no Brasil, ele
diz que houve um "enfraquecimento intencional e politização da
fiscalização" em órgãos como o Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf), a Controladoria-Geral da União e a Polícia Federal.
Outro fator que revela a intenção de frear medidas anticorrupção em
Brasília, segundo Taylor, é o que ele chama de "batalha árdua" que o
ex-ministro Sergio Moro enfrentou.
© RAFAEL MARCHANTE/REUTERS Moro
deixou o Ministério da Justiça acusando Bolsonaro de tentar interferir na
Polícia Federal
"Independentemente do que se pense sobre a natureza partidária do
trabalho de Moro como juiz, o fato de ele ter enfrentado uma batalha tão árdua
para levar adiante reformas anticorrupção e da justiça criminal enquanto estava
no Ministério da Justiça também sugere que há uma oposição profunda aos
esforços anticorrupção em todos os três Poderes do governo em Brasília."
Ele diz que parte dessa oposição é bem justificada pelo receio de dar a
promotores poderosos instrumentos que poderiam levar ao abuso de poder. Outra
parte, no entanto, ele diz que "é claramente autoproteção por políticos
que têm a perder se promotores e tribunais se tornarem mais eficazes no combate
à corrupção e a ilegalidades no financiamento de campanhas".
Um estudo de Taylor ainda inédito mostra que, de quase 1.500 detentores
de cargos federais desde a virada do século, quase 30% estão sendo investigados
ou indiciados por crimes, incluindo corrupção.
Às vésperas de deixar a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), o
ministro Dias Toffoli fez um balanço de sua gestão na sexta-feira (04/09) no
qual declarou que "não haveria a Lava Jato se não fosse o STF".
O Supremo tomou decisões que contrariam a Lava Jato, como a paralisação
de investigações baseadas em relatórios do Coaf e da Receita, após pedido do
senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente. O STF também abriu o caminho
para a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao derrubar a
possibilidade de prisão em segunda instância, medida considerada um dos pilares
da Operação Lava Jato - nesse caso, o voto de desempate foi o do próprio
Toffoli.
Questionado se decisões do Supremo teriam levado a esvaziamento da Lava
Jato, Toffoli respondeu que "o STF, quando decide, o faz porque há abuso,
porque aquilo foi contra a Constituição Federal, não faz contra o combate à
corrupção."
"Todas as leis que hoje existem, leis de organizações criminosas, a
nova lei de lavagem de dinheiro, de colaboração premiada, todas essas leis eu
participei da elaboração delas no seu nascedouro. Não existiria Lava Jato, não
existiria nada desses combates necessários à corrupção se não (houvesse) essas
leis. Tenho orgulho de ter participado de todas elas", disse.
Em outro momento Toffoli disse que "temos de ter consciência que
temos de trabalhar com instituições, e não pessoas ou instituições
paralelas".
Professor do Departamento de Ciências Políticas da USP, Rogério Arantes
diz que a escolha de Aras por Bolsonaro, fora da lista-tríplice, foi "uma
das medidas mais duras que o governo Bolsonaro poderia ter tomado contra a
operação". Foi a primeira vez desde 2003 que um presidente ignorou a
lista, que é elaborada por voto pelos próprios procuradores, para nomear o PGR.
Um dos mais recentes episódios em que Aras demonstrou publicamente
insatisfação com a Lava Jato ocorreu em agosto. Ele declarou
que era necessário "corrigir rumos" no MPF, de modo que o
"lavajatismo" deixe de existir. "Lavajatismo há de passar",
disse.
"A correção de rumos não significa redução do empenho no combate à
corrupção. Contrariamente a isso, o que nós temos aqui na casa é o pensamento
de buscar fortalecer a investigação científica e, acima de tudo, visando
respeitar direitos e garantias fundamentais", defendeu Aras.
Se "processualmente falando" a Lava Jato está longe de acabar
devido principalmente aos casos de políticos com foro privilegiado que subiram
para o Supremo Tribunal Federal (STF), Rogério Arantes diz que
"politicamente, é o fim da Lava Jato".
Além de apontar que o governo tem tomado medidas para
"desaparelhar" órgãos de investigação, Arantes destaca a aproximação
do governo Bolsonaro com políticos do centrão.
"Embora o PT tenha sido o grande alvo, é bom lembrar que veio junto
a ideia de que o centrão fisiológico da política brasileira precisava ser
abastecido pela corrupção na Petrobras para que o PT pudesse governar",
diz.
"E o que estamos assistindo, sobretudo este ano, é à ressurreição
desse centrão pelas mãos do próprio presidente, que não tem interesse que a
Lava Jato prossiga e atinja esse núcleo político que pode desestabilizar o
pouco que o governo conseguiu de estabilidade política até agora.
2. Redução do apoio popular
Professor da Escola de Relações Públicas e Internacionais da
Universidade de Columbia, em Nova York, Paul Lagunes é enfático ao dizer que a
única forma de defesa contra intervenções em investigações é o apoio da
população.
Lagunes é um dos organizadores do livro Corruption and the Lava
Jato Scandal in Latin America ("Corrupção e o escândalo Lava Jato
na América Latina", em tradução livre).
E como está o apoio popular à Lava Jato hoje? "Não é como já foi um
dia", ele diz. "As pessoas já protestaram amplamente para apoiar o
trabalho da Lava Jato".
"É compreensível que depois de todos esses anos o público esteja
cansado e entendo que houve muitas polêmicas associadas à Lava Jato. Mesmo
assim, de forma geral, espero que o público apoie promotores que estão
trabalhando pesado para controlar a corrupção no Brasil."
Na avaliação dele, o legado da Lava Jato é positivo. "A impunidade
no Brasil hoje não está onde estava antes de 2014. Eu diria que o trabalho de
aplicação da lei é um dos principais passos para garantir que um país atinja um
estado de maior integridade e honestidade no governo."
Sobre o apoio do público, Matthew Taylor diz que a atenção dos
brasileiros se voltou para outros assuntos, como a pandemia e a recessão.
"E as pessoas estão cansadas de convulsões", diz o pesquisador
americano.
Fiona Macaulay, professora no Departamento de Estudos pela Paz, na
Universidade de Bradford, na Inglaterra, também vê uma queda no interesse do
público em geral pelo tema.
"A narrativa de que há um governo que não é ligado à velha política
— que sabemos que não tem nada disso — ainda vale para algumas pessoas. As
pessoas que mais foram entusiastas da campanha Lava Jato ainda tentam entender
o cenário atual."
Sem apoio popular e também sem apoio do governo Bolsonaro — que ela diz
não ter interesse pessoal em medidas anticorrupção —, Macaulay diz que "a
Lava Jato já está em decadência e não vai sobreviver ao cenário atual".
3. Toda operação tem seu fim
O professor Vinicius de Carvalho, diretor do Brazil Institute, da
Universidade King's College London, lembra que, por definição, operações não
devem existir para sempre.
"Não existe operação ad aeternum. Não é possível manter o país em
estado de operação. Uma operação tem objetivo muito claro e ao fim da execução
o objetivo deve ser avaliado — se foi cumprido, ótimo. Se não, temos que ver o
que aconteceu. No momento em que a Lava Jato vira uma instituição, a tendência
é que, como todas as instituições, ela comece a se repetir, sofrer do mal que
qualquer instituição sofre, que é a transformação em funcionamento mais
maquinal do que dinâmico", diz.
E Rogério Arantes, da USP, embora tenha críticas à operação, diz que,
por um lado, a "Lava Jato acabou pelos seu méritos, não pelos
fracassos". "Ela alcançou resultados expressivos", diz.
"Não existe a ideia de uma Lava Jato permanente. A Lava Jato
dedicada à corrupção na Petrobras exauriu, acabou. Ela fez o que tinha que ser
feito. Revelou esquemas, pegou desde o diretor de abastecimento até o
presidente da República."
O Ministério Público Federal define a Lava Jato, iniciada em março de
2014, como "a maior iniciativa de combate a corrupção e lavagem de
dinheiro da história do Brasil". Além dos desvios nos contratos envolvendo
a Petrobras, a investigação se expandiu para outras frentes em outros órgãos
federais e em contratos irregulares celebrados com governos estaduais.
4. Regras do jogo
Fiona Macaulay diz que Lava Jato "mudou o jogo para sempre" na
política do país, mas diz que características como "a falta de aderência
rígida às regras do jogo e o personalismo" tornaram mais fácil
enfraquecê-la.
"Por causa desses fatores, foi mais fácil depois da eleição do
Bolsonaro deslegitimar ou enfraquecer os ímpetos, porque não estavam centrados
necessariamente nas instituições, mas em alguns atores dentro daquelas
instituições."
Principal figura associada à Lava Jato, Moro largou a magistratura para
assumir o Ministério da Justiça de Bolsonaro. Em abril deste ano, deixou a
pasta acusando o presidente de tentar interferir na Polícia Federal.
Agora, o procurador símbolo da Lava Jato, Dallagnol, que enfrentava um
desgaste no cargo, deixou o comando da força-tarefa em Curitiba. Ele informou
que vai se dedicar a questões de saúde da filha, de menos de dois anos.
"Há algumas poucas semanas eu e minha esposa identificamos sinais que nos
preocuparam em nossa bebezinha", disse.
A atuação de Dallagnol foi
colocada em xeque depois da divulgação, pelo Intercept Brasil,
de mensagens atribuídas a ele e a outras autoridades que levantaram suspeitas
sobre a legalidade da condução das investigações. As conversas sugeriam que
Dallagnol teria mantido uma proximidade indevida com Moro. Na época, eles não
refutaram e nem reconheceram totalmente o conteúdo das mensagens, mas
desqualificam as revelações argumentando que o material foi obtido ilegalmente.
Dallagnol já foi alvo de várias representações no Conselho Nacional no
Ministério Público (CNMP). Uma delas é relativa à polêmica em torno da criação
de uma fundação privada pelos integrantes da Operação Lava-Jato para gerir R$
2,5 bilhões da Petrobras.
Arantes, da USP, diz que é preciso respeitar a fala do procurador em que
abre intimidade da família para explicar sua saída, mas diz que "se não
fosse contexto em que tivesse acuado, ele talvez não tomasse a mesma
decisão".
Apontando que Dallagnol foi levado ao CNMP "com denúncias muito
contundentes", Arantes diz que o procurador "cedeu os anéis para não
entregar os dedos". "Ele deixou a linha de frente para que processos
disciplinares contra ele possam andar com mais tranquilidade e menos
exposição."
Lagunes, da Universidade de Columbia, diz entender que Dallagnol é uma
figura controversa, mas diz que é impressionante o trabalho que ele conseguiu
fazer como chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.
Sobre Moro, Lagunes diz que ingressar no governo Bolsonaro alimentou a
tese de que o trabalho como juiz tinha motivação política, mas aponta que
acredita que o ex-juiz apostou que fazer parte do governo lhe permitiria tocar
uma agenda anticorrupção de uma forma que ele não conseguiria como juiz.
Vinicius de Carvalho, do King's College, diz que um dos motivos pelos
quais a Lava Jato está "recebendo crítica de todo lado" tem a ver com
a "falácia messiânica de que existe um salvador — seja uma pessoa ou uma
instituição".
"Começamos a falar da Lava Jato como se fosse uma instituição
dentro da instituição. À Lava jato, incorporou-se esse caráter redentor, essa
ideia de que veio resgatar o Brasil de toda e qualquer corrupção política. É
algo que não sei se nasceu dentro da operação em si ou se foi projetada sobre
ela pela população ou pela maneira como a imprensa reportava — ou talvez seja
resultado de tudo isso em conjunto e dessa tendência no Brasil de buscar o
redentor do país", diz.
"Isso é prejudicial como um todo porque o cidadão retira de si a
responsabilidade transformadora".