Queimadas deixam marcas
profundas na Amazônia
Martin Kuebler (md)
Vastas áreas foram destruídas por desmatamento e fogo nos últimos anos,
enfraquecendo o solo e até mesmo a vegetação que resistiu às chamas.
Especialistas preveem que 2020 terá novos recordes de destruição ambiental.
© picture-alliance/NurPhoto/G. Basso Muitas
árvores maiores que sobrevivem ao fogo graças ao ambiente úmido acabam
sucumbindo ao trauma
O ano de 2020 está se configurando como um novo período destrutivo para
a Floresta Amazônica no Brasil. O desmatamento aumentou significativamente, de
acordo com observadores. E muitos especialistas temem que a região possa ver
uma repetição dos destrutivos incêndios florestais de agosto e setembro do ano
passado.
Dados de satélite divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe) em 1º de agosto mostraram mais de 6.800 incêndios na região
amazônica em julho, um aumento de 28% em relação ao mesmo mês do ano passado. E
ainda é cedo – agosto é geralmente considerado o início da temporada de
incêndios, que normalmente ocorrem durante os meses mais secos. Mais de 10 mil
incêndios foram registrados nos primeiros dez dias deste mês, um aumento de 17%
em relação ao mesmo período de 2019, segundo o Inpe.
Veja o Especial da DW Brasil sobre a Amazônia
Desmatamento do tamanho do Líbano
A área desmatada no ano passado na maior floresta tropical do mundo –
60% da qual está no Brasil – foi estimada em 10 mil quilômetros quadrados,
correspondente aproximadamente ao tamanho do Líbano. É o nível mais alto desde
2008, segundo o Inpe. O aumento do desmatamento traz um risco maior de
incêndios florestais, já que muito do fogo que devastou a floresta tropical no
ano passado se espalhou a partir de terras que estavam sendo queimadas para
mineração ilegal, agricultura e pecuária.
O presidente Jair Bolsonaro - que repetidamente defendeu que mais áreas
da região amazônica fossem desmatadas para o desenvolvimento econômico –
contestou os dados recentes de incêndios, dizendo que "essa história que a
Amazônia arde em fogo é uma mentira" em um discurso em 11 de agosto deste
ano, durante a 2ª Cúpula Presidencial do Pacto de Letícia, grupo de países da
região amazônica formado no ano passado para proteger a floresta tropical.
© picture-alliance/Mary Evans Picture
Library/M. Carwardine Paisagem aérea pode enganar. Um incêndio florestal
típico queima a vegetação sob a copa principal da floresta
Bolsonaro convidou embaixadores e representantes de países a sobrevoarem
a região entre Manaus e Boa Vista, uma distância de cerca de 750 quilômetros.
"Eles não acharão nenhum foco de incêndio, nem um quarto de hectare
desmatado", disse.
Embora essas florestas ainda possam parecer intocadas quando vistas de
cima, a paisagem verde vista de um avião ou satélite pode ser enganosa. Um
incêndio florestal típico queima no sub-bosque – a vegetação que cresce sob a
copa principal da floresta – de uma floresta tropical virgem, podendo
exterminar pequenos arbustos, plantas e entre 40% a 50% de todas as árvores.
“Uma parte considerável da Floresta Amazônica foi degradada consecutivamente
e é invisível aos nossos olhos”, diz Ane Alencar, diretora de ciência do
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), uma organização não
governamental brasileira. "Na verdade, a qualidade dessas florestas está
degradada por causa desses incêndios."
Quando grande parte da vegetação rasteira e das árvores menores é
eliminada, fica difícil manter o microclima úmido do sub-bosque, que ajuda a
proteger as florestas tropicais dos incêndios. Esses microclimas já estão
sofrendo, com a temperatura média na bacia amazônica subindo pelo menos 0,5
grau Celsius desde 1980, de acordo com dados climáticos da Agência dos Estados
Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). A estação seca tornou-se
mais longa, e as secas severas agora são mais frequentes, com três relatadas
desde 2005.
Recuperação
O dano também não termina com o incêndio inicial. Árvores maiores, que
podem ser danificadas em um incêndio, mas sobrevivem graças ao ambiente úmido,
podem finalmente sucumbir ao trauma anos depois.
"Inicialmente, são as pequenas árvores que morrem, porque são mais
vulneráveis ao estresse térmico, mas com o tempo são as árvores maiores que
morrem e caem, levando consigo muitas outras árvores", afirma Jos Barlow,
professor britânico de ciências da conservação que trabalha no Brasil desde
1998. "Isso abre lacunas adicionais no dossel florestal, permitindo que a
luz solar alcance o sub-bosque e o seque ainda mais."
© Reuters A extração ilegal de
madeira, mineração e outras atividades estão constantemente corroendo as bordas
da floresta
A recuperação de redes micorrízicas – sistemas subterrâneos de fungos do
solo que auxiliam as árvores na troca de nutrientes e água – após um incêndio
florestal ainda não está clara e é objeto de pesquisas, embora se saiba que a
camada superior de raízes muito finas também sofre no incêndio inicial. Alguns
estudos, incluindo um artigo de 2017 na publicação Fire Ecology,
sugeriram que a "resiliência dos fungos do solo provavelmente contribui
para a rápida recuperação geral do ecossistema após o fogo." Para os
ecossistemas florestais, no entanto, "rápido" ainda pode significar,
no mínimo, várias décadas, de acordo com um artigo de 2019 na revista Science
Advances.
Outro perigo, conforme Barlow, é que cada vez mais incêndios estão
reacendendo áreas já danificadas pelo fogo, particularmente ao longo das
margens da floresta tropical, perto de novas estradas, clareiras e pastagens,
tanto legais como ilegais. Isso pode mudar permanentemente a paisagem.
"Se você tem incêndios recorrentes de duas ou três queimadas, então
você entra em um ecossistema alternativo onde quase não há árvores grandes,
dominado por espécies arbustivas e bambu e gramíneas", explica Barlow.
Fuligem afeta padrões de chuva
Paulo Massoca, pesquisador brasileiro e doutorando na Universidade de
Indiana Bloomington, que estuda a regeneração da floresta tropical, afirma que
os incêndios recorrentes atuam como uma espécie de "filtro",
eliminando gradualmente as plantas que não estão adaptadas a incêndios
frequentes e selecionando as espécies mais resistentes, deixando "uma
fração de todo o conjunto de plantas da região".
“Após repetidas queimadas, os solos empobrecem, as plantas crescem mais
lentamente, e cipós e outras plantas não lenhosas, além das árvores, se
instalam na área", diz o pesquisador, acrescentando que essa ampla mudança
no ecossistema "retarda e prejudica a capacidade das florestas secundárias
danificadas por repetidos incêndios em voltar a crescer e acumular
carbono".
Também não ajuda o fato de que o solo amazônico, já pobre, perde ainda
mais nutrientes valiosos após um incêndio. Em uma floresta tropical, os
nutrientes fornecidos pela matéria orgânica morta são rapidamente reabsorvidos
pelas plantas vivas, deixando pouco no solo.
“As queimadas matam as plantas que sustentam o solo e eliminam o solo
que sustenta as plantas”, frisa Massoca. "Os incêndios liberam
imediatamente os nutrientes e o carbono armazenados na camada superficial do
solo, que ou são lavados após a primeira chuva ou liberados na atmosfera."
"As partículas de fuligem suspensas nas vastas nuvens de fumaça
então se espalham sobre florestas saudáveis, potencialmente afetando a formação
de nuvens e os padrões de chuva", explica Divino Vicente Silverio, biólogo
da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).
Em uma entrevista de agosto de 2019 para a revista Nature,
ele disse que essa carga de aerossol atmosférico pode levar a mudanças na forma
como as florestas fazem o ciclo da água, criando condições mais secas e
perturbando os padrões climáticos na Amazônia e de regiões ainda mais longes.
© picture-alliance/F. Lanting Cada
vez mais trechos de florestas são desmatados para dar lugar a plantações e gado
"Não há incêndios naturais na
Amazônia"
Quase todos os incêndios na Amazônia podem estar ligados à atividade
humana. As árvores derrubadas para dar lugar ao desenvolvimento econômico são
cortadas, deixadas para secar e depois incendiadas. Incêndios adicionais são
feitos para eliminar ervas daninhas das pastagens existentes e limpar áreas
agrícolas antigas. E, como aconteceu em 2019, esses incêndios podem se espalhar
para as florestas vizinhas. "Não há incêndios naturais na Amazônia",
diz Ane Alencar, do Ipam. "Mesmo que esteja muito, muito seco, é preciso
que alguém risque o fósforo."
Diante das críticas sobre a resposta do governo aos incêndios de 2019,
Bolsonaro proibiu a prática de queimadas agrícolas na Floresta Amazônica e no
Pantanal até novembro, fim da estação seca, e enviou tropas para evitar o
desmatamento ilegal.
Em seu discurso na reunião do Pacto de Letícia na semana passada, ele
disse que os esforços do governo foram eficazes, destacando que o desmatamento
em julho caiu mais de 25% em relação a julho de 2019, a primeira queda em 15 meses.
Ele reclamou que o governo é criticado apesar dos "esforços de combate aos
incêndios e ao desmatamento".
Especialistas, no entanto, acusam Bolsonaro de escolher dados a dedo. O
Inpe diz que o desmatamento aumentou 25% em comparação anual no primeiro semestre
do ano, e que pelo menos 3 mil quilômetros quadrados foram cortados até junho.
Ane Alencar diz que se o ritmo atual continuar, 2020 será o pior ano de
desmatamento no Brasil em mais de uma década.
Nos estados com taxas de desmatamento historicamente altas, como Mato
Grosso, Pará e Rondônia, o número de incêndios detectados até agora em 2020 já
é maior do que no mesmo período de 2019. Alencar disse que tamanho aumento logo
no início da temporada mostra que a resposta do governo foi ineficaz – e ela acredita
que já é tarde demais. "Para esta temporada de incêndios, parece que
perdemos a batalha contra o desmatamento", avalia.
Observações da Nasa mostram ainda uma possível temporada de furacões no
Atlântico, como as de 2005 e 2010, que contribuíram para uma grande seca no
sudoeste da Amazônia, já que as tempestades sugam a umidade da floresta.
"Eles estão prevendo que provavelmente ocorrerá o mesmo padrão este ano, o
que será catastrófico se for verdade", diz a especialista.
_____
A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz
jornalismo independente em 30 idiomas. Siga-nos no Facebook |
Twitter | YouTube | App | Instagram | Newsletter
Autor: Martin Kuebler (md)