A vergonha
Ver nos dias atuais os “caciques civilizados” se digladiarem, no momento que recomendaria a união, a sabedoria, o esquecimento de diferenças, deixa a prece do líder Sioux como uma oportuna leitura
Quando me mudei de continente, há 44 anos, tive que escolher muito bem as coisas que levaria na mala, de apenas 20 kg. Somente o essencial, e nela entrou o texto de uma prece singela, publicada em 1887, atribuída ao cacique Sioux Yellow Lark, doado a mim por uma pessoa muito importante na escolha de mudar, a mais difícil de minha vida. Num papel amarelado pelo tempo, ainda dobrado no passaporte que aqui me trouxe, em 1976, limpando gavetas, eu a li hoje com emoção. Seja pelos sentimentos expressos, seja pelas lembranças da ruptura com planos e sonhos de infância, especialmente acalentados pelos meus pais.
Repetiria a escolha, sem dúvida e sem qualquer arrependimento. Acredito que Deus me deu a inspiração certa para embarcar no destino que me aguardava.
A prece sinaliza que existem forças superiores que unem a humanidade, independentemente dos estudos, da cultura, da cor da pele e do país de nascimento. Sempre que a leio, imagino o cacique, “Pássaro Amarelo”, olhando, ao entardecer, para um ponto indefinido entre a planície e um céu vergado de cores, clamando a Deus:
“Ó Imenso Espírito, cuja voz sinto nos ventos/ e cujo respiro dá vida ao mundo todo,/ ouve-me./ Prostro-me frente a Ti, um dos tantos filhos Teus,/ insignificante e frágil./
Preciso da Tua força, da Tua sabedoria./
Permite-me caminhar entre as coisas belas/ e deixa que meus olhos admirem/ o pousar do sol vermelho e ouro./
Faz que minhas mãos respeitem/ o que Tu criaste,/ e meus ouvidos sejam preparados/ para ouvir a Tua voz./
Deixa-me sábio, de forma que eu reconheça as coisas/ que Tu ensinaste ao meu povo,/ as lições que escondeste em cada folha,/ em cada rocha./
Procuro força, não para ser superior aos meus irmãos,/ mas para ser preparado a combater/ o meu maior inimigo: eu mesmo./
Deixa-me sempre pronto para retornar a Ti,/ com mãos limpas e olhos francos,/ de forma que, quando a minha vida se findar/ como a luz no ocaso,/ o meu espírito possa chegar a Ti/ sem qualquer vergonha”.
Nada mais para dizer, quase tudo que um homem precisa ser.
Contudo, para eliminar a incômoda presença dos índios na América, levou-se a cabo um genocídio com a narrativa de que os povos indígenas eram uma ameaça grave para os colonizadores, e não o contrário.
Na tribo vivia-se sem dinheiro e sem complicações, regidos apenas pelo bom senso, por leis naturais, aquelas que o cacique Sioux pedia ao Supremo para poder compreender em seu íntimo, respeitar e usar para o bem de seu povo.
A humanidade acelerou-se vertiginosamente. Estonteia pensar que o número de seres humanos sobre a Terra em apenas 70 anos triplicou, e nós fazemos parte desse fenômeno incrível.
O desenvolvimento que conseguimos em tão breve tempo remete ao mito de Ícaro, a pandemia em curso pode ser o ponto em que as asas entram em combustão ao se aproximar do sol tão cobiçado.
Guerras, sofrimentos, extermínios, embora fossem “necessários” para adquirir o desenvolvimento atual, custaram o esquecimento da “vida” singela e feliz, como era no começo.
Ver nos dias atuais os “caciques civilizados” se digladiarem, no momento que recomendaria a união, a sabedoria, o esquecimento de diferenças, deixa a prece do líder Sioux como uma oportuna leitura.
Como poderão se reunir com o Supremo sem sentir vergonha de suas atitudes?