O xadrez nos EUA envolvendo
a decisão de Trump de atacar general do Irã
© EPA/CRISTOBAL HERRERA Ataque aéreo
em aeroporto de Bagdá que culminou na morte de general iraniano foi ordenado
pessoalmente pelo presidente americano Donald Trump
Há 10 meses de disputar a reeleição para o posto de presidente dos
Estados Unidos e diante de um processo de impeachment no Congresso — no qual é
acusado de ter usado o aparato diplomático americano para benefício pessoal e
político —, Donald Trump tomou
pessoalmente a decisão de levar a cabo um ataque aéreo ao Aeroporto
Internacional de Bagdá, no Iraque, que levou à morte do general iraniano Qasem
Soleimani, chefe da Força de inteligência Quds, na última quinta (2/1).
Com o ato, Trump deu uma guinada na política externa de sua gestão, até
então marcada por sanções econômicas e ataques cibernéticos ao país dos
aiatolás.
"Acredito que a partir de agora veremos os Estados Unidos agirem de
maneira mais e mais agressiva em relação ao Irã. Provavelmente (o assassinato
de Soleimani) é um sinal de que as negociações falharam e que os iranianos não
estão dispostos a ceder. Os americanos concluíram que terão que aumentar a
força e que, no Oriente Médio, para ser levado a sério, você deve usar violência.
Trump estava usando apenas a pressão econômica, e com isso apenas não ia ser
bem-sucedido. Agora, ele está usando pressão econômica e violência, com pouca,
mas alguma chance de sucesso", resume Faris Modad, diretor para o Oriente
Médio da consultoria IHS Markit.
Promessas de campanha
A política externa americana é uma das áreas de maior prioridade do
presidente. Ao longo dos últimos 3 anos, Trump tentou deixar uma marca própria
ao se engajar em uma guerra comercial com a China, tentar reestabelecer relações
diplomáticas com a Coreia do Norte, refazer o acordo de livre comércio com
México e Canadá. Seus movimentos são uma tentativa de demonstrar que ele põe em
prática o o lema de sua campanha "America First", americanos
primeiro, em contraposição ao que considerou ser um estilo complacente do
antecessor democrata Barack Obama.
Isso também é verdade em relação ao Oriente Médio. Ao longo da disputa
eleitoral de 2016, Trump fez duras críticas ao que chamou de "guerras sem
fim", em relação às ações americanas em países como Afeganistão, Iraque e
Síria. Ele defendeu a retirada das tropas americanas dessas áreas. Essa
promessa foi cumprida apenas parcialmente ao longo dos últimos três anos: houve
redução no contingente militar americano nesses países.
Mas, em vez de satisfazer a audiência interna meramente, a estratégia
pode ter sido importante para levar os americanos a novos problemas.
A retirada de soldados americanos de postos no Oriente Médio, de acordo
com críticos, acabou levando a vazios de poder nos territórios, mais tarde
ocupados por inimigos dos americanos, como a rede de inteligência iraniana de
Soleimani.
"Para ser eleito, Barack Obama vai iniciar uma guerra contra o
Irã". O comentário foi postado via Twitter por Donald Trump em novembro de
2011, cinco anos antes que o empresário de Nova York se convertesse no 45º
presidente dos Estados Unidos, e oito anos antes que ele mesmo se visse diante
de uma acusação semelhante.
Outra das promessas de campanha de Trump era a retirada dos Estados
Unidos do acordo nuclear firmado entre Barack Obama e o presidente iraniano
Hassan Rohani, em que o Irã se comprometia a reduzir o beneficiamento de urânio
em troca do alívio de sanções financeiras ao país. Em maio de 2018, Trump
cumpriu sua palavra: qualificou o Irã como "Estado patrocinador de
terrorismo", deixou o acordo e retomou as medidas restritivas sobre a
economia do país. O plano era enfraquecer o Irã com o cerco financeiro de modo
que a negociação diplomática avançasse a contento para os americanos. Não foi
bem isso o que aconteceu, no entanto.
Em resposta, os iranianos são acusados de orquestrar ataques militares
cirúrgicos contra alvos americanos ou aliados. As digitais de Soleimani,
considerado o estrategista por trás de tais ações, estavam quase sempre
encobertas pela ação em campo de milícias xiitas iraquianas e sírias, rebeldes
iemênitas, além do grupo libanês Hezbollah, todos treinados e equipados pela
Força Quds.
"Se você olhar para o padrão (da relação do Irã com os EUA) nos
últimos meses, o fato de que eles realizaram ou foram acusados de realizar
esses diferentes incidentes sem uma resposta enérgica, uma resposta militar e
armada, pode ter encorajado os iranianos a ver até onde poderiam ir",
afirma Naysan Rafati, especialista em Irã da organização internacional de
prevenção de conflito Crisis Group.
Ele se refere, por exemplo, ao ataque de drones, em meados de setembro,
que destruíram duas das principais instalações petrolíferas da Arábia Saudita,
a maior exportador de petróleo do mundo. O ato foi atribuído pelos americanos e
seus aliados ao Irã, o que o o governo do país sempre negou.
Há uma semana, no entanto, um desses ataques acabou matando um civil
americano em uma base militar na província iraquiana de Kirkuk — em resposta,
os Estados Unidos detonaram ataques aéreos que mataram 25 milicianos iraquianos
e feriram mais de 50. No último dia 31, xiitas iraquianos invadiram a embaixada
americana no Iraque.
"O Irã será totalmente responsabilizado por vidas perdidas ou danos
sofridos em qualquer uma de nossas instalações. Eles vão pagar um preço muito
grande! Isso não é um aviso, é uma ameaça. Feliz Ano Novo!", tuitou Trump
na tarde do dia 31, cerca de 48 horas antes de ordenar o ataque que matou
Soleimani.
"Tem havido uma espécie de fervura constante nos últimos meses.
Mas, nos últimos dias, pela primeira vez, um cidadão dos EUA foi morto em um
dos ataques. E então tivemos o tumulto na embaixada. A situação assumiu uma
nova dinâmica e os EUA decidiram responder não mais apenas com sanções e
ataques cibernéticos. Mas indo diretamente atrás de altos oficiais militares
iranianos. E, no que diz respeito às altas autoridades iranianas, provavelmente
não há ninguém tão significativo quanto Soleimani. Sua morte é para os
iranianos um ato de guerra", argumenta Rafati.
Para Modad, o fato de o Irã ter matado um civil americano e ameaçado o
corpo diplomático do país permitiu ao presidente Trump ambiente político
doméstico para subir alguns graus na relação e adotar uma ação militar contra
Soleimani, um velho conhecido das forças militares e de inteligência dos
americanos. De acordo com os analistas, os americanos já tiveram próximos a
executá-lo em uma série de ataques anteriores, mas sempre desistiam diante do
cálculo de que os riscos superavam os benefícios da medida. Não mais.
"Eles mataram um funcionário terceirizado americano e tentaram
invadir a embaixada dos EUA. Portanto, tornou-se politicamente aceitável para
os cidadãos americanos, que se sentiram atacados, que o governo atacasse para
defendê-los", diz Modad.
© Getty Images A Casa Branca, em
Washington; histórico dos EUA em conflitos externos tem trajetória por vezes
relacionada com disputas eleitorais internas
Unir os americanos em torno do conflito
"Uma ação defensiva decisiva", definiu o Pentágono. "O
mundo é um lugar muito mais seguro hoje, após o desaparecimento de Qasem
Soleimani", defendeu o secretário de Estado Mike Pompeo.
As declarações são parte da narrativa de Trump para justificar e
convencer a opinião pública americana do acerto de sua decisão, motivada,
segundo ele, pela proteção inegociável das vidas e dos interesses americanos.
E, uma oportunidade para que ele marque diferenças claras em relação a si mesmo
e a última gestão democrata em situações de ameaça a americanos no exterior.
"Ainda bem que o presidente é você e não a Hillary Clinton, senão
teríamos um novo Bengazi", escreveu uma apoiadora de Trump em resposta à
mensagem do líder em que criticava o ataque às instalações diplomáticas
americanas no Iraque.
A eleitora americana se refere ao assassinato do embaixador americano
Christopher Stevens na Líbia, em 2012, após um ataque a bomba ao consulado. O
episódio gerou uma crise no governo Obama, acusado de se omitir na proteção aos
funcionários do país no exterior, e terminou com a então secretária de Estado
Hillary Clinton admitindo a culpa pelas falhas de segurança no local. O assunto
retornou na campanha em que Hillary acabou derrotada por Trump.
"Acho que o presidente não está procurando brigas no exterior para
o consumo político doméstico. O que vimos foi uma ameaça legítima para nós, a
embaixada foi atacada. E Bengazi ainda está nas mentes dos eleitores, Trump foi
um grande crítico (de Hillary Clinton na campanha) e não poderia agora dar uma
resposta insuficiente", afirmou à BBC News Brasil o analista político
Michael Johns, um dos autores de discursos presidenciais durante a gestão
republicana de Bush.
Aliados do presidente criticaram as ações que levaram à morte de
Soleimani, dizendo que elas escapavam ao discurso de Trump de não intervenção
dos americanos em assuntos regionais que não lhes dissessem respeito.
"Quem está realmente se beneficiando disso?", questionou o comentarista
da Fox News Tucker Carlson, um dos mais contundentes apoiadores de Trump.
O questionamento remonta a acusação que o próprio Trump fez a Obama
sobre se engajar em uma guerra em busca de votos (o que, de fato, não
aconteceu). A relação entre guerras e votos mobiliza o imaginário político do
país. Observadores de política americana argumentam que a reeleição do
republicano George H.W. Bush em 2004 se deveu menos a seus feitos
administrativos e mais a sua imagem de líder no esforço de "guerra contra
o Terror", com as invasões no Afeganistão e no Iraque pós ataques de 11 de
setembro de 2001.
Antes dele, em meio ao processo de impeachment pelo escândalo sexual na
Casa Branca, o democrata Bill Clinton ordenou o bombardeio de Belgrado, na
Sérvia, como uma ação humanitária em favor da etnia albanesa, sob ataque do
governo sérvio. A operação matou centenas de civis. Críticos dizem que a ação
visava melhorar a imagem pública do democrata.
Num passado mais distante, em 1864, a condução da guerra civil americana
foi primordial para que Abraham Lincoln se tornasse o primeiro presidente dos
EUA a ser reeleito. Já Franklin Roosevelt obteve quatro mandatos presidenciais
por conseguir conduzir os Estados Unidos a uma onda de prosperidade
concomitante à Segunda Guerra Mundial.
© AFP/Getty Solemani
era uma das figuras mais importantes do regime iraniano
Mas há também exemplos em que o envolvimento em conflitos levou ao fracasso
político do presidente. É o caso de Richard Nixon com a Guerra do Vietnã,
considerada uma derrota histórica para as tropas americanas, com quase 60 mil
soldados mortos.
"Uma aventura militar, se a observarmos historicamente, tem a mesma
probabilidade de arruinar sua vida política ou de promovê-la. Se você se lança
e fracassa, está acabado", diz Modad, para quem esse tipo de raciocínio
sobre a atual decisão de Trump é "especulação boba de esquerda".
Para o correligionário de Trump, Michael Johns, o presidente terá apoio
dos eleitores em sua medida militar, mas não terá ganho político com a ação.
"A relação entre conflitos e eleição tem sido mista. A Guerra do
Vietnã obviamente não foi útil para Richard Nixon porque foi percebida como mal
conduzida. Não fomos vistos como vencedores. Mesmo a Guerra do Iraque com Bush
deixou os americanos impacientes. Culturalmente, não são do agrado dos
eleitores essas ocupações prolongadas. Por outro lado, o antiterrorismo é
prioridade e deve ser tratado assim pelo comandante do país. Então, acho que o
presidente fez será apoiado. Mas a medida é sempre controversa, porque nunca é
a última de uma série de jogadas de xadrez", diz Johns.
Efeito Iêmen
A maior preocupação de aliados de Trump é que a tensão e os ataques
esporádicos possam se converter em um longo e arrastado conflito entre os dois
países, com ocupação territorial, aos moldes do que se viu no Afeganistão. Isso
poderia causar dano na imagem de Trump junto aos eleitores. E, de acordo com os
especialistas em Irã, é exatamente esse tipo de tática em que os iranianos são
experts.
"Em caso de guerra, não há garantia de que os Estados Unidos
vençam. Claramente, o Irã não pode derrotar os Estados Unidos de uma maneira
convencional, no sentido militar. Mas pode fazer uma guerra tão longa e tão
cara, que os americanos não poderão vencê-la politicamente", afirma Modad.
Para ele, o melhor exemplo desse tipo de situação é o Iemên. Sofrendo
com uma guerra civil alimentada pela Arábia Saudita e pelo Irã há quase 5 anos,
o país segue sendo uma frente de confronto aberto que tem desgastado sobretudo
aos sauditas. "Os iranianos têm muita paciência e estratégia para alongar
um conflito desses", diz Modad.
Os analistas consideram certo que haverá uma retaliação iraniana: aos
aliados ou aos americanos diretamente, de seu próprio exército ou de algum dos
grupos milicianos que eles patrocinam. E do ponto de vista político e militar,
o Irã é visto como um país mais estruturado e perigoso do que o Afeganistão ou
a Coreia do Norte.
"Os iranianos já têm dito que estão sitiados por causa de sanções.
As autoridades iranianas vêm mencionando há meses uma guerra econômica. Para
eles, essas provocações e escaladas são partes de não se render às demandas dos
EUA na campanha de pressão máxima de Trump. Eles têm recursos bélicos e pouco a
perder, o que torna a situação potencialmente explosiva", diz Rafati.