‘É um crime
contra a humanidade’, diz coordenador do projeto Manuelzão sobre Brumadinho
Lucas Eduardo Soares
- Jornal Hoje em Dia
Sedimentos de
minério de ferro, provenientes do rompimento da barragem na Mina do Córrego do
Feijão, em Brumadinho, na Grande BH, podem chegar ao rio São Francisco. A
constatação é de Marcus Vinicius Polignano, coordenador-geral do Manuelzão, um
projeto de extensão da UFMG que luta pela revitalização de cursos d´água. Em
entrevista ao Hoje em Dia, o professor da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal classifica a tragédia como “crime”. Para o docente, o
desastre de Mariana, na região Central, em 2015, não deixou lições.
O senhor esteve na
semana passada em Brumadinho para tomar conhecimento da dimensão do desastre. O
que foi constatado nessa visita?
Primeiramente, fica
o sentimento de devastação do ponto de vista ambiental, das comunidades do
entorno e do que foi isso em termos de tragédia humana. Podemos qualificar
aquela situação como um crime contra a humanidade, diante da dimensão de tudo.
Fica o impacto emocional e também técnico sobre o que foi aquele mar de lama.
Quanto a responsabilidades, é uma questão histórica. O rompimento foi uma
consequência e, para entender as causas, a gente precisar voltar, entender toda
a sequência anterior àquela sexta-feira.
Quais
características poderiam apontar para um desastre como esse?
Em primeiro lugar, o
modelo adotado pela mineração em Minas Gerais ao longo dos últimos anos é
arcaico, obsoleto. O próprio modelo foi construído usando essas armadilhas que,
sequencialmente, foram caindo ao longo da história. Portanto, era uma situação
absolutamente anunciada. Outra questão é a conivência do Estado perante a
mineração, pois, ao invés de cumprir o papel de normatizar, regular e procurar
diminuir os riscos, é absolutamente submetido à mineração. Em terceiro lugar, a
gente já tinha um passado extremamente ruim. Mariana tinha sido, até então, o
maior desastre ambiental do mundo. E a gente não mudou uma vírgula depois
disso. Os processos continuaram os mesmos. Por último, o que considero ser o
fato mais criminoso da história: uma barragem não se rompe do dia para a noite.
A menos que houvesse um fenômeno sobrenatural ou muito extraordinário. Ao
contrário, não existia nenhuma causa externa ali. A barragem ruiu por dentro,
pela estrutura. E era do conhecimento da empresa ter feito um plano de
emergência, um mapa de inundação. Eles sabiam que toda a estrutura de pessoal
estava logo abaixo e, mesmo assim, não agiram.
Para o senhor,
então, não houve lição após o desastre de Mariana?
No sentido de
proteger a vida, nenhuma. Podemos afirmar isso, com todos esses fatos. Tomo
muito cuidado com as afirmações que faço. Mas temos histórico, fatos e provas
disso. Temos informações e dados para confirmar.
Os rejeitos chegaram
ao rio Paraopeba. Qual é a situação lá?
Os córregos do
Feijão e o Ferro de Carvão (da bacia do Paraopeba) sumiram, soterrados pelo mar
de lama. Ou seja, eram cursos d’água, com qualidade muito boa. Aquele cenário
foi varrido. No caso do Paraopeba, essa lama está sedimentando. Todo mundo se
preocupa em saber para onde ela está indo, mas a nossa preocupação é sobre onde
ela vai ficar. Aqueles sedimentos vão destruindo microorganismos, peixes. Era
um dos rios mais piscosos (que tem grande variedade de peixes). Não sabemos,
ainda, o quanto essa lama está progredindo, mas com certeza será uma situação
duradoura, pois a chuva vai removendo parte desse material e o levando por seu
curso.
Qual era o nível de
qualidade das águas antes da tragédia?
De turbidez baixa.
Mas tinha problema de esgoto, o que sempre foi uma briga envolvendo todos os
comitês de bacias. Agora, esse problema se agrega ao minério de ferro. É um
desastre o somatório total. A bacia já vinha enfrentando problemas, mas a
qualidade piorou 200%.
É possível que o
Paraopeba volte a ser o que era antes da tragédia?
É prematuro dizer,
mas a história do rio e das águas mudou. Temos, agora, um problema para uma
centena de anos. Porque não é um processo que vai lá e remove. A extensão é
absurda, e a cada chuva realimenta aquele sistema. E, para ter peixe, precisa
ter microorganismo.
Em razão disso, é
possível que esses sedimentos cheguem ao rio São Francisco?
Com certeza. Algum
material vai chegar. Não sei quanto. No entanto, hoje o drama humano é tão
grande que está suplantando todos os outros procedimentos. Mas é preciso que a
gente entenda que à medida em que vai se identificando, a gente percebe que
números são pessoas. E pessoas têm famílias, relações. Agora, estamos deixando
que as equipes do setor operacional funcionem.
Os córregos do
Feijão e o Ferro de Carvão sumiram, soterrados pelo mar de lama. Aquele
cenário foi varrido
Será feito algum
mapeamento dos cursos d’água afetados?
Fizemos uma prévia
para ter a coleta de informações no dia em que visitamos Brumadinho, e vamos
acompanhar os dados que eventualmente serão divulgados pelos órgãos
competentes. O Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) está montando um
sistema de monitoramento que a gente espera ser totalmente transparente, para
termos maiores informações sobre a qualidade de água, e ciência dos processos.
Já é possível
adiantar algo sobre as informações coletadas?
Não, até porque o
material foi encaminhado para o laboratório, onde será analisado. Isso demanda
tempo, mas podemos dizer que alguns cuidados têm que ser tomados. Essa água
contaminada pelos rejeitos infiltram e contaminam o lençol freático. E quem tem
poços artesianos no entorno do local contaminado definitivamente não deve usar
essa água porque provavelmente está contaminada.
Um dos temores é a
possibilidade de se afetar o abastecimento na região metropolitana...
Existe um ponto de
captação da Copasa no Paraopeba, mas a companhia tem reservatórios grandes fora
dessa área. Hoje, o acúmulo nesses outros lugares é muito grande, por isso o
abastecimento na Grande BH está garantido, até então. Mas, no Paraopeba, a
captação está afetada, pois a água está contaminada.
Como está o rio Doce
três anos após o rompimento da barragem em Mariana?
Não quero ser
pessimista, mas posso dizer que está do mesmo jeito que foi deixado. Depois de
tanto tempo, os sedimentos permanecem no curso. A viscosidade foi comprometida,
a biodiversidade também. De zero a 100% do que poderia ter sido feito lá, não
chegamos a 10%. Deixamos na mão de quem provocou o dano cuidar do processo de
recuperação. Por isso, não existe empenho do setor porque ele tenta amenizar
despesa, controlar processos, minimizar custos.
O que os comitês de
bacias têm feito para cobrar?
Desde o que
aconteceu em Mariana, tomamos posição. Fomos para a Assembleia Legislativa de
Minas Gerais (ALMG), apoiamos o projeto de iniciativa popular, com 55 mil
assinaturas, para mudar as regulamentações e evitar coisas desse tipo. Pedíamos
que estruturas como aquelas rompidas não ficassem próximas a aglomerados. Se
isso já estivesse vigente, talvez não teria ocorrido agora, de novo. Por isso,
é importante lembrar que os políticos da legislação anterior também estão com o
pé nessa lama. Agora, o ser humano, o mineiro, e não minério, precisa se
indignar. Foi uma negligência, um crime. O Estado precisa ter uma outra conduta
e as pessoas precisam acompanhar. A única palavra que consigo utilizar para
sintetizar tudo isso é: absurdo. É inacreditável acompanhar aquilo tudo, ver
corpos boiando. Absurdo.
Além disso, outra
cobrança antiga do Comitê da Bacia do Rio das Velhas é a de que, no rio, seria
possível pescar e até nadar. Está sendo possível?
O rio das Velhas
sofre com o impacto de mineração, mas há também o problema do esgoto. Até 2009,
pouco esgoto era tratado. Mas conseguimos tirar 70% do que era despejado. Dessa
maneira, fizemos com que os peixes voltassem àquele curso. Mas, para nadar, é
um grande desafio. Temos cobrado da Copasa uma posição, pois é necessário que
ela avance nessa questão, com a melhora do tratamento do esgoto. Sozinhos, não
damos conta de melhorar um rio. É um desafio. E estamos batalhando nisso.