REDES DE INDIGNAÇÃO E ESPERANÇA
Reflexão sobre os movimentos sociais que eclodem no mundo todo, inclusive
no Brasil, como os movimentos de junho/2013
Autor
apresenta análise sobre movimentos sociais na era da internet; leia trecho
"Redes de Indignação e Esperança" apresenta
a análise do sociólogo espanhol Manuel Castells sobre os movimentos sociais e a
onda mundial de protestos que nasceram e se desenvolveram por meio da internet.
Castells
avalia e descreve uma nova forma de organização que se fundamentada em diálogos
horizontais, na ocupação do espaço público urbano e na ausência de lideranças e
de programas. Da Primavera Árabe ao Occupy nos Estados Unidos, segundo o autor,
o modelo é indissociável da internet.
Especializado
na era da informação e das sociedades conectadas em rede, Manuel Castells é
professor emérito da Universidade do Sul da Califórnia, Los Angeles, e da
Universidade da Califórnia, Berkeley. .
Articular
mentes, criar significado, contestar o poder
NINGUÉM ESPERAVA. Num mundo turvado por aflição econômica, cinismo político, vazio cultural e desesperança pessoal, aquilo apenas aconteceu. Subitamente, ditaduras podiam ser derrubadas pelas mãos desarmadas do povo, mesmo que essas mãos estivessem ensanguentadas pelo sacrifício dos que tombaram. Os mágicos das finanças passaram de objetos de inveja pública a alvos do desprezo universal. Políticos viram-se expostos como corruptos e mentirosos. Governos foram denunciados. A mídia se tornou suspeita. A confiança desvaneceu-se. E a confiança é o que aglutina a sociedade, o mercado e as instituições.
Sem
confiança nada funciona. Sem confiança o contrato social se dissolve, e as
pessoas desaparecem, ao se transformarem em indivíduos defensivos lutando pela
sobrevivência. Entretanto, nas bordas de um mundo que havia chegado ao limite
de sua capacidade de propiciar aos seres humanos a faculdade de viver juntos e
compartilhar sua vida com a natureza, mais uma vez os indivíduos realmente se
uniram para encontrar novas formas de sermos nós, o povo.
De
início, eram uns poucos, aos quais se juntaram centenas, depois formaram-se
redes de milhares, depois ganharam o apoio de milhões, com suas vozes e sua
busca interna de esperança, confusas como eram, ultrapassando as ideologias e a
publicidade para se conectar com as preocupações reais de pessoas reais na
experiência humana real que fora reivindicada. Começou nas redes sociais da
internet, já que estas são espaços de autonomia, muito além do controle de
governos e empresas, que, ao longo da história, haviam monopolizado os canais
de comunicação como alicerces de seu poder. Compartilhando dores e esperanças
no livre espaço público da internet, conectando-se entre si e concebendo
projetos a partir de múltiplas fontes do ser, indivíduos formaram redes, a
despeito de suas opiniões pessoais ou filiações organizacionais. Uniram-se. E
sua união os ajudou a superar o medo, essa emoção paralisante em que os poderes
constituídos se sustentam para prosperar e se reproduzir, por intimidação ou
desestímulo - e quando necessário pela violência pura e simples, seja ela
disfarçada ou institucionalmente aplicada. Da segurança do ciberespaço, pessoas
de todas as idades e condições passaram a ocupar o espaço público, num encontro
às cegas entre si e com o destino que desejavam forjar, ao reivindicar seu
direito de fazer história - sua história -, numa manifestação da
autoconsciência que sempre caracterizou os grandes movimentos sociais.
Os movimentos espalharam-se por contágio num mundo ligado pela internet sem
fio e caracterizado pela difusão rápida, viral, de imagens e ideias. Começaram
no sul e no norte, na Tunísia e na Islândia, e de lá a centelha acendeu o fogo
numa paisagem social diversificada e devastada pela ambição e manipulação em
todos os recantos deste planeta azul. Não foram apenas a pobreza, a crise econômica
ou a falta de democracia que causaram essa rebelião multifacetada.
Evidentemente, todas essas dolorosas manifestações de uma sociedade injusta e
de uma comunidade política não democrática estavam presentes nos protestos. Mas foi basicamente a humilhação provocada
pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja ele financeiro,
político ou cultural, que uniram aqueles que transformaram medo em indignação,
e indignação em esperança de uma humanidade melhor. Uma humanidade que
tinha de ser reconstruída a partir do zero, escapando das múltiplas armadilhas
ideológicas e institucionais que tinham levado inúmeras vezes a becos sem
saída, forjando um novo caminho, à medida que o percorria. Era a busca de
dignidade em meio ao sofrimento da humilhação - temas recorrentes na maioria
dos movimentos. Movimentos sociais conectados em rede espalharam-se primeiro no mundo árabe e foram confrontados com violência assassina pelas ditaduras locais. Vivenciaram destinos diversos, incluindo vitórias, concessões, massacres repetidos e guerras civis. Outros movimentos ergueram-se contra o gerenciamento equivocado da crise econômica na Europa e nos Estados Unidos, por governos que se colocavam ao lado das elites financeiras responsáveis pela crise à custa de seus cidadãos: Espanha, Grécia, Portugal, Itália (onde mobilizações de mulheres contribuíram para pôr fim à bufa commedia dell'arte de Berlusconi), Grã-Bretanha (onde a ocupação de praças e a defesa do setor público por sindicatos e estudantes se deram as mãos) e, com menos intensidade, mas simbolismo semelhante, na maioria dos outros países europeus. Em Israel, um movimento espontâneo com múltiplas demandas tornou-se a maior mobilização de base da história do país, obtendo a satisfação de muitas de suas reivindicações.
Nos Estados Unidos, o movimento Occupy Wall Street, tão espontâneo quanto os outros e igualmente conectado em redes no ciberespaço e no espaço urbano, tornou-se o evento do ano e afetou a maior parte do país, a ponto de a revista Time atribuir ao "Manifestante" o título de personalidade do ano. E o lema dos 99%, cujo bem-estar fora sacrificado em benefício do 1% que controla 23% das riquezas do país, tornou-se tema regular na vida política americana. Em 15 de outubro de 2011, uma rede global de movimentos Occupy, sob a bandeira "Unidos pela Mudança Global", mobilizou centenas de milhares de pessoas em 951 cidades de 82 países, reivindicando justiça social e democracia verdadeira. Em todos os casos, os movimentos ignoraram partidos políticos, desconfiaram da mídia, não reconheceram nenhuma liderança e rejeitaram toda organização formal, sustentando-se na internet e em assembleias locais para o debate coletivo e a tomada de decisões.
Parto da
premissa de que as relações de poder são constitutivas da sociedade porque os
que detêm o poder constroem as instituições segundo seus valores e interesses.
O poder é exercido por meio da coerção (o monopólio da violência, legítima ou
não, pelo controle do Estado) e/ou pela construção de significado na mente das
pessoas, mediante mecanismos de manipulação simbólica. As relações de poder
estão embutidas nas instituições da sociedade, particularmente nas do Estado.
Entretanto, uma vez que as sociedades são contraditórias e conflitivas, onde há
poder há também contrapoder, que considero a capacidade de os atores sociais
desafiarem o poder embutido nas instituições da sociedade com o objetivo de
reivindicar a representação de seus próprios valores e interesses. Todos os
sistemas institucionais refletem as relações de poder e seus limites tal como
negociados por um interminável processo histórico de conflito e barganha. A
verdadeira configuração do Estado e de outras instituições que regulam a vida
das pessoas depende dessa constante interação de poder e contrapoder.
Coerção e
intimidação, baseadas no monopólio estatal da capacidade de exercer a
violência, são mecanismos essenciais de imposição da vontade dos que controlam
as instituições da sociedade. Entretanto, a construção de significado na mente
das pessoas é uma fonte de poder mais decisiva e estável. A forma como as
pessoas pensam determina o destino de instituições, normas e valores sobre os
quais a sociedade é organizada. Poucos sistemas institucionais podem perdurar
baseados unicamente na coerção. Torturar corpos é menos eficaz que moldar
mentalidades. Se a maioria das pessoas pensa de forma contraditória em relação
aos valores e normas institucionalizados em leis e regulamentos aplicados pelo
Estado, o sistema vai mudar, embora não necessariamente para concretizar as
esperanças dos agentes da mudança social. É por isso que a luta fundamental
pelo poder é a batalha pela construção de significado na mente das pessoas.
FONTE:
LIVRARIA DO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO