sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

MUDANÇAS QUE VÃO SOBREVIVER À PANDEMIA

 

24 mudanças trazidas pelo
coronavírus que devem sobreviver à pandemia

Dos juros baixos e da “desglobalização” ao home office e ao comércio eletrônico; do ensino a distância e da telemedicina às lives e à mudança do “dress code” de trabalho, confira as transformações que vão permanecer quando a covid-19 passar e entenda o que elas podem significar para a sua vida, os negócios e o País

 



 

·   Texto: José Fucs / Ilustrações: Marcos Müller – Jornal Estadão


Com as praias cheias, a reabertura de bares e restaurantes, o retorno às aulas e a retomada da economia, a impressão que se tem é de que a vida está, enfim, voltando ao normal. Oito meses depois da adoção das primeiras medidas de isolamento social, em meados de março, parece que, num piscar de olhos, a pandemia ficará para trás – e tudo voltará a ser como antes.

Mas, apesar do clima de relativa normalidade que se observa nas ruas, o coronavírus ainda está por aí, levando centenas de vidas e infectando milhares de pessoas por dia pelo Brasil afora – e não há indícios de que irá desaparecer com a mesma velocidade com que se disseminou.

O repique no número de casos graves da doença no País e o surgimento de uma segunda onda de contágio na Europa mostram que não dá para relaxar na luta contra o vírus, ainda que sejamos considerados “um país de maricas” pelo presidente Jair Bolsonaro.

Mesmo quando a pandemia passar – espera-se que seja logo– ou quando houver a descoberta de uma vacina que funcione e esteja disponível para aplicação em massa, é improvável que haja um retorno ao mundo em que a gente vivia antes da covid-19.

 

“No futuro, nós vamos falar de ‘a.c.’ (antes do coronavírus) e ‘d.c.’ (depois do coronavírus)”

Jeffrey Cole, pesquisador na Universidade do Sul da Califórnia e diretor do Centro para o Futuro Digital

“Não haverá retorno à normalidade”, diz Enrique Dans, professor de Inovação na IE Business School, em Madrid, em artigo publicado recentemente na revista Forbes. “No futuro, nós vamos falar de ‘a.c.’ (antes do coronavírus) e ‘d.c.’, (depois do coronavírus)”, afirma Jeffrey Cole, pesquisador na Universidade do Sul da Califórnia e diretor do Centro para o Futuro Digital, nos Estados Unidos, que realizou um estudo sobre o impacto da pandemia na vida da população, em parceria com o Bureau Interativo de Publicidade (IAB, na sigla em inglês).

Em poucos meses, a pandemia introduziu ou acelerou profundas transformações na nossa vida pessoal, profissional e social. Provocou uma revolução na rotina das empresas e um estrago colossal nas contas públicas. Várias dessas mudanças deverão sobreviver ao vírus e moldar o nosso futuro, em maior ou menor grau, por mais um tempo ou para sempre, para o bem ou para o mal.

“O coronavírus funcionou como um anabolizante para a mudança”, diz o economista e consultor Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020), que aborda a metamorfose que está acontecendo no mundo do trabalho.“Muito do que vamos viver daqui para a frente será um aprofundamento do que estamos vivendo hoje”, afirma o economista Daniel Susskind, professor da Universidade Oxford, na Inglaterra, e autor dos livros O futuro das profissões e O mundo sem trabalho, publicados em português pelas editoras Gradiva e Porto, de Portugal.

Para ajudá-lo a navegar neste “novo normal”, o Estadão traz uma reportagem especial que aborda as transformações turbinadas pela pandemia e o que elas podem significar para a sua vida, para os negócios e para o País. Do juro baixo à “desglobalização”, do home office e do comércio eletrônico às lives e à mudança do “dress code” de trabalho, o especial dá um mergulho em 24 mudanças que desafiam a nossa capacidade de adaptação a cada dia, agrupadas em cinco grandes temas: economia, trabalho, consumo, cotidiano e lazer e entretenimento.


Diante da magnitude das mudanças, é até natural
que haja certa ansiedade com o que acontecerá nos próximos meses e anos


O especial traz também seis entrevistas exclusivas, com um time de craques em suas áreas de atuação, que aprofundam a discussão sobre o impacto das diferentes mudanças provocadas ou aceleradas pela pandemia. São eles o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central (BC); Tony Volpon, ex-diretor da Área Internacional do BC; Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Iedi (Instituto de Estudo de Desenvolvimento Empresarial); Fernando Gambôa, sócio da KPMG no Brasil e responsável pela área de consumo e varejo; Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de trabalho digital ligada ao Facebook; e Fernando Pedro, diretor médico da Amil, uma das principais empresas de seguro-saúde do País.

“Algumas das mudanças a que fomos ‘apresentados’ ou que se intensificaram durante a pandemia, como as mudanças tecnológicas, vieram para ficar. Outras, como as que ocorreram nos setores de aviação, hotelaria e turismo, deverão permanecer por mais dois ou três anos e vão passar. Agora, há atividades, como as de entretenimento e construção de escritórios e de instalações de empresas e bancos, que vão levar um tempo para se reacomodar e nunca mais voltarão a ser o que eram”, diz Gomes de Almeida.

Muita gente ainda não se deu conta do momento que estamos vivendo e resiste às mudanças, tentando manter hábitos e posturas do pré-pandemia. Diante da magnitude das transformações que estão em curso, é até natural que isso aconteça e haja certa ansiedade no ar com o que poderá ocorrer nos próximos meses e anos. “Sem preparação ou permissão, nós estamos participando da maior experiência de ciência social de todos os tempos”, afirma Jeffrey Cole.

Para enfrentar a nova era, é preciso ter flexibilidade e estar aberto à inovação. “O mundo mudou aos nossos olhos em poucos meses – e, quando o mundo muda e você insiste em fazer as coisas como antes, não vai acabar bem”, diz Enrique Dans. Cabe a cada um de nós encarar o desafio que se coloca à nossa frente, para não “perder o bonde” quando a pandemia passar.


ECONOMIA





As medidas de isolamento social adotadas aqui e lá fora, para tentar conter a propagação do coronavírus, tiveram um impacto brutal na economia, provocando mudanças relevantes no cenário pré-pandemia ou reforçando tendências que já estavam em curso.

A seguir, você poderá conferir as principais transformações que ocorreram na economia neste período e que deverão se manter nos próximos meses ou anos, e os efeitos que elas terão na sua vida financeira, nos negócios e no País. A lista inclui os juros baixos, o dólar alto, o reforço na poupança para imprevistos, a repaginação do “coronavoucher”, a explosão da dívida pública e a “desglobalização”.



1Juros baixos

Durante a pandemia, a queda dos juros – que já vinha ocorrendo desde o governo Temer e ganhou tração na atual gestão – acentuou-se. Para tentar alavancar a atividade econômica e tirar o País da profunda recessão registrada nos primeiros meses da covid, o Banco Central (BC) cortou a taxa básica (Selic) para 2% ao ano, o menor patamar da série histórica, no qual se mantém até hoje, e não há perspectiva de elevação significativa no horizonte.

Diante do retrospecto do País neste campo, como tradicional campeão mundial dos juros altos, é difícil acreditar que a bonança possa durar muito tempo. Até analistas respeitados no mercado questionam a capacidade de o BC manter as taxas no nível atual. Mas, segundo economistas de diferentes correntes de pensamento ouvidos pelo Estadão, a tendência é de os juros continuarem muito baixos, seguindo um movimento internacional, por pelo menos mais um ano ou até um pouco mais, ainda que venham a sofrer uma ligeira alta até lá.

Com a inflação na faixa de 3% ao ano, isso quer dizer que as taxas reais continuarão negativas e que o investimento em aplicações de renda fixa, como os CDBs, os fundos e a poupança, não cobrirá sequer a perda do valor de compra da moeda. Por outro lado, para os tomadores de crédito e para quem está no vermelho, incluindo o próprio governo, que fechará o ano com um rombo de quase R$ 1 trilhão, a manutenção dos juros baixos deverá representar um alívio mais que bem-vindo em suas contas.

“Os juros no próximo ano serão muito maiores do que neste ano? Não”, diz Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, que deixou o cargo em julho para se tornar sócio e economista-chefe do banco BTG Pactual, a partir de janeiro. “Eu acredito que isso é duradouro, sim, e esta percepção vem se fortalecendo. Não é a minha opinião, é o que os mercados estão dizendo”, afirma Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central (BC). “Com a economia em recessão e o desemprego alto, os juros deverão continuar baixos por um tempo estendido”, diz Tony Volpon, ex-economista-chefe do banco suíço UBS no Brasil e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central (leia as entrevistas completas de Volpon e Franco).

A definição do movimento dos juros – se o patamar atual vai se manter por um prazo mais longo ou se será um fenômeno efêmero, que durará só mais alguns meses – dependerá de vários fatores. O primeiro é o ritmo da retomada da economia. Se a recuperação vier de forma acelerada e não houver novas intempéries pelo caminho, os juros deverão começar a subir de forma lenta e gradual, de acordo com Volpon, em direção ao nível pré-pandemia, de 4,5% ao ano, mas ainda bem abaixo da média praticada historicamente no Brasil.

O segundo fator que poderá provocar uma elevação das taxas é um repique da inflação. Mas, apesar da ligeira alta ocorrida nos últimos meses, puxada pelo aumento do preço do arroz e de outros alimentos, a expectativa dos analistas é de uma inflação de 3,2% para 2020 e 2021, ambas bem abaixo da meta anual, de 4%, segundo os dados mais recentes do boletim Focus, que reúne as estimativas dos bancos para os principais indicadores econômicos.

“Para o cenário de juros baixos não ser algo de dois ou três anos, mas de uma década, teremos de fazer um esforço de ajuste fiscal”

Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro Nacional

Outro ponto que deverá nortear o comportamento dos juros é a questão fiscal. Se o teto de gastos for preservado e a equipe econômica conseguir manter as contas públicas sob controle, resistindo ao ímpeto gastador de alguns políticos, de ministros e até do presidente Jair Bolsonaro, o BC terá uma margem de manobra maior para manter o atual nível das taxas.

“Para consolidar o cenário de juros baixos e isso não ser algo de dois ou três anos, mas de mais de uma década, teremos de fazer um esforço de ajuste fiscal”, afirma Mansueto Almeida. “Ainda bem que a gente está vendo como é bom viver com Selic de 2% ao ano”, diz Gustavo Franco. “Isso de fato tem ajudado lá em Brasília. Quando a turma ameaça os políticos dizendo que ‘vai subir o juro tudo de novo’, o pessoal fica com medo.”

Se as taxas se mantiverem no patamar atual por um prazo mais longo, haverá uma guinada radical no cenário macroeconômico do País. “Já há algum tempo tenho opinado que essa queda de juros parece com a estabilização da economia, inclusive no aspecto cultural”, afirma Franco, que fez parte da equipe que desenvolveu e implantou o Plano Real. “Sua relevância só é inferior ao fim da hiperinflação, mas ela é parecida nos efeitos.”

“A relevância da queda dos juros só é inferior ao fim da hiperinflação, mas é parecida nos efeitos”

Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central

No novo cenário, a “ciranda financeira” ou o “rentismo”, como preferem alguns, perde atratividade, como já está acontecendo, e o investimento na produção e em ativos reais, como imóveis e máquinas, ganha força. “A taxa de juros é uma espécie de medida da distância entre o presente e o futuro, que se aplica em tudo na vida: na poupança, no investimento, na construção, nos preços dos ativos, no tamanho da Bolsa, no câmbio. Tudo tem juro no meio”, diz Franco. “Com o juro caindo como caiu, tudo que é preço de ativo muda para melhor. O futuro fica mais perto e invertem-se algumas lógicas habituais do mundo empresarial.”

Se tal cenário se confirmar, por mais improvável que possa parecer para gerações de brasileiros que se acostumaram a viver com os juros na estratosfera, o Brasil poderá ingressar no clube dos países com taxas civilizadas e contar com um estímulo poderoso para o desenvolvimento.



2Dólar alto

Durante a crise, o dólar deu um salto. Depois de roçar os R$ 6, em meados de maio, a moeda americana recuou, em meio a solavancos pontuais, para a faixa de R$ 5,5, mas ainda registra uma valorização de 36% no ano, até 13 de novembro, e de 9,3% desde 20 de março, quando o Ministério da Saúde declarou o estado de transmissão comunitária do coronavírus. Entre as 30 moedas mais negociadas no mundo, o real ainda acumula a maior desvalorização, puxada pela retirada maciça de capitais do País e pela redução dos aportes externos na produção.

De janeiro a outubro, de acordo com o Banco Central (BC), o fluxo cambial ficou negativo em US$ 20 bilhões, puxando o dólar para cima. No canal financeiro, que reúne os investimentos estrangeiros diretos e em carteira, remessas de lucro e pagamento de juros, a saída de recursos superou  o ingresso em R$ 52,7 bilhões, um resultado compensado apenas em parte pelo saldo registrado na balança comercial, de US$ 32,7 bilhões.

Embora as turbulências políticas e a política ambiental do País sejam muitas vezes apontadas como responsáveis pela fuga dos estrangeiros e pela elevação do dólar no período, dois outros fatores teriam levado à debandada dos investidores externos e à escalada da moeda americana frente ao real, segundo economistas de diferentes tendências ouvidos pelo Estadão: a queda substancial dos juros locais, para o patamar inédito de 2% ao ano, e as incertezas geradas pela pandemia em relação ao desempenho da economia global.

“O nosso movimento nos juros foi fundamental para dar ao câmbio um feitio que ele deveria ter desde quando você quiser”, diz Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Vinha muito capital de fora em função disso, valorizando a nossa moeda, e a redução dos juros acabou com aquele ganho fácil da arbitragem cambial.”

“No mundo todo, houve uma aversão ao risco que se refletiu numa fuga de capitais, principalmente de economias emergentes”

Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da FGV

Para o economista Carlos Langoni, ex-presidente do BC e diretor do Centro de Economia Mundial, ligado à Fundação Getúlio Vargas (FGV), a saída dos estrangeiros e a alta do dólar se devem também ao “choque global” provocado pela coronavírus. “O que houve foi um tsunami que começou na China e foi chegando ao Brasil”, afirma. “No mundo todo, houve uma aversão ao risco que se refletiu numa fuga de capitais, principalmente de economias emergentes.”

Independentemente da discussão sobre o que teria provocado a alta do dólar, o pior parece já ter passado. Apesar do soluço registrado no final de outubro, em decorrência dos temores de investidores internacionais em relação aos efeitos que uma nova onda de contágio na Europa pode ter na economia mundial, as estimativas para os próximos meses e para 2021 continuam positivas.

De acordo com o Boletim Focus, produzido pelo BC, que reúne as estimativas dos bancos, a previsão divulgada em 6 de novembro é de que a moeda americana feche 2020 em R$ 5,45, praticamente estável em relação à cotação atual, e em R$ 5,2 em 2021, 7,1% abaixo do valor corrente.

Na avaliação do economista Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do BC, houve “uma espécie de overshooting” do dólar e “o normal” agora seria a cotação recuar mais um pouco. “Houve muita criação de liquidez nos Estados Unidos e isso vai para a extremidade do sistema, vai chegar aqui.”

Segundo ele, a perda de atratividade da renda fixa para os investidores externos deverá ser compensada, em alguma medida, pelo ingresso de moeda forte para a compra de ativos no País, que ficaram bem mais baratos com a cotação atual do dólar. “Estamos num período de transição. Com esse juro e com o dólar onde está, é outra equação”, diz.  “Acredito que a conta de investimento direto vai continuar muito positiva, mas a conta financeira, que governa o dólar, está meio indefinida.”

“Nós temos uma indústria viciada em subsídio, em tarifa de importação, em Zona Franca”

Tony Volpon, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central

A combinação de juros baixos e dólar alto deverá favorecer o setor produtivo, especialmente a indústria, que perdeu competitividade na arena global nas últimas décadas. As exportações serão beneficiadas, apesar da retração do comércio global, e as importações ficarão mais caras. “Em mantendo essas condições, a indústria vai ser outra”, afirma o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida (leia aqui a entrevista completa de Gomes de Almeida).

Para Tony Volpon, ex-economista-chefe do banco UBS no Brasil e ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, porém, as mudanças ocorridas no câmbio e nos juros não serão suficientes para a indústria reconquistar o espaço perdido na economia do País e no mercado global. Para se recuperar, em sua visão, o setor terá de passar por uma profunda “transformação cultural”.

“Nós temos uma indústria viciada em subsídio, em tarifa de importação, em Zona Franca”, afirma. “Se a gente conseguir abrir a economia, manter uma taxa de câmbio relativamente competitiva, ter um ambiente de negócios amigável e estimular o aumento de produtividade nas empresas, não há razão para não conseguir reverter a decadência industrial do País, que vem desde os anos 1990.”

A questão, como sempre, é que a indústria brasileira resiste fortemente ao “desmame”. O lobby da “boquinha”, destinado a preservar as benesses obtidas no passado, está rolando a céu aberto em Brasília e se infiltrando no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e no Congresso. “O lobby do setor automobilístico está aí desde Juscelino Kubistchek. Ninguém tira a proteção deles. São 50 anos de proteção”, diz Volpon. “O que a gente tem de fazer é criar um mecanismo para realizar algum tipo de avaliação de custo/benefício dos programas, inclusive do ponto de vista fiscal.”  Agora, como diz o velho dito popular, “só falta combinar com os russos”.



3Reforço na poupança

Em meio às incertezas trazidas pela pandemia e ao desemprego recorde registrado no País, muita gente decidiu engordar a sua poupança. Até por conta da quarentena e do fechamento das lojas, o consumo perdeu força, apesar da recuperação registrada nos últimos meses, com o fim das medidas de isolamento social.

De janeiro a outubro, segundo o Banco Central, a captação líquida (depósitos menos saques) da caderneta de poupança, ainda a aplicação mais popular no País, chegou a R$ 144,2 bilhões, mesmo com o rendimento – de cerca de 1,6% ao ano – ficando abaixo da inflação, estimada em cerca de 3% em 2020. O resultado alcançado pela poupança durante a pandemia, turbinado pela transferência de bilhões de reais em recursos públicos para a população, por meio do pagamento do Auxílio Emergencial e pela antecipação do 13º dos aposentados, entre outras iniciativas do gênero, foi recorde para o período desde o início da série histórica, em 1995.

Com a reabertura do comércio e a retomada gradual da economia, alguns analistas esperavam que a disposição de poupar fosse diminuir sensivelmente. Mas, em outubro, último dado disponível, os depósitos voltaram a superar os saques, pelo oitavo mês seguido, com captação líquida de R$ 7 bilhões.

A percepção, ainda assim, continua a ser de que o nível robusto de captação da caderneta é um fenômeno temporário, que deverá se manter só por mais alguns meses –  inclusive por causa dos juros baixos, que desestimulam as aplicações de renda fixa, como a poupança –, e não um sinal de que a crise transformou o Brasil numa nação de poupadores.

“Uma parte dos poupadores continuará a poupar mais do que no pré-pandemia, mas menos do que no auge da crise”

Ademir Corrêa Júnior, diretor de Investimentos do Bradesco

“É uma poupança circunstancial, muito por conta da redução de gastos das famílias durante o isolamento social e de uma ingestão bilionária de recursos pelo governo com o Auxílio Emergencial”, diz Ademir Corrêa Júnior, diretor de Investimentos do Bradesco. “Essa poupança, concentrada na faixa de renda mais baixa, não espelha um comportamento que vai perdurar.”

De acordo com o próprio Corrêa Júnior, porém, uma parcela dos poupadores deverá continuar a poupar mais do que antes, embora menos do que no auge da crise. Para ele, a pandemia pode ter provocado uma mudança no comportamento do consumidor, levando-o a questionar se precisa consumir tanto quanto antes e comprar tudo o que comprava. Isso poderá se refletir nos depósitos da poupança e de outras modalidades de investimento, que também tiveram aumento de captação no período. “Surgiu uma consciência diferente na pandemia”, diz Corrêa Júnior.



4‘Coronavoucher’ repaginado

Criado no início da pandemia para atender os trabalhadores informais, os desempregados e as famílias de baixa renda, incluindo os beneficiários do Bolsa Família, o Auxílio Emergencial, também conhecido como “coronavoucher”, tem data marcada para acabar.

Em dezembro, será paga a última parcela do benefício, que foi fundamental para amenizar os efeitos da crise no País. Segundo dados oficiais, o programa – que incluiu cinco parcelas de R$ 600 de abril a agosto e mais quatro de R$ 300 a partir de setembro – atendeu perto de 65 milhões de famílias, já contando as 14,3 milhões do Bolsa Família. No total, até o fim do ano, o programa deverá consumir cerca de R$ 320 bilhões – o maior volume de recursos destinado pelo governo para o combate à pandemia e a seus efeitos sócio-econômicos.

É provável, porém, que o Auxílio Emergencial seja mantido sob nova configuração a partir de 2021, com o nome de Renda Cidadã, ainda que apenas para a parcela dos mais vulneráveis que receberam o benefício neste ano. Embora o governo ainda esteja buscando recursos para financiar o programa, a decisão política de implementá-lo parece já estar tomada. Com o pagamento do benefício, a popularidade do presidente Jair Bolsonaro, que vinha em queda livre, deu um salto em todo o País, especialmente no Norte e Nordeste, e ele não quer perder o apoio que conquistou, considerado fundamental para alavancar sua eventual tentativa de reeleição em 2022.

A ideia é que o Renda Cidadã funcione como uma espécie de Bolsa Família ampliado, para atender de 20 a 25 milhões de famílias, incluindo de 6 a 10 milhões que ficariam sem qualquer benefício com o fim do Auxílio Emergencial, a partir de janeiro. Pelas propostas iniciais, o valor do Renda Cidadã seria de R$ 300 por mês, inclusive para os atuais beneficiários do Bolsa Família, que recebiam, em média, R$ 193 mensais, de acordo com dados do governo, antes de serem incluídos no Auxílio Emergencial.

A questão é que, para aumentar o valor atual do benefício do Bolsa Família em cerca de 50% e ainda incorporar o contingente de vulneráveis que estava fora do programa e recebeu o coronavoucher, seriam necessários de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões a mais por ano – e os recursos não estão previstos na proposta orçamentária de 2021, enviada pelo governo ao Congresso.

Para tentar viabilizar o programa, apareceram sugestões de todos os tipos. Já se falou até em furar o teto de gastos, considerado essencial para  manter as contas públicas sob controle, e em usar o dinheiro de precatórios e do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).

Alguns parlamentares vieram a público defender, sem constrangimento, o prolongamento da medida que liberou os gastos do governo para o combate à pandemia ou do próprio Auxílio Emergencial, por mais três meses, em 2021. Outros propuseram a redução do valor do benefício para R$ 200 em 2021 e a sua elevação para R$ 250 em 2022 e R$ 300 em 2023.

“O governo Bolsonaro tem dificuldade de aceitar os trade offs. Na hora de fazer escolhas, trava”

Creomar de Souza, CEO diretor da consultoria Dharma Political Risk & Strategy

De seu lado, a equipe econômica chegou a propor o fim do abono salarial, do seguro defeso, do salário-família, do Farmácia Popular e até da correção anual das aposentadorias e do salário mínimo pela inflação. Mas as propostas foram rechaçadas por Bolsonaro. “Não vai tirar do pobre para dar ao paupérrimo”, afirmou o presidente.

Parece difícil para Bolsonaro entender que não dá para fazer tudo ao mesmo tempo com os recursos disponíveis e dentro das regras do jogo. “O governo Bolsonaro tem dificuldade de aceitar os trade offs. Na hora de fazer escolhas, o governo trava”, diz o analista político Creomar de Souza, CEO da consultoria Dharma Political Risk & Strategy. “A percepção de Bolsonaro é que ele tem de ganhar em todos os cenários o tempo todo, e isso não é possível.”

De um jeito ou de outro, o novo programa entrou no radar, para não deixar uma parcela considerável da população de menor renda sem assistência após o fim do coronavoucher e para atender aos interesses políticos de Bolsonaro, de alguns de ministros e de seus apoiadores no Congresso. Mesmo que a medida não seja implementada de imediato, mais cedo ou mais tarde ela deverá se tornar realidade, ampliando o “colchão” social oferecido no País aos mais pobres.



5Contas públicas no vermelho

A trajetória de contenção dos gastos públicos, implementada pela equipe econômica no primeiro ano do governo Bolsonaro, foi interrompida bruscamente em 2020, para fazer frente às demandas de saúde e de caráter econômico e social trazidas pela pandemia.

Com a dinheirama que jorrou dos cofres do governo durante a crise, autorizada pelo Congresso por meio do chamado “orçamento de guerra”, o rombo nas contas públicas se multiplicou. Segundo as previsões dos economistas, o estrago deixado pela pandemia deverá moldar o futuro do País por no mínimo mais uma década, reduzindo os recursos disponíveis, que já são escassos, para investimentos e ações sociais.

Em 2020, de acordo com as estimativas mais recentes do Ministério da Economia, o déficit primário, que exclui o pagamento dos juros para rolagem da dívida pública, deverá ficar em quase R$ 900 bilhões, um valor equivalente a cerca de 12% do PIB (Produto Interno Bruto), um recorde histórico. Incluindo os gastos com juros da dívida, que deverão consumir em torno de R$ 300 bilhões, equivalentes a 4% do PIB, o déficit nominal chegará a cerca de R$ 1,2 trilhão, ou 16% do PIB, outra marca inédita.

Com esse resultado, a dívida líquida do setor público, que exclui o setor financeiro e o Banco Central, deverá fechar o ano em 67,5% do PIB, um salto de 8,1 pontos percentuais em relação ao índice de 2019. Já a dívida bruta do governo central, que havia caído 0,7 ponto do PIB no ano passado, para 75,8% do PIB, deverá chegar a cerca de 100% do PIB no fim de 2020, alcançando quase R$ 7 trilhões.

Um estudo realizado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, aponta que a dívida bruta, que deveria parar de crescer neste ano ou no próximo, segundo as previsões feitas antes da pandemia, agora deverá seguir em alta até 2030, quando chegará a 117,6% do PIB, e só então começará a cair. “Se antes da crise a gente já tinha o desafio de ajustar as contas públicas e já era difícil fazer isso, depois da pandemia vai ficar ainda mais complicado, porque a União, os Estados e os municípios estarão numa situação fiscal ainda pior do que antes”, diz o economista Felipe Salto, diretor executivo da IFI.

Para evitar solavancos nos mercados, a equipe econômica tem dito que os gastos relacionados à pandemia ficarão restritos a 2020 e que, em 2021, o País retomará a política de ajuste fiscal praticada antes da crise. O Ministério da Economia também tem procurado reforçar o compromisso com a manutenção do teto dos gastos, que limita o crescimento das despesas públicas ao nível do ano anterior, corrigido pela inflação.


O ímpeto gastador de alguns políticos pode prevalecer, deixando o País numa situação fiscal insustentável


O problema é que a pressão para aumentar as despesas e “furar” o teto é grande, apesar de o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também ter reforçado seu compromisso com a estabilidade fiscal. O próprio presidente Jair Bolsonaro, apesar de dizer publicamente que vai respeitar o teto, “põe pilha” nas propostas que preveem a ampliação de gastos, de olho em sua provável tentativa de reeleição em 2022.

“Não tem muita margem para erro neste cenário”, afirma Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, que deixou o cargo em julho para se tornar sócio e economista-chefe do banco BTG Pactual, a partir de janeiro. “Se chegar a um ponto de os investidores não confiarem no governo, o prêmio de risco para colocar os títulos públicos no mercado vai ser muito alto, o juro vai subir muito e a coisa poderá ficar muito séria.”

No momento, em meio às discussões travadas no governo e no Congresso sobre o tema, é difícil cravar por quem os sinos vão dobrar. Ainda que a racionalidade econômica aponte para a necessidade de retomar o ajuste iniciado no pré-pandemia,o ímpeto gastador de alguns políticos pode prevalecer, deixando o País numa situação fiscal insustentável. O que se pode dizer desde já é que o estrago deixado nas contas públicas pela pandemia deverá continuar no centro do debate econômico do País por muito tempo, assim como no resto do mundo.



6'Desglobalização'

Com a desaceleração da economia mundial durante a pandemia, os negócios entre os países deverão fechar o ano com uma queda significativa. De acordo com estimativas da Organização Mundial do Comércio (OMC), as exportações globais em 2020 deverão ter uma redução que ficará entre 12,8%, no cenário otimista, e 32%, no cenário pessimista, em relação ao mesmo período do ano passado.

Mesmo que haja uma retomada da economia mundial em 2021, dificilmente o comércio internacional voltará ao patamar do pré-pandemia. A tendência é que o retorno ao nível de 2019 se dê de forma gradual, como já aconteceu em outras crises.

Para alguns analistas, porém, o efeito da pandemia na economia global vai muito além do fluxo de comércio. Segundo eles, no auge da crise, a falta de produtos como respiradores e máscaras, fabricados em grande parte pela China, reforçou o questionamento em relação ao papel desempenhado pelas cadeias internacionais de valor nas últimas décadas. Isso levará, de acordo com tal percepção, a um aumento nos índices de nacionalização ou regionalização da produção nos próximos anos – um fenômeno chamado no jargão dos economistas de “reconversão industrial”.

“O mundo pós-pandemia não vai ser o mesmo em relação à globalização”, afirma Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do antigo Ministério da Fazenda. “Isso não significa que vamos voltar aos tempos pré-globalização. Mas o mundo em que a gente vivia, presidido pelos princípios do menor custo e do menor prazo de entrega, passará por uma reformulação. A questão estratégica agora vai fazer parte do jogo.”


A pandemia reforçou a visão de que os interesses nacionais devem se sobrepor aos princípios de racionalidade econômica


De certa forma, nos últimos anos, essa guinada já vinha ocorrendo, com o acirramento da disputa geopolítica entre Estados Unidos e China. Mas a pandemia acabou alavancando, para o bem ou para o mal, a visão de que os interesses nacionais devem se sobrepor aos princípios de racionalidade econômica. “Essa ‘desglobalização’ permite que certas cadeias de produção possam voltar a países como o Brasil”, diz Tony Volpon, economista-chefe do banco suíço UBS no País e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central (BC).

No momento, ainda é difícil dizer com segurança se a “desglobalização” será um fenômeno de curta duração ou se representará uma mudança estrutural, que irá se aprofundar daqui para a frente.Em crises como a provocada pela pandemia, sempre surgem previsões sobre uma possível marcha-à-ré na globalização. Isso aconteceu também na crise financeira global, em 2008, mas, como se constatou depois, as previsões não se confirmaram e a globalização retomou o seu vigor. Nada garante, portanto, que agora não acontecerá a mesma coisa.

“No começo da pandemia, teve muito essa profecia de ‘desglobalização’ e de aumento da presença do Estado na economia, mas hoje, sete meses depois, acredito que é preciso revisar essas projeções”, afirma o economista Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do BC. “Se a gente olhar para 2021, não sei se será verdade que haverá um Estado maior e menos comércio exterior. O panorama ficou mais confuso. O impacto da pandemia é muito mais complexo do que parecia à primeira vista.”

Talvez esta crise seja diferente das outras. Talvez, o mundo, hoje, seja distinto do que era em 2008, moldado por líderes como o presidente americano, Donald Trump, derrotado pelo democrata Joe Biden nas eleições realizadas no início de novembro, e por outras autoridades populistas pelo mundo afora, que enxergam na globalização uma ameaça aos interesses nacionais. Mas, por ora, o certo é que o cenário atual, de menor fluxo comercial, deverá se manter, de uma forma ou de outra, ao menos por mais algum tempo.


TRABALHO






No auge da crise, durante o período de quarentena, a nossa forma de trabalhar passou por profundas mudanças, impulsionadas pelo uso intensivo da tecnologia. Muitas dessas mudanças deverão se manter, em maior ou menor grau, e vão moldar o mundo do trabalho no pós-pandemia.

O home office, as reuniões virtuais e os webinars se tornaram uma realidade para milhões de profissionais e para as empresas, enquanto as viagens de trabalho, especialmente as de longa distância, os eventos presenciais e os contatos pessoais, fundamentais para o desenvolvimento de networking, perderam espaço. Até o “dress code” de trabalho se alterou sensivelmente, com o uso de roupas e acessórios mais casuais, e é difícil imaginar que volte ao que era antes quando a crise passar.

Em decorrência do trabalho remoto, milhões de metros quadrados de escritórios nas principais cidades do País ficaram vazios, levando empresas de todos os portes a estudar a venda ou a devolução dos imóveis que ocupavam – um movimento que deverá se intensificar nos próximos meses e anos.

Impulsionados pelo desemprego recorde e pela transformação das relações de trabalho, que já estava em curso e acelerou-se durante a crise, milhões de brasileiros decidiram se reinventar e criar o próprio negócio, em vez de buscar um emprego com carteira assinada. Na nova era, o empreendedorismo deverá desempenhar um papel ainda mais relevante do que desempenhou até hoje.



7Conversão ao empreendedorismo

Com a transformação das relações de trabalho, impulsionada pela flexibilização da legislação trabalhista e pela crescente digitalização das empresas, que já estava em andamento antes da crise, muitos profissionais vinham trilhando o caminho do empreendedorismo para se adaptar aos novos tempos e garantir o seu sustento e o de suas famílias. Com a pandemia e a recessão brutal que a acompanhou, levando ao corte de milhões de empregos, essa tendência se acentuou de forma expressiva.

Segundo o Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), foram criados 1,47 milhão de MEIs (Microempreendedores Individuais) de janeiro a setembro de 2020 – um recorde desde o surgimento da categoria em meados de 2009 –, o que representa 13,8% a mais do que no mesmo período do ano passado. Além disso, foram criadas cerca de 700 mil micro e pequenas empresas, um aumento de pouco mais de 10% no ano sobre o total existente no fim de 2019. Em São Paulo, de acordo com a Junta Comercial do Estado,  houve o registro de 22.825 novos CNPJs só em agosto, a maior marca mensal desde 1998.

É certo que, com a crise, um número significativo de MEIs e pequenas empresas fechou as portas, embora o Sebrae não divulgue os dados relativos à mortalidade dos negócios de menor porte. O Ministério da Economia também não discrimina o fechamento de empresas por tamanho. Mas, de acordo com dados da  pasta, 682,8 mil empreendimentos de todos os portes encerraram as atividades nos primeiros oito meses do ano. É um número considerável, do qual boa parte deve ser de MEIs, mas é 54% menor do que o total de empresas abertas no País até o fim de agosto.

"O desemprego está levando as pessoas a se tornarem empreendedoras. Não por vocação genuína, mas pela necessidade de sobrevivência", afirma o presidente do Sebrae Nacional, Carlos Melles, ex-deputado federal pelo DEM. “Boa parte dos trabalhadores com carteira assinada que ficaram desempregados neste ano não voltará a ter emprego e está virando trabalhador independente”, diz o economista José Roberto Afonso, professor do Instituto de Direito Público (IDP) e pesquisador na Universidade de Lisboa. “O empregador não quer mais contratar com carteira assinada e o trabalhador não vai ficar esperando surgir uma vaga”.

“Não tem coisa melhor do que ser dono do seu tempo e poder fazer em 12 horas duas ou três atividades diferentes”

Carlos Melles, presidente do Sebrae

Apesar de os sindicatos ainda defenderem uma legislação trabalhista mais rígida, um número crescente de trabalhadores parece preferir a liberdade de trabalhar por conta própria e dá de ombros para a CLT (Consolidação da Legislação do Trabalho), criada por Getúlio Vargas em 1943 e ainda em vigor. Uma pesquisa realizada recentemente pelo Ibope com mil entregadores do IFood, Uber, Eats e Rappi mostrou que 70% preferem o modelo de trabalho flexível oferecido pelos aplicativos de entrega e a possibilidade de escolher os horários de trabalho e de poder trabalhar com várias empresas do que ter carteira assinada, para receber benefícios como 13º salário, férias remuneradas e FGTS.

“A reforma trabalhista , a ampliação da terceirização, esses avanços têm contribuído para melhorar a percepção do brasileiro de que, na verdade, não tem coisa melhor do que ser empresário dele mesmo e ser dono do seu tempo, poder fazer em 12 horas duas ou três atividades diferentes”, afirma Melles. “A gente está apostando que o aumento da procura pelo trabalho independente, com liberdade, veio para ficar”.

É como afirmou Tim Draper, veterano investidor do Vale do Silício, em entrevista recente ao repórter Bruno Capelas, do Estadão: “Nunca houve uma época tão boa para ser empreendedor, especialmente num país pobre. Hoje, quase todo mundo tem smartphone e eles servem como janelas para o mundo. Tudo é possível a partir daí.”



8Incorporação do home office

Se houve uma mudança que entrou para valer na vida dos profissionais e das empresas durante a pandemia, essa mudança foi o home office. Embora já estivesse no radar e fosse adotado em alguma medida antes da crise, ainda havia muita desconfiança e resistência das empresas – e mesmo entre os trabalhadores – em relação ao sistema.

Mas, com a adoção das medidas de isolamento social e o fechamento compulsório dos escritórios, não houve alternativa. Da noite para o dia, as empresas tiveram de adotar o trabalho remoto, em maior ou menor grau, para continuar funcionando – e o resultado foi melhor do que se poderia imaginar.

Impulsionado pelo uso intensivo da tecnologia, que já estava disponível, mas era incorporada de forma mais lenta no dia a dia dos negócios, o home office mostrou a sua eficácia e deverá se manter na rotina de trabalho no pós-pandemia.


No pós-pandemia, deverá haver uma combinação de pessoas trabalhando de forma remota e nos escritóriosPIXABAY

Segundo várias pesquisas realizadas sobre o tema, ao menos um terço das empresas pretende manter, integral ou parcialmente, o trabalho remoto depois da crise. Ao mesmo tempo, de acordo com as pesquisas, a maioria dos trabalhadores deseja continuar a trabalhar exclusivamente em home office ou ir apenas ocasionalmente ao local de trabalho. Uma parcela dos empregados – cerca de 10% dos entrevistados – chega a afirmar que não aceitaria trabalhar numa empresa que não ofereça o home office como opção aos funcionários.

“Foi uma mudança forçada de hábitos e de comportamento. Ninguém estava preparado para isso. Mas o paradigma mudou”, diz o economista Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020), que aborda a metamorfose que está acontecendo no mundo do trabalho com a digitalização e a robotização das atividades.


Para as empresas, o home office permitiu corte de custos com energia, comunicações, segurança, transporte e viagens


Além de ter funcionado bem durante a quarentena, o home office trouxe uma série de vantagens, ainda não dimensionadas com precisão, que deverão contribuir para alavancar a sua incorporação definitiva no dia a dia do trabalho.

Para as empresas, o sistema permitiu uma redução considerável de custos com energia elétrica, comunicações, segurança, transporte e viagens. Mostrou também que, provavelmente, elas não precisarão de tantos metros quadrados de escritórios no futuro e poderão reduzir o tamanho de suas sedes, cortando o gasto com aluguel ou a imobilização patrimonial.

Para os empregados, o trabalho remoto permitiu uma redução do número de horas perdidas no trânsito e dos gastos com transporte e alimentação, além de uma maior convivência com a família. Permitiu também o uso de roupas mais casuais e a redução de despesas com a compra de roupas sociais, que em geral são bem mais caras. Fora isso, ainda abriu a possibilidade de as pessoas mudarem das grandes cidades, para melhorar a qualidade de vida, sem ter de trocar de emprego.

“Muitos empresários viram que é possível fazer home office sem nenhuma perda para as empresas”

Júlio Sérgio Gomes de Almeida, economista e diretor executivo do Iedi

“O home office foi benéfico para todo mundo”, afirma Pinto. “Qual a diferença de trabalhar em casa, no sítio ou na praia, no Brasil ou na Alemanha?”,  diz o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Muitos empresários com os quais tive oportunidade de conversar viram que é possível fazer home office sem haver nenhuma perda para as empresas.”

O sucesso do home office na pandemia, porém, não significa que o sistema será usado por todos os trabalhadores e que vai continuar nos mesmos moldes nos próximos meses e anos. Com a flexibilização do isolamento social, o nível de trabalho remoto já caiu – e deverá cair ainda mais com o passar do tempo. Mas isso não significa também que vamos voltar à situação do pré-pandemia.

“O futuro do trabalho será híbrido, com algumas pessoas trabalhando nos escritórios e outras trabalhando remotamente. Vai haver também pessoas utilizando os dois modelos em diferentes dias da semana, trabalhando alguns dias no escritório e outros, em casa”, afirma Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de digitalização das relações de trabalho do Facebook (leia a entrevista completa com Adriano Macandali). “Cada setor vai ter graus diferentes de trabalho remoto”, diz Monica Lee, diretora da Jones Lang LaSalle (JLL), empresa internacional de consultoria imobiliária na área comercial.“Dependendo do tipo de atividade, isso funciona melhor ou não tão bem. Mas em todas as empresas a gente nota que o trabalho remoto veio mesmo para ficar.”


Daqui para a frente, será preciso encontrar formas de ampliar a integração de quem trabalha remotamente


Em tese, segundo uma pesquisa recente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ligado ao Ministério da Economia, cerca de 20 milhões de pessoas, o equivalente a um quinto da mão de obra, têm condições de trabalhar remotamente no País. Obviamente, tal contingente exclui os trabalhadores que atuam no “chão de fábrica”, centros de distribuição de mercadorias e no varejo, atendendo clientes nas lojas, um grupo que representa perto de 80% da força de trabalho.

Há um consenso entre os analistas de que os trabalhadores da área administrativa e da área de telemarketing estão mais habilitados, pela natureza de suas atividades, a trabalhar em home office. De acordo com Marcandali, as empresas que prestam serviços digitais também vão ter um índice mais alto de trabalho remoto, assim como os trabalhadores das áreas jurídica e financeira. Até o recrutamento de pessoal, em sua visão, poderá ser feito de forma remota, ampliando o acesso de candidatos que não vivem na mesma cidade em que se situam as sedes das empresas, hoje excluídos do processo, às vagas disponíveis.

“De nada adianta ter essas ferramentas incríveis se a gente não souber lidar com o ser humano”

Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace

Agora, em meio a tantos pontos positivos, o home office trouxe também alguns desafios, que terão de ser enfrentados pelas empresas e pelos profissionais quando a poeira baixar. Como a mudança foi repentina, nem sempre houve tempo para lidar com as dificuldades. Será preciso, por exemplo, encontrar formas de ampliar a integração e a colaboração entre os funcionários e entre as equipes e seus líderes, que tendem a diminuir com o trabalho remoto, prejudicando a criatividade e a inovação, essenciais para o desenvolvimento profissional e dos negócios.

“Aquele cafezinho em que você encontrava um colega, aquela conversa no corredor com quem pouco você fala, agora não tem mais e isso acaba dificultando a integração”, afirma o economista Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020). “No mundo virtual, você vai precisar de plataformas que potencializem a colaboração, a sinergia e a humanização que tínhamos no escritório, para não haver uma perda do outro lado”, afirma Marcandali. “De nada adianta ter essas ferramentas incríveis se a gente não souber lidar com o ser humano”, diz Marcandali. É uma preocupação que promete demandar uma atenção especial das empresas nos próximos meses e anos.



9Escritórios menores

Durante décadas, os escritórios foram um símbolo de status para as empresas. Quanto maiores e mais luxuosos, modernos e bem localizados, mais eles demonstravam a força financeira e o poder de uma empresa. De repente, na pandemia, tudo isso ficou em xeque.

Com a adoção compulsória do home office na quarentena, os escritórios ficaram desertos – e, para surpresa geral, as empresas continuaram a funcionar sem grandes dificuldades. Isso levou companhias de todos os portes, mas especialmente as mais robustas, a questionar se precisam, efetivamente, de todo o espaço de que dispunham e a estudar medidas para gastar menos com aluguel ou para reduzir a imobilização patrimonial. Algumas empresas conseguiram agir rapidamente e já devolveram a área que ocupavam antes da crise, mudando-se para locais menos valorizados, ou parte dela – uma tendência que deverá se acentuar nos próximos meses e anos.


Com o home office, as empresas se deram conta de que não precisam de todo o espaço de que dispunham antes da criseALEX SILVA/ESTADÃO

O mercado já dá sinais do que vem por aí. Em São Paulo, segundo dados da Jones Lang LaSalle (JLL), empresa internacional de consultoria imobiliária na área comercial, a demanda por escritórios de alto padrão caiu em todas as regiões nobres da cidade no segundo e no terceiro trimestres de 2020. A exceção foi a Av. Faria Lima, na zona sul, onde a absorção da oferta se manteve positiva. Na região da Av. Luís Carlos Berrini e na Vila Olímpia, também na zona sul da cidade, houve a devolução de 46.000 metros quadrados e de 11.000 mil metros quadrados de escritórios, respectivamente, entre abril e setembro.

“Na primeira fase da quarentena, muitos escritórios negociaram descontos e diferimentos pontuais, mas agora a gente está entrando num segundo estágio, em que as empresas viram que o trabalho remoto funciona e estão avaliando em que medida cada setor poderá seguir em home office e qual será o efeito disso em suas atividades”, diz Mônica Lee, diretora da JLL.

Segundo Mônica, esse movimento deverá ter um impacto nos preços dos aluguéis e no setor de construção civil, com mudanças no perfil dos escritórios de alto padrão. “Como a gente tem projeção de vacância, é bem provável que nos próximos trimestre as negociações aconteçam em condições mais flexíveis”, afirma.

Nos próximos meses e anos, quando a pandemia estiver sob controle e os escritórios voltarem a ser uma alternativa segura, os ambientes de trabalho coletivo deverão ter outra configuração. “O papel do escritório poderá ser o de proporcionar experiências corporativas, espaços de criação, para reuniões mais colaborativas”, diz  Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de digitalização das relações de trabalho do Facebook.

“As sedes das empresas deverão ter uma função mais social do que de trabalho”

Mônica Lee, diretora da JLL

Na visão de Mônica, as sedes das empresas deverão ser menores e funcionar como um hub para integração e conexão de funcionários, com uma função mais social do que de trabalho. Além disso, deverá haver uma descentralização dos escritórios, com a criação dos chamados squads, em bairros mais próximos às residências dos funcionários, para que eles não tenham de ir sempre ao quartel general. Os escritórios e as sedes das empresas certamente continuarão a existir no futuro, mas deverão ser bem diferentes do que eram antes da pandemia.



10Videoconferências no dia a dia

Durante a quarentena, com milhões de pessoas em home office, as reuniões virtuais por videoconferência se tornaram uma ferramenta indispensável para as empresas se manterem em atividade e seus  funcionários e líderes se comunicarem, traçarem estratégias e entrarem em contato com clientes e fornecedores.

De repente, aplicativos que já estavam disponíveis antes da crise, mas eram usados apenas de forma ocasional ou talvez nem isso, como Zoom, Microsoft Teams Google Meets e até o velho Skype, passaram a fazer parte do dia a dia de milhões de trabalhadores, no Brasil e no mundo. Foi um movimento tão intenso e tão bem sucedido que é difícil imaginar a nossa vida sem eles, mesmo quando a pandemia passar.

 


As videoconferências trazem economia de custos para as empresas e ganho de tempo para todo mundoZOOM/DIVULGAÇÃO

Graças à tecnologia, em boa medida, foi possível atravessar a fase mais aguda de isolamento social como se os escritórios estivessem funcionando normalmente. Ficou claro, em muitos casos, que é possível se conectar de forma virtual com qualquer um, em qualquer lugar do mundo, para fechar negócios, alinhar ideias e desenvolver relacionamentos de trabalho, sem perder produtividade.

“Num mundo digital, você é capaz, se tiver uma banda larga, de ficar mais próximo de alguém que está do outro lado do mundo do que de quem está perto”, afirma o economista Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020). “Sempre vai haver reunião presencial, mas com a opção do acesso remoto e uma presença de vídeo cada vez maior”, diz Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de digitalização das relações de trabalho do Facebook.

Além de encurtar as distâncias e de permitir a participação de centenas de pessoas na conversa e uma maior interação entre os participantes do que na comunicação por telefone, as videoconferências trazem uma economia de custos substancial para as empresas com viagens, transporte, hotéis e alimentação em tarefas fora do escritório. Há também um ganho considerável de tempo para todo mundo.

“A pandemia promoveu a aceleração de novos hábitos, como a realização de reuniões via videoconferência, que aumentam enormemente a produtividade”, afirma o economista Adriano Pitoli, ex-diretor de análise setorial e regional da Tendências Consultoria e ex-chefe do núcleo da Secretaria de Indústria e Comércio do Ministério da Economia em São Paulo. “Isso não tem mais volta.”



11Webinars em série

Antes da pandemia, ir a um seminário a respeito de um tema de seu interesse ou a uma palestra com algum “fera” em seu campo de atuação era um ritual do qual poucos profissionais abriam mão. Não só para ver e ouvir de perto as ideias dos debatedores, mas também pela oportunidade de encontrar profissionais de outras empresas e trocar ideias sobre os negócios e os assuntos em pauta. Muita gente viajava para outra cidade e até para outro País para acompanhar as apresentações presencialmente.

Alguns eventos já eram transmitidos pela internet ou gravados para ser compartilhados depois, mas a iniciativa ainda não tinha decolado para valer no País. De repente, com as restrições impostas à realização de eventos presenciais durante a quarentena, os webinars e as palestras digitais se multiplicaram e se popularizaram, transformando a área de eventos corporativos para sempre. 



Os webinars ampliam o alcance das apresentações e deverão fazer parte da rotina de trabalho daqui para a frenteREPRODUÇÃO/YOUTUBE FGV

Os webinars não têm o charme nem o burburinho dos coffee breaks. Nem favorecem o networking, que é um dos pontos altos dos eventos presenciais. Mas permitem que você possa assistir a uma apresentação de qualquer lugar e a qualquer hora, ampliando consideravelmente o alcance das apresentações. “O webinar permite o acesso de um evento e de um road show a um público que eles não tinham antes”, afirma Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de digitalização das relações de trabalho do Facebook. “Agora, é possível amplificar muito mais os eventos, para diferentes audiências.”

Obviamente, quando a pandemia passar, os seminários e as palestras presenciais vão voltar a acontecer e a atrair um público fiel. A experiência de acompanhar de perto as apresentações e poder interagir com os participantes presencialmente é insubstituível. Os webinars, porém, conquistaram o seu espaço na vida dos profissionais durante a pandemia e farão parte cada vez maior da nossa rotina de trabalho.

A tendência, de acordo com Marcandali, é de os seminários e palestras serem um misto de eventos presenciais e virtuais. “As pessoas hoje estão muito mais familiarizadas com o consumo de vídeo, ferramentas digitais e lives”, diz. “Para o mundo corporativo se conectar com essa audiência agora ficou muito mais fácil.”



12Networking digital

Um dos principais efeitos colaterais da quarentena no mundo do trabalho foi praticamente eliminar os contatos de relacionamento, que são fundamentais para “quebrar o gelo” e aproximar as pessoas.  De uma hora para outra, aquele café da manhã ou almoço profissional e aquele papo informal num evento corporativo ficaram inviáveis, deixando muita gente na mão.

Agora, com o relaxamento da quarentena, os encontros de trabalho fora do escritório estão começando a voltar e certamente vão ocupar o seu lugar na rotina dos profissionais. Mas os encontros de trabalho virtuais conquistaram o seu espaço e dificilmente irão perdê-lo daqui para a frente. Ao contrário. A tendência é de eles conquistarem um público cada vez maior.

 

O networking virtual pode parecer impossível para os mais velhos, mas não é um problema para os nativos digitaisROSE WONG/THE NEW YORK TIMES

Embora pareça impossível para os mais velhos, principalmente, fazer networking de forma digital, para os mais jovens, que tiveram uma experiência digital desde cedo, isso não é um problema. De acordo com  Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de digitalização das relações de trabalho ligada ao Facebook, a necessidade do contato presencial para desenvolver relações profissionais, é uma questão de geração.

“A nova geração, dos nativos digitais, não tem nem e-mail. Eles têm uma conta no Facebook, no Instagram, no WhatsApp, e vão buscar formas de fazer o seu networking de maneira 100% digital”, afirma. “Vão ter os grupos, os fóruns, as suas comunidades digitais, nas quais vão criar esses relacionamentos, esses vínculos. Vão suprir essa necessidade de forma diferente.”.

Na avaliação do economista Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020), é preciso levar em conta também o aspecto cultural nessa questão. Segundo ele, no Brasil há uma resistência maior do que em outros países ao networking digital. “Para a nossa cultura, é difícil fazer isso virtualmente”, diz. “Outras culturas assimilam melhor a falta de proximidade para poder fechar um negócio ou fazer um contato profissional.”

“As pessoas ainda desconfiam do virtual porque, no Brasil, elas desconfiam da sombra”

Gabriel Pinto, economista e autor do livro Passaporte para o Futuro

Pinto afirma que, de acordo com as pesquisas, o Brasil é “o lugar com a maior taxa de desconfiança interpessoal” e o país “que mais acredita em fake news”. Por isso, em sua visão, há uma necessidade maior de proximidade nos contatos de negócios. “As pessoas ainda desconfiam do virtual simplesmente porque no Brasil elas desconfiam da sombra.”

Ainda assim, mesmo que em ritmo mais lento, o networking digital deve ampliar cada vez mais a sua presença no dia a dia do trabalho no pós-pandemia, com os nativos digitais e até os mais analógicos que, eventualmente, venham a aderir ao sistema.



13Viagens de trabalho limitadas

Com as medidas de isolamento social, as viagens de trabalho, em especial as de longa distância, caíram praticamente a zero. Aos poucos, com a flexibilização da quarentena, elas estão voltando. Mas dificilmente deverão retornar ao nível de antes da pandemia – e, se voltarem, ainda levará um bom tempo para isso acontecer.

Na pandemia, com a “descoberta” das videoconferências pelas empresas, ficou claro que é possível fazer reuniões de negócios de forma virtual, sem comprometer os resultados. Deu para ver também que as reuniões virtuais permitem uma economia substancial com passagens de avião, hotéis, alimentação em viagem, táxis e aplicativos de transporte urbano. Permitem também uma economia significativa de tempo para fazer tudo isso.

 


Com a popularização das videoconferências, as viagens de negócio deverão diminuir muito nos próximos anosWERTHER SANTANA/ESTADÃO

Diante da nova realidade, muitas empresas passaram a avaliar se precisam mesmo que seus funcionários façam tantas viagens quanto faziam antes e estão estudando a adoção das videoconferências de forma permanente na rotina de trabalho.

“As viagens de negócio não vão ser mais as mesmas daqui para a frente”, afirma o economista Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020). “Deve haver uma sequela de longo prazo nas viagens de negócios”, diz o economista Adriano Pitoli, ex-diretor de análise setorial e regional da Tendências Consultoria e ex-chefe do núcleo da Secretaria de Indústria e Comércio do Ministério da Economia, em São Paulo.

Segundo Pitoli, a redução nas viagens de trabalho terá um efeito colateral perverso nas empresas aéreas e nos hotéis. Ele lembra que os aeroportos do País receberam pesados investimentos nos últimos anos e provavelmente sofrerão com a redução do tráfego aéreo por uns bons anos. “As viagens de trabalho representam um componente muito importante do negócio tanto para as companhias aéreas quanto para os aeroportos e a área de hotelaria”, afirma.

Na visão do economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, vários negócios que dependem das viagens corporativas terão de ser reinventados e isso levará ao corte de empregos que “não necessariamente” serão absorvidos por outros setores. É uma mudança que, em sua avaliação, “tem um lado negativo que dá medo”.



14Roupas casuais para trabalhar

Na quarentena, com a adoção em massa do home office, o “dress code” de trabalho mudou de forma substancial. A formalidade predominante nos escritórios perdeu espaço para as peças mais casuais, mais apropriadas para o trabalho em casa. Mesmo quem tem uma posição executiva deu uma “aliviada” no visual – e é difícil imaginar que, quando tudo isso passar, as coisas vão voltar a ser como no pré-pandemia.

“A gente tinha alguns padrões, que já estavam estabelecidos há muito tempo, e seguia sem pensar. Com todo mundo em home office, as pessoas ficaram mais casuais na maneira de vestir”, diz a empresária e consultora Alice Ferraz, colunista do Estadão e CEO da F*Hits, plataforma de influenciadores digitais nas áreas de moda, beleza e comportamento. “Isso não vai voltar a ser como antes tão rápido. Tenho a sensação de que talvez nem volte.”

 
 

Com a adoção do home office pelas empresas, até os executivos ficaram mais casuais na forma de se vestirARQUIVO PESSOAL

Segundo Alice, no Brasil, já predominava uma forma de se vestir mais casual. A nova geração, também, já adotava um código de vestuário bem mais informal. Os executivos, porém, “se vestiam de executivos” e na pandemia acabaram mudando o estilo.

“É esquisito a pessoa estar de terno e gravata numa ‘conference call’, mesmo que seja um executivo, a não ser que tenha um cargo público. As mulheres também não vão usar salto alto para fazer um Zoom”, afirma. “Eu tenho feito Zoom com pessoas que trabalham em banco e em áreas que tinham um ‘dress code’ mais formal antes da pandemia e nunca imaginei que estariam vestidos como estão.”

“O consumo de moda mudou completamente. As marcas terão de se reinventar para se adaptar aos novos tempos”

Alice Ferraz, empresária e CEO da plataforma de influenciadores digitais de moda e beleza F*Hits

Há relatos de executivos que vestem camisas mais casuais com paletó ou uma camisa pólo para trabalhar em casa, mas da cintura para baixo ficam de bermuda e tênis, porque é uma área que não costuma aparecer nas videoconferências.  Um executivo contou que manteve o hábito de vestir um ‘costume’ e uma camisa social para trabalhar em casa, mas, em vez de sapato, usava chinelo.

Numa foto que viralizou nas redes sociais, a editora-chefe da Vogue americana, Anna Wintour, aparece em home office vestindo um estiloso moletom vermelho, com uma faixa branca nas laterais, e um suéter vinho de lã, com largas listras pretas horizontais.”Não há nada como estar em casa para um verdadeiro conforto”, disse a jornalista em seu perfil no Instagram.

Alice afirma que a reação das mulheres e dos homens neste caso é bem diferente. “O homem toma um banho, dá uma arrumada básica, e tudo bem. A mulher, mesmo com uma camiseta mais casual, uma roupa mais confortável, e um sapato flat ou uma rasteirinha, quer estar bem apresentada, colocar um acessório, um brinco, um colar”, diz. “Esse ritual de a mulher se arrumar a anima a passar o dia trabalhando em casa.”

A mudança no guarda-roupa na pandemia traz também alguns efeitos colaterais, que deverão ter um efeito de longo prazo na indústria da moda. As roupas casuais, em geral, são bem mais baratas do que as sociais, reduzindo sensivelmente os gastos dos profissionais com vestuário. “O consumo de moda mudou completamente”, afirma Alice. “Quando a pandemia, passar vamos ter de entender até que ponto será uma mudança permanente e como as marcas terão de se reinventar para se adaptar aos novos tempos.”


CONSUMO



Com o fechamento do comércio durante a quarentena, a nossa forma de comprar e de vender se tornou quase 100% digital. Basicamente, só os hiper e supermercados, além do pequeno varejo de alimentos,  mantiveram as portas abertas num primeiro momento. Mas, mesmo nestes casos, muita gente preferiu fazer as compras online, quando possível.

Agora, com a reabertura do varejo, as lojas de rua, que vinham perdendo espaço nos últimos anos, ganharam novo impulso. Por ora, um contingente considerável de consumidores ainda procura evitar os shoppings, que são espaços fechados e mais propensos a atrair aglomerações.

Como já era esperado, o e-commerce caiu um pouco com a volta do varejo a uma relativa normalidade, mas ainda continua bem acima do nível pré-pandemia. A tendência é de o comércio eletrônico se consolidar no novo patamar e voltar a crescer gradualmente logo mais.

Com o delivery está ocorrendo um fenômeno semelhante. Apesar da ligeira queda na demanda após a reabertura de bares e restaurantes, o delivery continua a ser a alternativa preferida por muitos consumidores.



15Expansão do comércio eletrônico

Durante o período de isolamento social, o comércio eletrônico, que já vinha em alta há anos, cresceu em progressão geométrica no País. De repente, todo mundo, inclusive os mais idosos, que tinham maior resistência em aderir ao sistema, passou a comprar quase tudo online.

Agora, com a flexibilização da quarentena e a reabertura do comércio, as vendas pela internet registraram um ligeiro recuo, mas continuam bem acima do nível de antes da pandemia. A tendência, com a crescente digitalização da população, é que o e-commerce se consolide em um novo patamar e volte a crescer com consistência em breve.

Segundo dados da Abcomm (Associação Brasileira de Comércio Eletrônico), o e-commerce teve um crescimento robusto durante a crise, tanto em faturamento como em número de transações. De janeiro a agosto deste ano, o número de pedidos aumentou 65,7%, passando de 63,4 milhões para 105,1 milhões, enquanto o faturamento cresceu 56,8%, de R$ 26,7 bilhões para R$ 41,9 bilhões.

Em setembro, de acordo com um levantamento feito pela Corebiz, empresa de marketing digital para o varejo, houve uma pequena queda nas transações digitais em relação a agosto. O resultado, porém, ainda ficou bem acima do registrado no mesmo mês do ano passado. No setor de casa e construção, por exemplo, a queda foi de 0,5% em relação a agosto, mas, em comparação com setembro do ano passado, o crescimento ainda alcança 97%. Na área de moda, a redução também foi de 0,5% em relação ao mês anterior, mas o resultado em relação a setembro de 2019 ainda chega a 77%.

“Com a pandemia e tudo o que a gente conseguiu avançar em comércio eletrônico nesse período, o Brasil tem hoje entre 38 milhões e 42 milhões de consumidores online, dependendo da fonte, o que é quase o dobro do que a gente tinha antes”, diz Fernando Gambôa, sócio no Brasil da KPMG, uma empresa internacional de consultoria, e responsável pela área de consumo e varejo. “Mesmo assim, isso representa apenas 20% da população brasileira. O espaço para crescer, portanto, é muito grande.”  (leia a entrevista completa de Fernando Gâmboa sobre o impacto da pandemia nos hábitos de consumo e no varejo) 

Na visão de Gambôa, não é por acaso que, durante a crise, o Mercado Livre se tornou a empresa de capital aberto com o maior valor de mercado da América Latina, de US$ 64,7 bilhões (R$ 368,7 bilhões). “Ninguém esperava isso, porque os ativos de uma Petrobrás e de uma Vale são muito maiores que os do Mercado Livre.”

“Quando o pequeno varejo vai ao e-commerce, abre um tremendo leque de oportunidades”

Fernando Gambôa, sócio da KPMG no Brasil e responsáve pela área de consumo e varejo

Na quarentena, os pequenos negócios, que estavam ausentes do e-commerce, entraram no jogo, associando-se a um market place, como o da Lojas Americanas, o da Magalu e o da Amazon. De acordo com a Abcomm, cerca de 150 mil novas lojas virtuais surgiram entre março e julho, uma média de 30 mil por mês ou quase uma nova loja por minuto, enquanto antes da pandemia a média era de 10 mil lojas por mês. Os pequenos varejistas fincaram também sua bandeira nas redes sociais, para ampliar as vendas online e interagir com a clientela.

Diante do sucesso que alcançaram, segundo Gambôa, muitas empresas de menor porte passaram a questionar se faz sentido manter as lojas físicas, cujos aluguéis custam caro, em vez de ficar só no mundo virtual, instaladas em locais menos valorizados e alcançando um número muito maior de clientes. “Quando o pequeno varejista vai ao e-commerce, abre um tremendo leque de oportunidades”, afirma. “Cria o varejo sem fronteiras.”

“Mesmo para a Amazon é difícil gerar lucratividade no e-commerce”

Adriano Pitoli, economista e consultor, ex-diretor de análise setorial e regional da Tendências Consultoria

Para o economista Adriano Pitoli, ex-diretor de análise setorial e regional da Tendências Consultoria e ex-chefe do núcleo da Secretaria de Indústria e Comércio do Ministério da Economia em São Paulo, a pandemia trouxe também grandes desafios para as grandes redes de varejo, que já estavam estabelecidas no e-commerce.

Embora sejam festejadas pelos investidores e tenham aumentado muito o faturamento no e-commerce durante a pandemia, as grandes redes ainda não comprovaram que seus modelos de negócios digitais são lucrativos. “É duro ganhar dinheiro nesse mercado. Mesmo para a Amazon, é difícil gerar lucratividade”, diz. “Até pouco tempo atrás, o que estava dando lucro para a Amazon era o serviço de nuvem e não o comércio eletrônico.”

Segundo Pitoli, a forte concorrência entre as redes na venda de bens industrializados de alto valor agregado, como as TVs, leva à redução das margens de lucro. “Se um site está oferecendo uma TV da marca ‘X’ por R$ 5 mil e no site vizinho o mesmo aparelho está por R$ 4.999, você clica no de R$ 4.999.”

Além disso, na pandemia, com as lojas fechadas, os próprios fabricantes passaram a oferecer seus produtos diretamente ao consumidor, ampliando ainda mais a concorrência. Como se pode observar, ainda há muito a acontecer nesta área e a disputa pelo mercado só tende a crescer. Melhor para o consumidor, que incorporou de vez o e-commerce em seu dia a dia.



16Revitalização das lojas de rua

Um dos principais efeitos da pandemia no varejo foi a revitalização das lojas de rua, que vinham perdendo espaço há anos no País, e a redução na atratividade dos shoppings. Passados quase cinco meses da reabertura, os shoppings ainda não conseguiram retomar o lugar que ocupavam antes da crise e é difícil dizer hoje se algum dia conseguirão fazê-lo.

Embora muita gente esteja agindo como se pandemia tivesse acabado, uma parcela considerável da população continua preocupada com o contágio, procurando manter um certo distanciamento social. Por isso, quando precisa sair de casa para ir às compras, está dando preferência ao varejo de rua, que pode atender os clientes na calçada, se for o caso, em lugar dos shoppings, que são locais fechados e tendem a ter maior aglomeração de consumidores.

Muitos varejistas que haviam deixado de lado as lojas de rua também voltaram a enxergá-las como uma alternativa para rentabilizar os seus negócios, estimulados pelo crescimento do comércio eletrônico e pela queda substancial do movimento dos shoppings em relação ao pré-pandemia.


As lojas de rua permitem a manutenção de um estoque segregado para vendas online sem onerar muito o custoWERTHER SANTANA/ESTADÃO

Com a redução do faturamento das lojas de shopping, a viabilidade econômica de manter um ponto de altíssimo custo ficou em xeque. “Todo mundo entendeu que, migrando para loja de rua, barateia o seu custo e pode criar um estoque segregado para as vendas online, para continuar vivendo do e-commerce”, afirma Fernando Gambôa, sócio no Brasil da KPMG, uma empresa internacional de consultoria, e responsável pela área de consumo e varejo. “Se você usar uma loja de shopping para fazer e-commerce, cada produto que enviar para um cliente vai ter de pagar uma porcentagem para o shopping, coisa que no varejo de rua não acontece.”

Segundo Gambôa, a tendência é haver um aumento na devolução de espaços nos shoppings e uma redução no interesse das marcas por buscar novos empreendimentos do gênero para se instalar. Isso deverá levar a uma redução dos lançamentos de shoppings no País nos próximos meses e anos. “Para lançar um novo shopping agora ficou complicado”, diz.

No exterior, já antes da pandemia, de acordo com ele, os shoppings estavam se reinventando e se transformando em grandes centros de entretenimento, “com umas lojas do lado”. A questão é que, com o coronavírus, esse modelo, que favorece aglomerações ainda maiores do que os shoppings tradicionais, também ficou na berlinda. De um jeito ou de outro, os próximos anos prometem aprofundar as mudanças ocorridas no varejo durante a crise.



17Delivery no cardápio

O delivery já era uma realidade no País muito antes da pandemia. Mas, na quarentena, os motoqueiros que prestam serviço de entrega em domicílio tomaram conta das ruas como nunca, impulsionados por aplicativos como iFood, Rappi e Uber Eats. Até bebidas produzidas em bares da moda passaram a ser entregues em casa, ampliando o cardápio à disposição da clientela.

Em São Paulo, restaurantes estrelados, como o Fasano, e chefs famosos, como Erick Jacquin, do Presidént, e Carla Pernambuco, do Carlota, que nunca haviam aderido ao sistema, entraram na dança, para manter o negócio em funcionamento durante a fase mais aguda de isolamento social.

Com a adesão de nomes de destaque da cena gastronômica ao delivery, as velhas quentinhas de alumínio ou isopor cederam espaço a embalagens mais sofisticadas e mais criativas. Além de manter a textura dos ingredientes e o visual dos pratos, elas ainda deram um toque de classe ao serviço.

 

Na pandemia, restaurantes estrelados, como o Fasano, criaram embalagens mais sofisticadas para o deliveryPATRÍCIA FERRAZ/ESTADÃO

Mesmo com a reabertura de bares e restaurantes para atendimento presencial, o movimento ainda está bem abaixo do que no pré-pandemia. Muita gente ainda não se sente segura em fazer as refeições num ambiente fechado, com as mesas frequentemente distribuídas em desacordo com o protocolo e com todos os clientes sem máscara. A tendência, portanto, é o delivery continuar a turbinar o faturamento, que continua bem mais baixo do que antes da crise.

Em outubro, segundo a Cielo, uma das principais empresas de administração de cartões de crédito, a receita de bares e restaurantes ainda foi 26,8% menor do que antes da covid-19, mesmo com o delivery, e a previsão é de que ainda levará um bom tempo para retornar ao patamar anterior.

De acordo o Instituto Foodservice Brasil (IFB), uma organização que congrega as principais empresas do setor de alimentos – fabricantes, prestadores de serviço e operadores --, os gastos com refeições preparadas fora de casa deverão ficar em R$ 137 bilhões em 2020 e em 187,2 bilhões em 2021. Se isso se confirmar, a queda no faturamento deverá alcançar 36,2% em 2020 e 13% no ano que vem em relação aos R$ 215 bilhões registrados em 2019. “Muitas empresas continuarão a manter os funcionários em home office e aquele movimento que havia perto dos escritórios pode nunca mais voltar a ser o mesmo”, diz Ingrid Devisate, diretora executiva do IFB.


A ideia de estar no mesmo ambiente com várias pessoas sem máscara ainda assusta muita gente


Não por acaso o Burger King abriu no Brasil a primeira ghost kitchen (“cozinha fantasma”) da rede no mundo, para atender o aumento na demanda pelo delivery e otimizar a entrega presencial nos restaurantes do grupo. O iFood, por sua vez, recebeu aval da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) para começar a operar com drones. A ideia é usar os equipamentos para fazer a primeira parte do trajeto, até um posto intermediário, onde os pedidos serão distribuídos os entregadores, para ser levados aos endereços dos clientes. São  apostas que reforçam a percepção de que o delivery deverá continuar a ter uma presença relevante na  vida de todos nós mesmo depois que a pandemia se for.


COTIDIANO

 



Além das mudanças ocorridas na economia, nas relações de trabalho e no consumo, a pandemia provocou uma profunda transformação na área educacional, nas consultas médicas e nos hábitos de higiene da população.

O ensino a distância e a telemedicina, que já vinham ganhando espaço antes da crise, ainda que em forma lenta e gradual, entraram de vez no dia a dia de professores e alunos, médicos e pacientes. As máscaras e o álcool gel passaram a fazer parte do nosso cotidiano, apesar de muita gente já ter deixado de usá-los como deveriam, em franco desrespeito às recomendações sanitárias.



18Adoção do ensino virtual

Antes do coronavírus, muitos cursos livres já eram realizados de forma 100% virtual, embora ainda fossem raras as experiências do gênero na educação formal do País. De repente, com a pandemia e o fechamento de escolas e universidades, as aulas digitais tornaram-se uma realidade para alunos, professores e instituições de ensino. Mesmo diante das dificuldades trazidas por uma mudança desta natureza, os resultados foram promissores e transformaram para sempre a educação no País.

 


No pós-pandemia, deverá predominar o ensino híbrido, que combina educação a distância e presencialRENATO CUKIER/ESTADÃO

Hoje, apesar de a maioria das escolas e universidades já terem retomado as aulas presenciais, a situação ainda está longe de voltar à normalidade. Para garantir o distanciamento mínimo em sala de aula, as escolas ainda não estão recebendo todos os alunos ao mesmo tempo – e é difícil prever quando isso vai acontecer. Muitas instituições estão mantendo, em alguma medida, o ensino virtual e deverão incorporar o sistema em definitivo, como uma ferramenta preciosa de ensino, quando a pandemia passar.

“Acho que o ensino a distância, acelerado pela pandemia, é uma tendência sem volta”, afirma a empresária Ana Maria Diniz, uma das fundadoras do movimento Todos pela Educação, parceria público-privada que visa a melhorar a qualidade da educação básica,  e presidente do conselho do Instituto Península, braço social dos negócios de sua família, que mantém o Instituto Singularidades, voltado para a formação de professores.

Segundo Ana Maria, também colaboradora do Estadão, daqui para a frente deverá predominar o ensino híbrido, que combina a educação presencial e a distância. “As atividades individuais, como fazer pesquisas e assistir vídeos, usando a tecnologia para isso, poderão ser feitas remotamente”, diz. “Agora, o desenvolvimento da criatividade coletiva e da parte socioemocional das crianças, que depende do contato com os colegas, com o professor e com a hierarquia das escolas e que é muito importante para a formação do caráter, terá de ser necessariamente presencial.”

“O ensino a distância funciona, é produtivo e permite que quem trabalha possa estudar na hora que lhe convém”

Ana Maria Diniz, empresária, fundadora do movimento Todos pela Educação e presidente do conselho do Instituto Península

No caso das universidades, a legislação só permite hoje que até 20% dos cursos sejam dados a distância, mas esse porcentual tem de ser ampliado, de acordo com Ana Maria, para 40% ou 50% ou até mais. “Esse limite não faz sentido”, afirma. “O ensino a distância funciona, é produtivo e permite que o aluno possa estudar na hora que lhe convém e que quem trabalha consiga administrar melhor a sua agenda.”

Em sua avaliação, há duas questões relevantes que surgiram durante a quarentena e que terão de ser endereçadas a partir de agora: o treinamento dos professores, para que haja melhor uso da tecnologia no ensino, e o aumento da desigualdade entre os estudantes das escolas privadas e os das escolas públicas, que não têm computadores ou tablets nem conexão à internet.

A ampliação do ensino a distância nos próximos anos, de acordo com Ana Maria, deverá levar também a um questionamento sobre o tamanho das escolas. Como todas as crianças não precisarão ir à escola ao mesmo tempo, os prédios e as salas de aula poderão ser menores. Isso permitirá a expansão do ensino em período integral, especialmente nas escolas públicas, às quais faltam recursos para implementar o sistema de forma 100% presencial.



19Adesão à telemedicina

Com o coronavírus à espreita e a multiplicação dos casos graves de contágio no País, o acompanhamento dos portadores de doenças crônicas e as consultas presenciais de quem estava com um problema ocasional de saúde viraram atividades de altíssimo risco para médicos, pacientes e suas famílias.

Mas, graças à telemedicina, foi possível contornar as dificuldades do momento e prestar algum tipo de assistência médica, mesmo que fosse apenas para monitorar a situação dos pacientes, dar alguma orientação ou solicitar exames que permitissem um diagnóstico mais preciso de sintomas apresentados por eles.

Embora muitas organizações do setor de saúde resistissem há anos à adoção das consultas remotas de forma massificada, elas se transformaram subitamente na única opção segura para o sistema continuar funcionando e para que pacientes e médicos evitassem o contato físico na pandemia.

Sem alternativa, o Conselho Federal de Medicina (CFM) não teve outra saída, então, a não ser a de reconhecer, em 19 de março, a necessidade de ampliar a prática da assistência médica remota no País, o que levou o Ministério da Saúde a publicar no dia seguinte uma portaria liberando, “em caráter excepcional e temporário”, o uso da telemedicina.

 

Na crise, a telemedicina mostrou que pode desempenhar um papel relevante no sistema de saúdeFABIO H MENDES/E6 IMAGENS/EINSTEIN

Com a popularização de seu uso na quarentena, a telemedicina mostrou que muitas das restrições levantadas contra ela por profissionais de saúde tinham mais a ver com preconceitos contra a tecnologia do que com problemas concretos apresentados pelo atendimento remoto. Deu para a telemedicina mostrar, também, a sua eficácia, para quem ainda tinha alguma dúvida sobre o papel que ela pode representar no sistema de saúde daqui para a frente.

“Houve uma grande aceitação da telemedicina não só por parte dos pacientes, mas também dos médicos”, afirma Fernando Pedro, diretor técnico da Amil, uma das principais empresas de assistência médica do País, que adotou o sistema de forma ampla na pandemia (leia a entrevista completa de Fernando Pedro). “A telemedicina contribuiu muito para garantir tranquilidade e segurança na prestação de assistência médica durante a crise.”

Segundo Pedro, a Amil completou recentemente meio milhão de acessos ao sistema de consulta digital. Os atendimentos passaram de 15 por dia antes do coronavírus, quando o sistema ainda estava em fase experimental, para 2.800 atendimentos por dia, no fim de setembro. Até os pacientes com mais de 65 anos, que em geral são mais resistentes ao uso da tecnologia, em especial na área de saúde, passaram a recorrer à telemedicina na pandemia, representando 16% do total de atendimentos remotos da Amil. “É outra realidade que a gente está vivendo”, diz Pedro.

“O médico tem de estar num ambiente em que o paciente se sinta seguro e possa criar um elo de confiança com ele”

Fernando Pedro, diretor médico da Amil

Além de garantir o acesso de pacientes ao sistema de saúde durante a pandemia e de mantê-los distantes de quem precisava de cuidados urgentes, a telemedicina apresentou outras vantagens. Ao evitar os deslocamentos e as longas jornadas na sala de espera de consultórios, otimizou o tempo de médicos e pacientes e trouxe maior conveniência para ambos, ao permitir que pacientes de uma região das grandes cidades ou de outros municípios tivessem acesso aos médicos de sua preferência que atendem em outras localidades.Com tudo isso, levou a um aumento de produtividade e de redução geral de custos no sistema.

Mas, na avaliação de Pedro, a telemedicina deve ser vista “como mais um canal” de comunicação entre médico e paciente, que precisa ser regulamentada, para garantir qualidade e segurança aos usuários, e não como uma solução única, que sirva para todas as ocasiões e substitua a consulta presencial


No pós-pandemia, a regulamentação de telemedicina tem de levar em conta as experiências de sucesso na crise


Para ele, a telemedicina deve ser entendida como um ato médico, com toda a liturgia a ele associada. “O médico tem de estar num ambiente em que o paciente se sinta seguro e crie um elo de confiança com ele”, afirma. “O médico não pode prestar um atendimento e de repente o paciente ver que ele está atendendo o telefone ou respondendo mensagens de WhatsApp”, afirma. “A gente também não pode correr o risco de o médico fazer um atendimento remoto no carro ou de a consulta virtual ser interrompida pelo seu filho ou por sua mulher”.

De qualquer forma, pelo que se viu na pandemia, a telemedicina deverá ocupar um espaço cada vez maior no sistema de saúde do País e ser incorporada, com menos resistência, ao relacionamento cotidiano de médicos e pacientes.



20Opção pelo carro próprio

A pandemia provocou uma inversão radical de comportamento em relação à mobilidade. Ao contrário do que acontecia antes, quando se observava uma tendência de aumento no uso do transporte coletivo, de aplicativos como o Uber e até de veículos compartilhados, o interesse pelo carro próprio voltou a crescer.

De repente, a preocupação de muita gente com o efeito das emissões de carbono no aquecimento global cedeu lugar à busca por segurança e proteção contra o contágio pela covid-19. Quem tinha condições de fazer seus deslocamentos diários com carro próprio passou a fazê-lo. Não só em deslocamentos urbanos do dia a dia, mas também nas viagens de lazer e de trabalho mais curtas, que ganharam espaço com a pandemia, para reduzir o risco de uma exposição ao vírus em aviões e até em ônibus interurbanos e interestaduais usados nas viagens mais longas. o carro virou até opção de entretenimento, com o renascimento dos cinemas drive-in.

 

Enquanto durar a pandemia, quem puder vai continuar privilegiando o transporte individual, para reduzir o risco de contágioSHUTTERSTOCK

Não dá para dizer no momento se essa tendência terá vida longa, mas não há dúvida de que, ao menos por mais alguns meses ou enquanto durar a pandemia, quem puder vai continuar a dar preferência para o transporte individual. Muitas pessoas usam máscaras até em seus próprios carros, como recomenda o protocolo, e evitam o uso de estacionamentos, para não ter de compartilhar o veículo com manobristas que nem sempre tomam as medidas de proteção necessárias contra o vírus.

Se a pandemia levou ao fechamento de revendas e derrubou as vendas de carros particulares nos primeiros meses, agora ela está estimulando, junto com os juros baixos, os negócios. Segundo informações da Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos), a venda de veículos registrou a sexta alta mensal consecutiva em setembro.


No crise, o contingente de chineses que não têm carro e querem comprar um aumentou de 34% para 66%


Em outros países, a tendência é a mesma, para desespero dos ecologistas. De acordo com uma pesquisa realizada pela consultoria francesa Capgemini com 11 mil pessoas em 11 países, 35% dos entrevistados disseram que querem comprar um carro novo ainda em 2020. Na China, epicentro da epidemia, um levantamento feito pelo Instituto Ipsos mostrou que 66% dos chineses que não têm veículo próprio querem comprar um carro, quase o dobro do índice registrado no pré-pandemia.



21Higienização contínua

Com a pandemia, os hábitos de higiene e limpeza ganharam ainda mais importância, para reduzir as chances de contágio de cada um de nós. Alguns produtos, como as máscaras, usadas principalmente por profissionais de saúde no pré-pandemia, tornaram-se um acessório indispensável da noite para o dia. O álcool gel, que tinha uso limitado, virou um artigo de primeira necessidade e passou a ser oferecido gratuitamente em locais públicos, estabelecimentos comerciais, escritórios e em bares e restaurantes.

Embora muita gente já se comporte como se a pandemia tivesse passado, apesar das centenas de mortes e milhares de novos casos de contaminação por coronavírus registrados a cada dia, os novos hábitos de higiene e limpeza foram incorporados por uma parcela significativa da população e deverão prosseguir mesmo depois que a crise passar.

 


Os produtos da “cesta covid-19 de consumo”, como o álcool em gel, viraram artigos de primeira necessidade na vida de todos nósTIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

“Percebemos uma mudança de comportamento do brasileiro tanto dentro de casa como na retomada gradual das atividades”, afirma João Carlos Basílio, presidente executivo da Abihpec (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos).

No primeiro semestre de 2020, segundo dados da entidade, houve um crescimento de 2.067% no consumo de álcool em gel em relação ao mesmo período do ano passado. Outros itens da chamada “cesta covid-19 de consumo” também registraram um aumento expressivo nas vendas no período, como lenços e toalhas de papel, papel higiênico e sabonete líquido, com alta de 75%, 39,5%, 20,5% e 18,2%, respectivamente.

A preocupação em reduzir o risco de contágio se refletiu também no maior uso de produtos para limpeza doméstica, como desinfetantes, águas sanitárias e o próprio álcool em gel, e para higienização de ambientes coletivos, como shopping centers, trens, metrô e ônibus. Muitas pessoas passaram a higienizar até os produtos comprados nos supermercados antes levá-los para dentro de casa, seguindo as recomendações de médicos e sanitaristas.


Mesmo com a volta dos profissionais às empresas, o consumo de produtos de limpeza deve continuar alto


“Nós tivemos uma mudança de comportamento das pessoas em relação a limpeza”, diz Paulo Engler, diretor executivo da Abipla, que reúne os fabricantes de produtos de higiene, limpeza e saneantes para uso doméstico e profissional. “Acredito que as pessoas agregaram ao seu cotidiano um cuidado maior com a higiene pessoal e a limpeza do ambiente doméstico e de trabalho, e deverão manter isso pelo menos nos próximos anos.”

Segundo Engler, mesmo que a volta dos profissionais às empresas provoque uma queda no uso de produtos de limpeza doméstica, ela será compensada pelo aumento do consumo de itens de uso profissional e empresarial. Diante do “choque” provocado pela pandemia, ainda vai levar um bom tempo, se é que isso vá mesmo acontecer algum dia, até que todo mundo se sinta à vontade para sair por aí sem se proteger de forma adequada e para que as medidas de higienização e de prevenção de contágio nos locais públicos sejam relaxadas.


LAZER E ENTRETENIMENTO





Em meio à pandemia, com a proibição de público nos grandes shows, as lives conquistaram um espaço próprio no cardápio do entretenimento, que dificilmente será perdido.

Diante das restrições de muitos países ao turismo internacional e das precauções das pessoas e das famílias contra o contágio, as viagens de curta distância, feitas de carro, para locais mais isolados e de menor risco, como sítios, fazendas e casas de campo, seduziram muita gente, aquecendo o uso de serviços como o Airbnb. Os aluguéis de casas de temporada em locais próximos da natureza e das grandes metrópoles viraram uma opção para quem ficou confinado em home office e pode trabalhar de qualquer lugar.

Embora as academias tenham voltado a funcionar, a demanda ainda está bem abaixo do pré-pandemia. A prática dos esportes coletivos por atletas amadores ainda preocupa muita gente e continua proibida em São Paulo. A saída preferida por um grande número de pessoas para se exercitar ainda continua ser a prática de modalidades de menor risco, como a corrida, o ciclismo e o tênis.



22Cultura em domicílio

O impacto da pandemia no mundo do entretenimento foi colossal, tanto do ponto de vista do público como da indústria cultural, cujos prejuízos se contam na casa das dezenas de bilhões de dólares. Com a proibição de realização de eventos artísticos e culturais, além do fechamento de museus, cinemas, teatros e galerias de arte, os artistas e toda a cadeia de produção do setor ficaram “a ver navios” -- e a nossa vida tornou-se mais pobre e sem graça.

Embora a internet já fosse usada pela indústria cultural antes da crise, a pandemia favoreceu a sua incorporação definitiva como um canal de difusão do entretenimento e das artes. Neste período, a indústria cultural ampliou de forma considerável a sua digitalização, oferecendo ao público, em qualquer lugar do planeta, acesso a uma programação diversificada para se divertir e alimentar o espírito. Até companhias de dança aderiram às transmissões digitais de suas apresentações.


Depois que tudo isso passar, as lives deverão manter um lugar de destaque na nossa vidaYOUTUBE/SANDY&JUNIOR

As lives de música se multiplicaram, com o patrocínio de shows virtuais, de grandes artistas nacionais e internacionais, por grandes empresas. No Brasil, as lives se tornaram um case global. Sete das dez maiores lives de música do YouTube no mundo em todos os tempos são brasileiras, segundo a Alphabet Inc., controladora do Google. Fazem parte da lista Marilia Mendonça, a campeoníssima, com 3,3 milhões de visualizações, Jorge e Mateus, os vice-campeões, Gustavo Lima, o quarto colocado, e Sandy e Júnior, que ficaram na quinta posição.

O fenômeno foi tema de uma reportagem da agência Reuters, publicada pelo New York Times, no final de abril. “As lives se tornaram o novo horário nobre dos brasileiros”, diz Sandra Jimenez, responsável pelas parcerias de música do YouTube na América Latina, na reportagem.

Os serviços de streaming de filmes, que já vinham atraindo um público significativo antes da crise, conquistaram uma legião de novos telespectadores e assinantes em poucos meses. Só a Netflix ganhou 10,1 milhões de associados em todo o mundo no auge da pandemia, entre abril e junho, de acordo com dados da empresa, o equivalente a 5,5% do total de 182,8 milhões de assinantes amealhados pelo serviço desde a sua criação, em 2010.

“Esse mundo digital, em que você compra até roupa para ficar mais bonito virtualmente, agora é o lugar do entretenimento”

Ricardo Dias, vice-presidente de marketing da Ambev

No Brasil, as buscas de conteúdo da  Amazon Prime Video tiveram um crescimento exponencial, de 200%, segundo uma pesquisa feita pela Just Watch, plataforma de buscas de filmes por streaming e de vídeos on demand, embora a plataforma ainda seja menos procurada que a da Netflix. Algo parecido aconteceu, em menor escala, com o Telecine Play, a Globoplay e a HBO Go.

É claro que, para os artistas, nada substitui o contato direto com os fãs. Para o público, nada substitui a experiência de assistir a uma performance dos nossos artistas favoritos ou ver a obra dos grandes pintores presencialmente. Ou até a experiência de assistir um filme numa tela grande e numa sala escura. Mas, mesmo depois que a pandemia passar, os eventos artísticos e culturais digitais deverão manter um lugar de destaque na nossa vida, ao permitir que a gente tenha acesso remoto a apresentações e exibições que, de outra forma, jamais teríamos, e ao disponibilizar uma audiência global para artistas e produtores culturais.

“Eu realmente acredito que as lives vieram para ficar. Esse mundo digital, em que você compra até roupa para ficar mais bonito virtualmente, agora é o lugar do entretenimento”, afirmou recentemente Ricardo Dias, vice-presidente de marketing da Ambev, que patrocinou as principais lives de música sertaneja na pandemia, durante bate papo com o apresentador e narrador de games William Gordox, no canal da empresa no YouTube. “É óbvio que você vai ter a volta dos shows ao vivo. Isso não vai mudar. É uma necessidade básica do ser humano, mas as lives vão continuar acontecendo.”


A pandemia acabou antecipando o futuro do entretenimento no mundo


Agora, para o modelo ser sustentável, ainda falta encontrar uma forma de garantir um retorno financeiro recorrente  aos eventos virtuais. Mesmo levando em conta que o custo de produção e distribuição é muito menor do que o de eventos presenciais, é preciso encontrar uma maneira de “monetizá-los”, como se diz no meio digital, para garantir um fluxo diversificado de projetos e viabilizar a organização de eventos em grande escala.

Talvez, o caminho esteja no patrocínio das lives pelas grandes marcas, como fez a Ambev, com  a distribuição gratuita do conteúdo. Provavelmente, outros modelos surgirão nos próximos meses e anos. Agora, independentemente de quais modelos irão moldar o show business, o que se pode dizer, desde já, é que a pandemia acabou antecipando o futuro do entretenimento no mundo.



23Turismo de curta distância

Diante das restrições à entrada de estrangeiros ainda em vigor em muitos países e do receio de viajar de avião, ônibus e trem, para evitar uma eventual exposição ao coronavírus, o turismo sofreu uma guinada radical.

Em vez das viagens para a Disney, Nova York, Londres, Paris ou Buenos Aires, as viagens mais curtas, para locais mais isolados e próximos da natureza, como sítios, fazendas e casas de campo, passaram a ser a opção preferida de muita gente.

Apesar de milhares de pessoas não estarem preocupadas em frequentar praias lotadas nos fins de semana e feriados, como se não houvesse mais qualquer risco de infecção, um contingente considerável ainda prefere seguir o protocolo e manter certo isolamento social.


Ao menos nos próximos meses, muitas famílias ainda devem dar preferência à hospedagem em lugares mais isoladosARQUIVO PESSOAL

Mesmo agora, com a flexibilização das restrições ao funcionamento de hotéis e pousadas, a demanda por hospedagem num local mais reservado, sem uma horda de hóspedes por perto, deve se manter em alta pelo menos nos próximos meses e enquanto o coronavírus estiver por aí. “As pessoas não vão parar de viajar. Elas vão procurar fazer viagens de carro e já vemos isso acontecer nos Estados Unidos”, disse o presidente do Airbnb no Brasil, Leonardo Tristão, em entrevista ao repórter Bruno Romani, do Estadão.

No auge da pandemia, com o isolamento social, até o Airbnb levou um tombo e teve de demitir 1.900 funcionários pelo mundo afora. Milhares de anfitriões que usam o aluguel dos imóveis como complementação de renda pessoal ou familiar – um grupo que representa cerca de 50% do total no Brasil, conforme dados da plataforma – também sofreu um baque doloroso. Em seguida, porém, o movimento foi voltando, ainda que com esse novo perfil, e deverá prosseguir assim por um bom tempo.

“As pessoas vão aprender que podem fazer turismo em cidades menores, que não são ícones turísticos”

Leonardo Tristão, presidente do Airbnb no Brasil

Segundo Tristão, três grandes tendências devem marcar o turismo nos próximos meses e talvez até anos. Uma é o turismo “ultralocal”, para cidades perto dos grandes centros ou de onde a pessoa vive. A segunda é o que ele chama de “descentralização do turismo”, caracterizada por menos turismo de massa, para locais que atraíam muito público, e mais para cidades situadas fora do eixo turístico tradicional. A terceira tendência tem a ver com o aspecto de limpeza e higienização das propriedades, que se tornou uma preocupação recorrente dos hóspedes. Para permitir a higienização adequada das instalações, o Airbnb passou a exigir intervalos de 24 a 72 horas entre as reservas desde meados de junho.

Para o Natal e o Réveillon deste ano, a plataforma já identificou que a preferência por viagens curtas está se mantendo e as buscas já estão no mesmo nível de 2019. “As pessoas vão aprender que podem fazer turismo em cidades menores e que não são necessariamente ícones turísticos”, afirma Tristão. Mas, mesmo que as viagens de curta distância tenham o seu charme e tenham conquistado muita gente na pandemia, é provável, que os horizontes voltem a se alargar novamente quando tudo isso passar.



24Esportes de baixo risco

Com a reabertura de clubes, parques e academias, a prática esportiva está retomando, gradualmente, o seu espaço. Diversos Estados e municípios já liberaram até a prática de esportes coletivos e o funcionamento das quadras de futebol e de outras modalidades, como vôlei e basquete, embora em algumas cidades, como São Paulo, as duas atividades continuem proibidas.

Apesar de muita gente ter aproveitado a liberação dos esportes coletivos pelo Brasil afora para voltar à ativa, ainda há um contingente considerável que prefere praticar modalidades de menor risco, como caminhada, corrida, ciclismo e tênis, de preferência em locais abertos, ou fazer exercícios em casa mesmo, em vez de malhar nas academias -- e a tendência, enquanto o coronavírus estiver por aí, é de o quadro atual se manter.

As academias, por exemplo, retomaram as atividades em São Paulo há quatro meses, com agendamento prévio, e agora já podem ter uma ocupação de 50% do espaço, com um cliente a cada seis metros, mas a demanda ainda está muito abaixo da que havia no pré-pandemia. O mesmo está acontecendo com as escolinhas de futebol para crianças e adolescentes, que retomaram as atividades em julho.

 


Por oferecer risco menor de contágio, modalidades como tênis, ciclismo, corrida e caminhada ainda devem atrair mais o públicoDANIEL TEIXEIRA / ESTADÃO

Na capital paulista, as empresas que administram quadras de futsal e de outras modalidade têm feito pressão pela reabertura, mas a Secretaria Municipal de Esportes reafirmou recentemente que as modalidades coletivas e as quadras só serão liberadas na fase azul do Plano São Paulo – no momento o município está na fase anterior, a verde, e não há previsão de quando isso irá se alterar.

Os centros esportivos da cidade até reabriram em julho, mas só para caminhadas ao ar livre. Os parques municipais, que foram reabertos também nos fins de semana no começo de novembro e tiveram a prática de esportes coletivos liberada, como o Ibirapuera, decidiram voltar a interditar as quadras, seguindo orientação da Prefeitura, devido à concentração de atletas e ao desrespeito ao protocolo, como o uso de máscaras.

Na esfera profissional, o mundo dos esportes foi um dos mais afetados pela pandemia, com a suspensão dos eventos e até dos treinamentos por vários meses. Ainda hoje, apesar de muitos campeonatos já terem sido retomados, o público continua distante das arenas e é difícil prever quando poderá voltar a ocupar as arquibancadas. Por ora, para acompanhar os jogos, o jeito é assinar o pay-per-view ou os canais de esportes da TV que têm exclusividade de transmissão de certos campeonatos. É uma nova realidade que deverá se prolongar por um bom tempo, com a vibração da torcida restrita às gravações reproduzidas pelo sistema de som das arenas.


ENTREVISTAS

Gustavo Franco,
SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS E EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL

 

‘Com o juro caindo do jeito que caiu, tudo que é preço de ativo muda para melhor’, diz FrancoFABIO MOTTA/ESTADÃO

‘A PERCEPÇÃO DE QUE A QUEDA DOS JUROS SERÁ DURADOURA VEM SE FORTALECENDO’

José Fucs

O economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos, diz que a queda dos juros, que chegaram a 2% ao ano durante a pandemia e se mantêm até hoje no mesmo patamar, deverá ser “duradoura”. Segundo ele, os benefícios trazidos pelos juros baixos acabam funcionando como um freio para as pressões dos políticos pelo aumento de gastos. “Ainda bem que a gente está vendo como é bom viver com Selic de 2% ao ano”, afirma Franco, em entrevista ao Estadão. “Isso de fato tem ajudado lá em Brasília. Quando a turma ameaça os políticos dizendo que ‘vai subir o juro tudo de novo’, o pessoal fica com medo.”

Ao mesmo tempo, ele evita fazer “profecia” sobre o dólar. Diz, porém, que mesmo com a redução do interesse dos estrangeiros pelo investimento em renda fixa no País, em decorrência da queda significativa dos juros, haverá entrada de moeda forte para comprar ativos brasileiros. “A conta do investimento direto vai continuar muito positiva, afirma. “Tem muito ativo barato para comprar em dólar no Brasil, ainda mais com o dólar desse tamanho.”

● A queda dos juros, que já vinha acontecendo desde o governo Temer, acentuou-se em 2019. Neste ano, com a pandemia, a taxa básica chegou a 2% ao ano, o menor patamar da série histórica. Ainda que ocorra uma pequena alta no ano que vem, até que ponto esse patamar de juros é sustentável?

Eu acredito que isso será duradouro, sim, e essa percepção vem se fortalecendo. Quando a pandemia começou, as pessoas tinham na cabeça um quadro do que é uma crise econômica e o que aconteceu foi uma surpresa. Nas crises anteriores, havia problemas no balanço de pagamentos, com fuga de capitais e essa coisa toda, que você tinha de resolver subindo os juros. Tinha um pouco essa ideia de que numa crise o juro tem de subir, porque vai ter inflação e tal. Aí, alguns mercados reagiram do jeito antigo, mas desta vez não teve nada disso. Foi completamente diferente – e neste aspecto dos juros, em particular, supercontrastante. Entramos na crise com o juro já muito baixo e ainda por cima ele caiu.

● Por que o sr. acredita que o atual patamar dos juros é sustentável?

Os mercados de juros de prazo maior já se ajustaram, expressando sua crença de que esse juro pequenininho vai ficar. Não é a minha opinião. É o que os mercados estão dizendo. Na verdade, exótico era o juro alto ter durado tanto tempo no País, quando o resto do mundo já tinha migrado para um patamar de juro diferente. As nossas condições fiscais já tinham melhorado, de forma a permitir um juro mais baixo, mas a gente demorou a cortar as taxas. Aí, quando o juro caiu, caiu para valer. As condições fiscais já vinham até piorando um bocadinho, mas ainda estão ok. Nós estamos devendo um pouquinho nas contas fiscais. A pandemia desarrumou um pouco a questão, mas ainda está ok.

● Para a gente, que estava acostumado a viver com os juros altos por tanto tempo, desde antes da implantação do Plano Real, é uma mudança cultural e tanto. Imagino que isso deverá ter um impacto significativo não apenas na área financeira, mas também no setor produtivo, não?

Sim, sem dúvida. É até mais que isso. Já há algum tempo tenho opinado que essa queda de juros parece com a própria estabilização, inclusive no aspecto cultural. Sua relevância só é inferior ao fim da hiperinflação, mas ela é parecida na natureza dos efeitos. A taxa de juros é uma espécie de medida da distância entre o presente e o futuro, que se aplica em tudo na vida: na poupança, no investimento, na construção, nos preços dos ativos, no tamanho da Bolsa, no câmbio. Tudo tem juros no meio. Com o juro caindo como caiu, tudo que é preço de ativo muda para melhor. O futuro fica mais perto e invertem-se algumas lógicas habituais do mundo empresarial.

● Que tipo de mudança o juro baixo pode provocar nos negócios?

Com o juro baixo, você não tem o que fazer com dinheiro em caixa. Os negócios que geram muito caixa não são mais bons como antigamente. Antes, endividar-se era o beijo da morte. Agora é bom, porque é baratinho. Os grandes CFOs (chief financial officers) se acostumaram a administrar grandes fluxos de caixa positivo e sabem aplicar o dinheiro. Agora, é outro mundo. Há um estímulo para investir em equipamentos e ativos que têm duração longa e podem se valorizar no decorrer do tempo. Ficou fácil ganhar do CDI (Certificado de Depósito Interbancário, usado como referência de retorno no mercado financeiro). Até a poupança com rendimento calculado pela fórmula antiga ganha do CDI.

“Tem muito ativo barato para comprar em dólar no Brasil”

● Parece que ainda não “caiu a ficha” para muita gente do que a queda dos juros pode significar para o País, talvez por uma certa descrença de que ela seja sustentável, em função da nossa história. Em sua visão, o que explicaria isso?

Pois é. Também porque ocorreu, de forma mais pronunciada, junto com a pandemia. Então, misturou os dois efeitos em duas direções diferentes. Um efeito de crise e um efeito bom, profundo, do juro menor. As duas coisas estão acontecendo ao mesmo tempo, uma boa e outra ruim.

● Agora, para o juro permanecer baixo é preciso haver certa disciplina fiscal. Se o controle das contas públicas degringolar, “a vaca vai para o brejo”.

É, mas ainda bem que a gente está vendo como é bom viver com Selic de 2% ao ano. Isso de fato tem ajudado lá em Brasília. Quando a turma ameaça os políticos dizendo “oh, vai subir o juro tudo de novo”, o pessoal fica com medo.

● Em relação ao dólar, qual a sua expectativa? Esse dólar mais alto também vai continuar? Isso também vai ter impacto positivo no setor produtivo?

Não sei. Quanto ao nível do dólar, é muito difícil prever. Ainda que, no fluxo, haja menos interesse em fazer arbitragem de juros, trazendo dinheiro de fora para cá, para investir na renda fixa, tem muito ativo barato para comprar em dólar no Brasil, ainda mais com o dólar desse tamanho. Então, vai ter, sim, entrada de moeda estrangeira para comprar ativos brasileiros. Com esse juro e com o dólar onde está, é outra equação. Não dá para saber como vai ser a conta de capitais. Acredito que a conta de investimento direto vai continuar muito positiva, mas a conta financeira, que governa o dólar, está meio indefinida. Está num período de transição.

● De qualquer forma, ainda que o dólar dê uma recuada nos próximos meses, muitos analistas dizem que ele não deve voltar para o patamar anterior, tipo R$ 4. O sr. concorda com isso?

Claramente houve um ajuste para cima. Teve uma espécie de overshooting do dólar e o normal seria ele recuar um pouco, mas não sei. Não faço profecia sobre dólar. Agora, tem muito da história do que aconteceu nos Estados Unidos. Houve muita criação de liquidez lá. Isso vai para extremidade do sistema, vai chegar aqui. A gente agora vai ver o caminho de volta.

● O dólar alto acaba favorecendo também a exportação, desestimulando as importações e reforçando a competitividade do País no mercado externo. Como o sr. vê o impacto do dólar alto no setor produtivo?

Não sei. Vamos ver. Isso é uma coisa para você perguntar para o (economista Luís Carlos) Bresser Pereira, para o pessoal dessa escola de pensamento que achava que, quando a taxa de câmbio estava em R$ 2 ou R$ 2 e pouco não estava no “equilíbrio”.

● É preciso levar em conta também que essa virada está ocorrendo num momento de menos globalização, menos comércio internacional. Como isso deverá afetar a economia?

Vamos ver. No começo da pandemia, teve muito a profecia de desglobalização, aumento dos Estados nacionais. Mas seis meses depois do início da pandemia, acredito que é preciso revisitar essas projeções. Se a gente olhar para 2021, não sei se será verdade que a gente vai ter um Estado maior e menos comércio exterior. O panorama ficou muito mais confuso. O impacto da pandemia é muito mais complexo do que parecia à primeira vista.


Tony Volpon,
EX-ECONOMISTA-CHEFE DO BANCO UBS, NO BRASIL, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL

 


Para Volpon, a tendência é o Banco Central manter o juro o mais baixo possívelAMANDA PEROBELLI/ESTADÃO

‘HÁ UMA TENDÊNCIA DE VALORIZAÇÃO DO REAL NOS PRÓXIMOS ANOS’

José Fucs

O ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central e ex-economista-chefe do banco suíço UBS no Brasil,Tony Volpon, afirma que parte da alta dólar em 2020 deverá ser revertida gradualmente, se não houver uma crise fiscal no País. “Nós devemos ver uma tendência de valorização do real nos próximos anos, mas nada parecido com o que a gente viu entre 2008 e 2012.”

De acordo com Volpon, o aumento dos depósitos de poupança durante a pandemia também deverá perder força, mas em ritmo mais acelerado do que a alta do dólar. “Com a melhora gradual da economia, a tendência é de parte dessa poupança ir para o consumo”, diz. “Nos Estados Unidos, apesar das incertezas, da eleição, o pessoal está usando a poupança formada durante a pandemia para suplementar o consumo. Acredito que isso também vai acontecer no Brasil.”

● Durante a pandemia, a redução dos juros no Brasil, que já vinha ocorrendo desde o governo Temer, acentuou-se. As taxas chegaram ao patamar inédito de 2% ao ano. O sr. acredita que isso é sustentável, ainda que os juros subam um pouco no ano que vem?

Essa questão tem duas dimensões. Tem uma dimensão cíclica, porque a economia está saindo de uma recessão, com desemprego alto. Isso, obviamente, estimula o Banco Central a deixar os juros baixos por mais tempo. Nos últimos dez anos, incluindo 2010, quando o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu 7,5%, a média anual de crescimento do País tem sido de 0,8%. Foi uma década perdida mesmo. Agora, se a gente evitar uma crise fiscal, que é uma grande dúvida no momento, expressa pelo mercado na maneira como está precificando o câmbio e os juros de longo prazo, deve haver uma lenta recuperação da economia e alguma normalização da taxa Selic. Essa dimensão cíclica pode durar alguns anos. A outra dimensão, mais estrutural, envolve dois fatores que podem contribuir para uma queda mais permanente da taxa de juros, sempre pressupondo que não haverá uma grande crise fiscal no País.

● Quais são os fatores mais estruturais que podem prolongar os juros baixos?

O primeiro é a questão demográfica. Com o fim do bônus demográfico e o envelhecimento da população no Brasil, os juros tendem a cair. Olhando dez, vinte anos para a frente, isso deve contribuir para uma taxa de juros mais baixa, como aconteceu no Japão, na Alemanha e mesmo nos Estados Unidos. À medida que há um envelhecimento da população, aumenta a taxa de poupança e diminui a demanda por investimento. Com menos gente jovem no mercado de trabalho, há também uma queda do crescimento econômico e da produtividade. São os jovens que normalmente trazem novas tecnologias, que aumentam a produtividade. Num cenário de baixo crescimento e juros baixos, a inflação normalmente também é muito baixa, favorecendo a redução das taxas.

O segundo fator é que, quando você atinge um nível de endividamento muito alto, com a dívida pública ultrapassando 100% do PIB já no ano que vem ou no seguinte, isso constrange muito a capacidade do Banco Central de subir os juros. Para poder sustentar uma dívida muito grande, o que acaba acontecendo é que você procura maneiras de ter uma taxa de juro real menor que a sua taxa de crescimento, porque aí o estoque da dívida não cresce e até cai ao longo do tempo.

● O sr. está dizendo que o Banco Central não vai subir os juros para evitar o crescimento da dívida pública? É isso mesmo?

Exatamente. Quando você olha para a Selic, o Brasil tem hoje uma taxa negativa de juros, com uma perspectiva positiva de crescimento na saída da recessão. A tendência até conseguir resolver a questão do déficit primário é você querer ficar nessa situação, com diferencial negativo entre crescimento e taxa de juros real. Então, acredito que a tendência é o Banco Central manter o juro o mais baixo possível, para segurar o crescimento do estoque da dívida.

● Como o sr. vê a cotação do dólar hoje? A tendência é o dólar se manter no nível atual nos próximos meses?

O dólar mais alto é o reflexo de uma economia com juros baixos e baixo crescimento. Quando a gente tem crescimento baixo e juro baixo acaba tendo uma moeda fraca. Desde meados de 2017, houve uma grande desvalorização do real, seja fazendo a comparação histórica, com a devida correção pela inflação, seja em relação ao que aconteceu com outras moedas de mercados emergentes. Durante um período, especialmente de 2008 até praticamente 2012, nós tínhamos dois diferenciais que mantiveram o real muito forte: um crescimento relativamente robusto, de 4,5% em média ao ano, e um juro muito alto. Hoje, a gente perdeu as duas características. A moeda reflete isso.

O que a gente tem apontado em vários relatórios é que o real hoje está tão barato que está começando a impactar positivamente a conta corrente do País. Numa perspectiva histórica, talvez o anormal, a exceção, tenha sido aquele período entre o fim da década passada e o começo desta, quando o dólar chegou a R$ 1,60. A gente gastava mais num restaurante em São Paulo do que em Nova York. Isso era algo fora do equilíbrio. Acredito que o real hoje está excessivamente barato e que nós devemos ver uma tendência de valorização nos próximos anos, mas nada parecido com a gente viu naquele período. Acho que a gente está voltando a uma certa normalidade cambial.

“A ‘desglobalização’ permite que certas cadeias produtivas possam voltar a países como o Brasil”

● Como os juros baixos e o dólar alto podem afetar a economia real do País, em especial a indústria?

Para o setor industrial, pode ser até uma oportunidade, porque esse câmbio que temos hoje está vindo num momento de certa ‘desglobalização’. Outro ponto que pode afetar a equação é a competição geopolítica entre Estados Unidos e China, que se acelerou com a pandemia e está acabando com a globalização que a gente viu dos anos 1980 até agora. Essa ‘desglobalização’ permite que certas cadeias de produção possam voltar a países como o Brasil, se a gente der condições à indústria de retomar as suas atividades. Obviamente, um câmbio mais desvalorizado ajuda, é parte desse processo. Não é, como muitas pessoas dizem, a grande questão. É uma parte pequena do problema. A gente deve ter a capacidade de alcançar um equilíbrio macroeconômico, mantendo uma valorização estrutural do câmbio, mas com uma economia aberta e competitiva, que consegue se integrar a outras cadeias de insumos e ao mesmo tempo exportar.

● Nesse cenário, o sr. acredita que é possível retomar o crescimento da indústria no País?

Se a gente conseguir abrir a economia, manter uma taxa de câmbio relativamente competitiva, fornecer um ambiente de negócios também competitivo, ajudar a produtividade das empresas, não há razão pela qual  não seja possível reverter essa decadência industrial, que na verdade vem desde os anos 1990. Quer dizer, um novo modelo está aí. Agora, isso seria uma grande transformação cultural, porque a gente tem uma indústria viciada em subsídio, em Zona Franca, em tarifas de importação. O que mais me decepciona na equipe econômica é a questão do comércio exterior. O pouco que aconteceu nesta área foi o tratado com a Europa, que está “fazendo água” por causa da questão ambiental, por toda essa besteira pseudo-ideológica.

● No Brasil, há uma resistência muito grande do setor industrial à abertura da economia. O lobby da indústria para manter as benesses oficiais está a todo o vapor. Como o sr. vê essa questão?

Se a indústria está fazendo esse lobby de sempre e você não tem alguém com uma visão da oportunidade, que tenha capacidade política de colocar em prática as medidas necessárias para fazer essa transformação, a gente pode perder o barco. É preciso ter um processo que permita avaliar o custo benefício dessas coisas. Você fica criando fundos, exceções, programas... Em tese, tudo vale a pena. Todo mundo quer emprego, desenvolvimento, investimento. Agora, precisa haver alguma lógica pela qual você aloca recursos escassos naquilo que oferece o maior retorno. O mercado faz isso pela concorrência. É um processo eficiente de alocar recursos. Mas, no âmbito do governo, você acaba tendo uma série de lobbies políticos. Isso é que decide onde a alocação é feita. Se o lobby do pessoal da Zona Franca de Manaus é mais forte que o lobby do sujeito que quer fazer algo no Centro-Oeste, o dinheiro acaba indo pra lá. O lobby do setor automobilístico, por exemplo, está aí desde Juscelino Kubistchek. Ninguém tira a proteção deles. São 50 anos de proteção. O que precisa ser feito  é criar um mecanismo para realizar algum tipo de avaliação de custo/benefício dos programas, inclusive do ponto de vista fiscal.

● No período da pandemia, houve um aumento grande da poupança dos indivíduos, tanto nos Estados Unidos como no Brasil. Isso deve se manter no pós-pandemia?

Acredito que isso se deva em parte ao fato de o governo ter dado dinheiro para as pessoas e fechado a economia. Então, elas não tinham como gastar ou tinham medo de gastar. Elas podem até gastar em outras coisas, como a compra de alimentos, mas não estavam gastando em serviços. À medida que a situação se normalizar, isso deve voltar ao normal também. Outro aspecto dessa questão é preventivo. Você faz uma poupança, porque está vivendo um momento agudo de incerteza, especialmente em relação ao mercado de trabalho. Ou porque perdeu o emprego ou porque sabe que não vai receber o “coronavoucher”, cujo valor já caiu 50%, ad eternum. Ninguém sabe se vai ter “coronavoucher” no ano que vem. Então, acaba poupando um pouco. Quem conseguiu manter seu emprego ainda tem medo de perdê-lo. Isso também leva você a poupar mais. É um comportamento racional do ponto de vista individual. Esse foi o grande ponto de Keynes, mas pode ter uma consequência agregada ruim, do ponto de vista coletivo, porque se todo mundo poupar a demanda agregada cai e a economia não cresce.

● O sr. acredita que essa propensão à poupança deve se manter nos próximos meses?

Com a melhora gradual do quadro econômico, a tendência é de parte da poupança formada durante a pandemia ir para o consumo. Nos Estados Unidos, você teve aquela enorme transferência inicial do governo, com o envio de um cheque de US$ 1.200 para todas as famílias, e um aumento do valor do seguro desemprego. A poupança que era de 3% a 4% da renda líquida, explodiu. Foi para mais de 30%. Agora, apesar dessas incertezas, o pessoal está usando essa poupança para suplementar o consumo. Acredito que isso também vai acontecer no Brasil.


Júlio Sérgio Gomes de Almeida,
 DIRETOR-EXECUTIVO DO IEDI E EX-SECRETÁRIO DE POLÍTICA ECONÔMICA (2006-2007)


‘Há uma tendência inexorável no mundo pós-pandemia, que é a reconversão industrial’, diz Gomes de Almeida.DIVULGAÇÃO/IEDI

‘É POSSÍVEL MANTER O JURO BAIXO E O DÓLAR ALTO POR MUITO TEMPO’

José Fucs

O economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial) e ex-secretário de Política Econômica no governo Lula, afirma que o País poderá manter o juro baixo e o dólar alto por muito tempo, favorecendo a chamada “reconversão” industrial, que é a fabricação local de produtos que hoje são importados. “Em mantendo essas características, a indústria vai ser outra”, diz.

Para ele, um ponto fundamental para aumentar a nossa competitividade é a realização da reforma tributária. Queremos aumentar a nossa competitividade tão rapidamente quanto possível? Sim. Para isso, precisamos realizar a reforma tributária, para equiparar todos os setores da economia em termos de carga tributária e para fazer com que tenhamos um sistema tributário menos complexo e mais neutro do ponto de vista setorial”, afirma. “Hoje, temos impostos que a gente carrega quando exporta, o que dá uma vantagem para o produto feito fora do Brasil.”

● Qual a sua visão sobre a valorização do dólar nos últimos meses? Isso deverá se manter ou a tendência é o dólar recuar para o patamar pré-pandemia?

Se o dólar tivesse a valorização que está tendo hoje desde o Plano Real, nos últimos 25 anos, teria sido muito bom para o Brasil, porque a indústria definhou em parte por causa do câmbio valorizado. Nesse período, nós vivemos espetáculos de valorização cambial por diversas ocasiões. Durante toda a maturação do Plano Real, a indústria perdeu muito e não conseguiu se recuperar. Depois, tivemos o episódio da “invasão chinesa”, que teve muita força logo depois da grande crise de 2008 até 2012, 2013. Nós perdemos muito mercado industrial para a China, quando o real se valorizou muito em relação ao dólar. No início desse ciclo, a participação da indústria no PIB (Produto Interno Bruto) era de 20%. Agora é de 10%. Nesses vinte e poucos anos, a indústria brasileira teve uma posição de destaque no mundo: Já fomos o 5º colocado na lista dos países mais industriais, depois caímos para 6º, para 7º e agora somos o 15º.

● Mas como o sr. está vendo o câmbio hoje? O dólar vai ficar no patamar atual?

O que a gente está vendo agora é muito recente. Junta diversas coisas: uma forte instabilidade política de 2015 até agora, um movimento de capitais em nível global que não é o mesmo dos 25 anos anteriores e também o nosso movimento de juros, que foi fundamental para dar o feitio atual ao câmbio e já deveria ser assim desde quando você quiser. Temos condições de manter isso? Sim, temos. Como? Mantendo os juros relativamente baixos. É claro que tudo isso depende de outros fatores, mas agora tem uma sistemática de atuação, de praticar juros muito baixos aqui dentro, que está em linha com a do resto do mundo, o que é uma boa postura. Agora, assim como a valorização da nossa moeda no passado não representava uma força brasileira, esse movimento de desvalorização do real também não representa uma fragilidade. Nenhuma das duas situações reflete algo muito bom ou muito mal na economia.

● Olhando pra frente, o sr. acredita que essa situação é sustentável? Por quanto tempo?

Por muito tempo. Basta que a gente tenha um pouco de visão do que devemos fazer. Na política macroeconômica é importante ter uma postura, assim como na área ambiental. A economia precisa crescer mais. Nós precisamos respeitar os laços com a economia mundial. Pena que a economia mundial não está num processo de crescimento tão forte quanto já esteve. Nós estamos na contramão, mas tem de manter essa visão. Juro baixo é fundamental. Nem sempre é possível, mas como postura é o que devemos perseguir.

● Qual impacto a combinação de juros baixos e do real desvalorizado deverá ter no setor industrial?

Em mantendo essas variáveis, a indústria vai ser outra. Se a gente tivesse feito isso antes com os juros e com o câmbio, não teríamos perdido tanto em duas décadas e meia. O mundo todo assistiu a países que praticaram políticas de juros e câmbio diferentes do Brasil, como a China, a Coreia e outros países, e acabaram pegando espaços do Brasil.

“O mundo no pós-pandemia não vai ser o mesmo em relação à globalização”

● O sr. acredita que isso possa levar a um novo crescimento industrial e a um fortalecimento da nossa indústria?

Acredito que sim. Mas o prazo disso vai ser relativamente longo. Como diz o (economista) Dani Rodrik (professor da Universidade Harvard), que eu respeito muito, uma grande característica dos sistemas industriais é que, quando você perde uma fatia do mercado, é muito difícil recuperá-la, porque rapidamente outro país pega o seu pedaço. Os investimentos são muito elevados, não só físicos, mas também na formação de gente, em P&D (pesquisa e desenvolvimento), em inovação. Acredito também que o mundo pós-pandemia não vai ser o mesmo em relação à globalização. Vai dificultar um pouco o nosso processo industrial. Mas há uma tendência no mundo pós-pandemia, que acho inexorável, que é a reconversão industrial. Muita coisa que foi tratada como dogma, de produzir onde é mais barato e onde você tem maior capacidade de entrega online, não é verdadeira. Todo país, toda empresa, sempre tem um lado estratégico. Estou falando das cadeias globais de valor que terão de ser revistas. Se eventualmente você não tiver o fornecimento dos produtos de fora, terá produção local suficiente para suprir as suas necessidades.

● Em sua opinião, como a desglobalização pode favorecer a retomada industrial?

Não podemos achar também que vamos voltar ao mundo de antes da globalização. Não vamos. Mas, como tendência, a globalização daqui para a frente não vai ser a mesma. O mundo industrial está se readaptando em torno de três vetores: um deles, o mais próximo da crise da pandemia, é a reconversão industrial. Há também a tecnologia, com a rápida adoção dos vetores da indústria 4.0, que é uma atualização muito forte e muito importante. Está todo mundo tentando caminhar para isso. O terceiro vetor industrial e da economia como um todo é o meio ambiente como importante indutor do investimento.

● O que o sr. quer dizer quando fala em “reconversão industrial”?

É reconversão no sentido de volta para produção local. É a palavra do momento para indicar que o mundo em que a gente vivia, da chamada globalização, que era presidido pelos princípios do menor custo e do menor prazo de entrega, será reformulado. Reconversão é você, com bases sólidas, desenvolver aqui dentro o que for possível, tendo a estratégia como parte do jogo. Isso significa que, se amanhã não houver a produção de determinado produto da área de saúde lá fora, você não vai paralisar todo o sistema aqui dentro. Os respiradores, por exemplo, a gente não conseguia produzir aqui no começo da pandemia, porque faltava componente. Dentro das possibilidades, a nossa indústria teve até uma boa resposta para isso, o que mostra que ela ainda tem alguma expressão.

● Com a manutenção do dólar alto, pode haver, então, uma mudança substancial no cenário que a gente observou nos últimos 25 anos, com a perda de participação da indústria na economia do País?

Pode, mas tem alguns senões. Nós temos de encontrar um meio de elevar um pouco o investimento em infraestrutura. Isso reforça o crescimento industrial. O investimento na área de construção pesada ou na infraestrutura nem sempre cabe ao setor privado e o investimento estatal nessa área está baixo demais. Outra coisa que precisa é chegar junto das tendências internacionais de inovação e de ciência e tecnologia. Nosso quadro de apoio para pesquisa e desenvolvimento está cada vez menor. A gente precisa pensar numa maneira de relançar esse processo, atualizar a nossa legislação na área de incentivo à ciência e tecnologia e reforçar o apoio dos bancos públicos à inovação das empresas, para fazer com que essa parte da economia comece a se mover também. Precisa ainda pensar o meio ambiente dentro desse processo, como ponta de lança para inovação e tecnologia. Se a gente não fizer isso, o impulso que os juros e o câmbio podem dar para a indústria fica relativamente pequeno.

“As Paulistas, as Berrinis e outros grandes centros de escritórios vão diminuir muito”

● Agora, é importante que tudo isso ocorra num ambiente de competitividade internacional, sem cartórios, sem protecionismo. Será que, desta vez, vamos conseguir conjugar as duas coisas, câmbio favorável e abertura econômica?

Você fez muito bem em colocar isso. Queremos aumentar a nossa competitividade tão rapidamente quanto possível? Sim. Mas, para isso, precisamos realizar a reforma tributária, para equiparar todos os setores da economia em termos de carga tributária e para fazer com que tenhamos um sistema tributário menos complexo e mais neutro do ponto de vista setorial. Isso é que vai dar competitividade mesmo ao País. Hoje, temos impostos que a gente carrega quando exporta, o que dá uma vantagem para o produto feito fora do Brasil.

● Durante a pandemia, com a ampliação do home office, a realização de reuniões virtuais e a redução das viagens de trabalho, houve uma grande mudança na vida das empresas e dos trabalhadores. Qual o impacto disso na produtividade?

Isso tem um impacto muito grande na produtividade, mas o resultado disso tudo ainda é incerto, porque tem pontos a favor e contra. Sem dúvida que os custos das empresas diminuíram muito onde foi possível fazer home office. Muitos empresários com os quais tive oportunidade de conversar descobriram que é possível fazer home office e diminuir muito o custo sem nenhuma perda para as empresas. Isso pode se acentuar muito mais no futuro, porque as empresas vão passar a demandar menos escritórios. As Paulistas, as Berrinis e outros grandes centros de escritórios e instalações de empresas e bancos vão diminuir muito. É uma mudança bem importante, sobretudo no lado administrativo das corporações.

● Qual a sua visão em relação ao impacto dessas mudanças todas na economia?

Os ganhos de custo para as empresas, para os consumidores e para os empregados são grandes, mas isso ainda não está claramente dimensionado. Agora, tem um lado negativo, que dá medo. Vários negócios que dependem disso tudo terão de ser reinventados -- e reinvenção em economia significa quebra de empresas e desemprego. As vagas perdidas não serão necessariamente absorvidas por outros setores. Muita coisa parece que vem para o bem, mas pode representar um mal. Agora, essas mudanças todas que ocorreram no período de pandemia, para as pessoas físicas e para as empresas, as tecnologias a que fomos “apresentados” ou que passamos a usar mais e que estão aí de alguma forma há vinte anos, vieram para ficar. Outras mudanças vieram para ficar e ir embora dentro de dois, três anos, como as ocorridas nos setores de aviação, hotelaria, turismo. Agora, tem setores que nunca mais vão voltar a ser o que eram. Vão ter de se remodelar muito. O setor de construção, do qual a gente estava falando há pouco, é um deles.


Fernando Gambôa,
SÓCIO DA KPMG NO BRASIL, RESPONSÁVEL PELA ÁREA DE CONSUMO E VAREJO


 

‘Não há hoje na periferia uma infraestrutura de conectividade adequada’ diz GambôaDIVULGAÇÃO

‘O E-COMMERCE NÃO VOLTARÁ AO NÍVEL DE ANTES DA CRISE’

José Fucs

Como consultor responsável no Brasil pela área de consumo e varejo da KPMG, uma das principais empresas internacionais de consultoria, o engenheiro Fernando Gambôa passa boa parte de seu tempo dedicado à questão do comércio eletrônico.

Nesta entrevista ao Estadão, ele fala que as vendas online não deverão voltar ao patamar pré-pandemia, apesar de um ligeiro recuo do e-commerce, com a reabertura das lojas físicas. Gambôa fala também sobre o espaço conquistado no comércio eletrônico pelos pequenos varejistas durante a crise, da “revitalização” das lojas de rua, que podem manter um estoque segregado para as vendas online, e da “reinvenção” dos shoppings, para enfrentar o “incômodo” que estão vivendo.

● Durante a pandemia, o e-commerce deu um salto  no País, tanto em volume de vendas como em número de pedidos. Será que, com a volta a uma relativa normalidade, isso vai se manter nos próximos meses e anos ou vamos voltar para o patamar anterior?

Toda vez que falo de comércio digital, gosto de colocar uma faixa numérica. A população do Brasil hoje está em 210 milhões de habitantes. Com a pandemia e tudo o que a gente conseguiu avançar em comércio digital, o Brasil tem hoje entre 38 e 42 milhões de pessoas fazendo compras de forma digital, dependendo da fonte, o que é quase o dobro do que a gente tinha antes da pandemia. A comodidade, impulsionada pelo comércio digital, foi incorporada por todas as gerações. As pessoas de mais idade, que não compravam on-line, tem buscado muito o e-commerce. São novos entrantes importantes na cadeia. Mesmo assim, apenas 20% da população brasileira fazem compras de forma digital. Ainda há, portanto, um espaço muito grande para crescer. Uma informação que, para mim é um símbolo deste processo é o Mercado Livre sair como empresa mais valiosa da América Latina, com um valor de mercado de US$ 64,7 bilhões (R$ 368,7 bilhões). Ninguém esperava isso. Não dá para comparar os ativos que o Mercado Livre tem com os de uma Vale ou uma Petrobrás.

● Do ponto de vista do varejo, qual foi a grande mudança ocorrida neste período?

Olhando o varejo, a gente percebe que a grande novidade é que os pequenos varejistas foram ao e-commerce durante a pandemia. Quando começou a pandemia e nós fechamos as lojas, as grandes redes já tinham o seu e-commerce formatado. Podiam estar melhores ou piores, mas já tinham. Os pequenos varejistas não tinham e precisaram se adequar rapidamente. Como eles fizeram para se virar? A primeira coisa que todo mundo fez foi se associar a um market place, como o da B2W, o da Magalu e o da Amazon, para citar alguns dos maiores. Com isso, eles conseguiram quebrar a dificuldade de ir para o digital. A segunda coisa que os pequenos varejistas fizeram foi criar uma base no Instagram, no Facebook, no Pinterest, no WhatsApp. Eles começaram a interagir muito mais com os seus clientes de forma digital, para compensar a perda do contato físico. Tudo isso colocou os pequenos varejistas de volta no jogo.

● Com a volta do País a uma certa normalidade, como deve ficar isso? A presença do pequeno varejo no mundo digital deverá continuar e se acentuar ou neste caso nós vamos retornar  à situação pré-pandemia?

A gente já viu que para os grandes varejistas o caminho digital é um fato. Eles não vão retroceder nisso. E os pequenos, será que vão sair disso? Eu não acredito. Quando você conversa com os pequenos e os médios varejistas, ninguém quer perder esse mundo digital. Eles incorporaram um canal que não tinham e não vão deixar de atuar nesse canal digital, mesmo quando a crise passar. A pergunta que os varejistas de bairro fazem hoje, aqueles negócios de proximidade, é: “Será que eu preciso continuar pagando um aluguel tão caro agora que eu descobri o mundo virtual, que eu não conhecia, e que me permite fazer o que eu faço hoje de um lugar mais barato? É uma mudança forte no modelo com o qual estávamos acostumados.

● Com a reabertura das lojas físicas, o volume de vendas do e-commerce não tende a cair um pouco?

Tende a cair um pouquinho, mas não vai cair para a metade do que a gente tem hoje. Não vai voltar de forma nenhuma ao patamar anterior. Agora, a gente precisa olhar onde isso deverá acontecer. A percepção é de que nos grandes centros não deve haver uma queda acentuada do hábito de consumo digital. Quando a gente olha as pesquisas que temos feito sobre o assunto, 50% dizem que vão manter as compras online e 45% afirmam que vão mantê-la para produtos não alimentares. Foi nos grandes centros que a gente conseguiu incluir setores que estavam fora do comércio eletrônico. O varejo alimentar, que não era tradicional no e-commerce, passou a integrar o sistema, inclusive nos marketplaces. Isso trouxe muitos entrantes. Eles veem no comércio eletrônico uma comodidade que não tinham. O varejo alimentar é o que tem a maior fricção em todo o processo: você tem de ir ao supermercado, entrar, escolher, pegar o carrinho, passar no caixa, fazer o pacote, colocar no porta-mala, voltar à garagem, guardar tudo no armário. O consumidor  começou a ver que é possível fazer isso com um clique e que o pessoal coloca tudo na sua área de serviço e você só guarda no armário. Diminuiu muito a fricção e eliminou outro negócio que o brasileiro detesta, que é a fila.

“As lojas de rua, que têm aluguel menor que o do shopping, foram revitalizadas”

● Minha experiência com varejo alimentar digital é um pouco diferente. Muitas vezes, não encontro o produto da marca que eu quero e me mandam outro, que  não quero. Tem também a questão dos alimentos frescos, que ainda não está muito azeitada, porque você faz uma seleção própria e normalmente a seleção que eles fazem não é a mesma que você faria. Outro problema é que na quarentena, a certa altura, a entrega estava demorando vários dias. Dá para crescer nesse cenário?

Quando a gente fala do e-commerce alimentar, entende que aquele embutido, o produto industrializado vai continuar no sistema. Na parte de frescos, quem deve se fortalecer muito é o varejo de proximidade, que são aqueles pontos de bairro em que você conhece o vendedor, não precisa se deslocar tanto, sabe da qualidade do produto que ele vende. Como você conhece o sujeito, pode ligar para ele e dizer: “Olha, eu quero meia dúzia de bananas, mas me manda três maduras e três mais verdinhas, porque eu quero para a semana”. Esse varejo de proximidade é que deve ficar e eu acredito muito neste modelo híbrido no pós-pandemia. Por isso, acredito que o pessoal vai continuar fazendo a compra mais grossa e pesada online, onde pode ter o tema da marca, e o que é mais fresco vai comprar no varejo de proximidade. Este é um modelo que está relacionado numa ponta com comodidade e na outra com bem estar e saúde, porque todo mundo gosta de comida fresca.

● O sr. falou dos grandes centros, mas quem está no interior, em cidades menores, passou a ter acesso ao mundo. Muitos produtos que não são encontrados nas cidades de menor porte ou aos quais o acesso era limitado, agora estão ao alcance do consumidor. A expansão do e-commerce não deve se dar também no interior?

Sim, para produtos de alto valor agregado. Tenho conversado bastante com o pessoal do interior e eles dizem que é muito difícil vender online. O e-commerce não pegou ainda no interior. Nas cidades pequenas, em que o pessoal está acostumado com a compra na loja física, é muito difícil introduzir a cultura do e-commerce. Primeiro, porque tem o frete. Em geral, o sujeito não quer pagar o frete. Além disso, o tema da comodidade no interior é diferente dos grandes centros, porque a loja é perto, não tem tanto trânsito, tem empacotador, o vendedor leva a compra no carro.

● Como o pequeno varejo do interior se virou na pandemia?

Durante a pandemia, a gente teve um lockdown muito forte nos grandes centros e muito gente não foi nem ao mercado, mesmo com as lojas abertas. No interior, o pessoal continuou indo ao mercado, quando a gente fala de varejo alimentar. Também demorou mais para o varejo não alimentar ir ao e-commerce. Agora, quando o varejista vai ao e-commerce, abre um leque de oportunidades tremendo, porque pode começar a vender para fora da sua cidade. A gente cria o varejo sem fronteiras. Vejo muita gente indo para esse modelo. Também existe uma oportunidade muito grande na periferia dos grandes centros. Não há hoje na periferia uma infraestrutura de conectividade adequada e não existe e-commerce sem conectividade. Numa casa, o pessoal em geral só tem um dispositivo conectado à internet e ele estava sendo usado para aula virtual e não para e-commerce. A logística urbana também não entra na comunidade e agora estão surgindo soluções para atender esse público, que pode entrar no comércio eletrônico.

“Se o lojista usar shopping para e-commerce, pagará uma porcentagem em cada produto que enviar”

● Com o retorno das operações das lojas físicas, há uma dicotomia entre os shoppings e as lojas de rua, que acabaram também, de certa forma, se revitalizando durante a pandemia, enquanto os shoppings, apesar de toda a conveniência, sofreram mais, em função da concentração de pessoas e do ambiente fechado. Como vai ficar isso daqui para a frente?

O shopping acabou ficando numa situação incômoda. As lojas de rua, que têm um aluguel menor do que o do shopping, foram revitalizadas. Você pode atender o cliente na calçada, se for o caso. Hoje, ainda existe uma preocupação muito grande com saúde. Será que as pessoas estão dispostas a colocar a saúde em risco num shopping? Muita gente ainda está evitando shopping, mas o pessoal não pode deixar de vender. Só que, no shopping. o contrato do varejista muitas vezes está atrelado ao faturamento – e o faturamento é medido pela emissão de nota fiscal. Se o lojista usar uma loja de shopping para fazer e-commerce, cada produto que enviar terá de pagar uma porcentagem para o shopping. Então, todo mundo já entendeu que migrando para loja de rua dá para baratear o custo e criar um estoque segregado, para continuar vivendo do e-commerce sem onerar muito a operação. Nos Estados Unidos, as lojas âncoras também não estão conseguindo atrair público e estão transformando seus pontos de venda de shoppings em hubs de distribuição, como a Amazon. Então, provavelmente, a gente vai ver uma nova configuração de shopping. Vai ser muito mais um lugar de entretenimento, em que você pode comprar um produto, do que o contrário.

● O sr. acredita que aquele ímpeto “shoppistico”, de abertura de dezenas de shoppings por ano pelo Brasil afora tende a dar uma desacelerada?

Os shoppings estão se reinventando. Para lançar um novo shopping agora, ficou mais complicado. Olhando os lançamentos lá fora, os shoppings estão indo nesta linha do entretenimento, de montar um grande centro de entretenimento, com parque, restaurante, com um monte de diversão e umas lojas do lado. Se você quiser, pode entrar, mas está mudando a finalidade.

● Mesmo no caso do entretenimento, com a pandemia, essa solução é complicada por enquanto, por causa da concentração de pessoas. Aí, pode ser até pior do que o shopping tradicional.

Claro. Quando a gente pega os grandes empreendimentos lá de fora criados com este conceito, eles ainda não estão abertos. Só vão abrir quando houver uma vacina ou um tratamento médico para que você possa dar segurança aos clientes.

● Deve sobrar muito metro quadrado dentro de shopping no pós-pandemia, com a devolução de lojas.

Vai sobrar metro quadrado para todo lado, com muita gente seguindo em home office. Desde que começou a pandemia, o shopping passou por um momento difícil no Brasil. Primeiro, fechou tudo, depois abriu restaurante para fazer delivery, que foi uma boa saída. Para o lojista em determinado momento, ficou uma “escolha de Sofia”, porque ele tinha de abrir sua loja por quatro horas, mas os custos não eram de quatro horas. Então, ele disse que, se não aumentasse o horário de funcionamento, era melhor fechar a loja. Aí os shoppings, junto com as associações de lojistas, voltaram às prefeituras para falar que, se não aumentasse o número de horas, haveria fechamento de novo. Não adianta o shopping abrir das 10h às 15h. Quem vai no shopping neste horário? Isso acaba gerando um efeito pior do que se funcionasse no horário tradicional. No fim, a gente faz tudo para não gerar aglomeração e o procedimento criado acaba gerando a mesma  aglomeração -- ou pior -- do que a que se queria evitar.

● No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, já havia o costume de comprar artigos de vestuário por catálogo, pelo correio, até porque os tamanhos são mais padronizados, e agora isso continua pela internet também. No Brasil, muita gente ainda não compra roupas online, porque a possibilidade de dar problema com o tamanho é grande. Como o setor de vestuário se insere nesta equação no Brasil?

Realmente, o Brasil não tem padronagem de tamanho. Nos Estados Unidos, onde a gente diz que existe um padrão de tamanho, já não é bem assim. Eu sempre comprei camisa 15 1/2”. Servia perfeitamente para mim. Agora, tem camisa 15 1/2 regular, slim e tudo o mais. Dá para comprar errado. O tamanho é o principal problema no varejo de moda e de acessórios online. O segundo maior problema é a troca. Como a Amazon, que hoje vende muita roupa pela internet, conseguiu popularizar o varejo digital de moda nos Estados Unidos? Ela fez uma campanha, que acho que ainda está em vigor, permitindo a devolução de duas a cada três peças compradas. Quem faz uma ação como essa tem de ter muito dinheiro, porque o custo da logística reversa é gigantesco. Tanto que depois houve aquela associação famosa da Amazon com a Colt, para que a logística reversa fosse feita em lojas físicas da Colt. Funcionou.

Aqui no Brasil, você já vê alguns sites de roupas com uma política diferenciada de troca. Agora, começou a aparecer o tamanho das peças, com as medidas, num cantinho dos sites. Provavelmente, o varejo de vestuário caminhará para um modelo de lojas pop-up (pontos de venda temporários com propostas específicas) ou para essas dark stores (locais menores para armazenamento, separação e envio de peças compradas online que estão localizados em áreas urbanas e são parecidos com lojas comuns, mas fechados ao público). Nas dark stores, há uma peça de cada produto e lá a pessoa pode tirar as suas medidas, colocá-las num cadastro e saber qual o seu tamanho. Outro ponto muito importante para o brasileiro é o toque. Você quer saber se aquela camisa é de algodão, quanto ela tem de poliéster, de elastano. É mais um inibidor para a popularização da venda de artigos de moda pela internet no País.

● Nas últimas semanas, o varejo surpreendeu os analistas e registrou uma forte retomada no País. A que o sr. atribui isso?

Quando a gente olha o número consolidado, tem a impressão de que o varejo retomou. Parece que que o resultado está muito bacana para todo mundo e que todos os setores e segmentos estão iguais. Mas, quando você olha os dados segregados, vê que a retomada é puxada fortemente por alguns setores. Toda a parte de eletroeletrônicos que têm a ver com conectividade, como o computador, o smartphone, uma TV inteligente, que permitem consumir mais conteúdo digital, que é o que estava disponível na pandemia, o uso do e-commerce e a presença das crianças nas aulas virtuais, está vendendo bem. Quando a gente olha o segmento de vestuário, o que está vendendo bem? Roupa confortável, roupa esportiva.

Antes, a gente estava muito na rua e na pandemia passamos a ficar muito em casa. Com isso, você começa a se dar conta de coisas que não via. Começa a ver que o seu aspirador não é tão bom quanto imaginava e que o microondas não está legal. Para fazer um jantar em casa, já que você não está indo a restaurante, quer comprar um jogo de jantar novo, comprar talheres. Quer melhorar sua casa, que é onde você passa a maior parte do tempo, em vez de gastar fora. Então, todo esse setor de utilidades e eletrodomésticos também teve um boom. Isso acaba puxando o índice. Com alimentos, aconteceu a mesma coisa. Você passou a pegar um alimento mais refinado, a fazer um bom jantar no sábado, um almoço bacana no domingo. Também passou a comprar mais bebida. A gente vê que o consumo de vinho deu uma subida. Agora, se você pegar uma empresa de “costume”, o sujeito vai dizer que a situação está desesperadora. Quando tenho de fazer uma live muito formal, o máximo que eu faço é por a camisa e o paletó por cima, mas tem que ser muito formal. Se não, eu não uso nem isso.


Adriano Marcandali,
DIRETOR DO WORKPLACE NA AMÉRICA LATINA

 


‘Nossos índices de produtividade estão maiores’, afirma MarcandaliDIVULGAÇÃO/WORKPLACE

‘A TECNOLOGIA VAI FACILITAR A CRIATIVIDADE E A APROXIMAÇÃO DAS PESSOAS’

José Fucs

O engenheiro de computação Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de digitalização das relações de trabalho do Facebook, diz que a pandemia trouxe conectividade para as empresas e que as reuniões virtuais, as teleconferências e os webinars estarão cada vez mais presentes daqui para a frente. Em sua visão, o futuro do trabalho será “híbrido”’, com algumas pessoas trabalhando de forma remota e outras presencialmente e também com um grupo passando alguns dias no escritório e outros em casa.

Para Marcandali, depois do choque digital provocado pela pandemia, as empresas agora têm de “cuidar das pessoas”. É por isso, segundo ele, que está surgindo uma parceria entre as áreas de RH, para cuidar de gente, de TI, para fornecer a tecnologia, e de comunicação, para dar clareza para onde a empresa tem de ir e engajar os funcionários, já que  parte do pessoal está trabalhando de forma remota e parte de forma presencial. “O papel da tecnologia vai ser facilitar a aproximação das pessoas, a criatividade e a colaboração”, afirma.

● Durante a pandemia, com o isolamento social e o home office, as reuniões virtuais, as teleconferências e os webinars se tornaram uma realidade para as empresas e os empregados. Isso deverá se aprofundar daqui para a frente?

Isso vai estar cada vez mais presente nas empresas. Na maioria dos casos, a pandemia trouxe a conectividade para as pessoas. A importância de ter toda a empresa numa plataforma de comunicação vai continuar a existir. Do ponto de vista de reuniões, a gente viu uma presença do vídeo cada vez maior. Vai haver sempre uma reunião presencial, mas com a opção do acesso remoto. Se alguém estiver em outro local vai poder participar daquela reunião também.

● Em sua visão, como será o futuro na área do trabalho?

O futuro do trabalho será híbrido, com algumas pessoas trabalhando nos escritórios e outras trabalhando remotamente. Vai ter também pessoas que utilizam ambos os modelos em diferentes dias da semana, passando alguns dias no escritório e trabalhando outros em casa. Neste modelo, o papel da tecnologia vai ser facilitar a aproximação das pessoas, a criatividade e a colaboração. Então, a gente vê um papel fundamental da tecnologia neste processo, mas também vê uma mudança no desenvolvimento das pessoas na organização. A comunicação tem um papel essencial e tem de ser mais rápida, com as ferramentas de trabalho remoto, engajando inclusive pessoas que nunca tiveram acesso a uma plataforma digital, pessoas que trabalham no chão de fábrica.

● Como deve ser essa combinação de trabalho presencial com trabalho remoto?

As empresas mais digitais, como fintechs, startups, e negócios que prestam serviços online, vão ter um índice muito mais alto de trabalho remoto ou trabalho remoto permanente. Vão poder recrutar pessoas que não necessariamente têm acesso hoje aos empregos que elas oferecem. Por outro lado, existem empresas em que os trabalhadores ficam numa planta industrial, num centro de distribuição ou atendendo clientes, no varejo. Então, haverá setores com mais trabalho remoto e outros com menos. A mesma coisa deve acontecer dentro das empresas, com as diferentes funções. Que tipos de função dentro das organizações poderão ter trabalho remoto mais permanente ou um índice de home office maior? Os trabalhos que estão no mundo administrativo, no mundo financeiro, no mundo jurídico, em TI, no desenvolvimento de sistemas. Vai ser bastante segmentado por indústria e por função. Mas acredito que vamos viver um momento em que teremos de experimentar e aprender com os erros.

● Como a digitalização do trabalho deverá afetar as empresas no pós-pandemia?

As empresas estão pensando numa forma de trazer um pouco dessa mudança tecnológica para o nível cultural. Vários clientes estão conversando sobre isso com a gente. Está surgindo uma parceria entre as áreas de RH para cuidar de gente, de TI, para fornecer a tecnologia, e de comunicação, para dar clareza para onde a empresa tem que ir e engajar os funcionários, já que  parte do pessoal está trabalhando de forma remota e parte de forma presencial. Agora, a gente vê que, hoje, o líder está mais humanizado, explorando as lives e as videoconferências para a empresa toda. Houve o crescimento do board (conselho de administração) remoto, a integração digital de novos funcionários, trazendo-os para um mundo em que possam trabalhar de casa. Isso vai exigir grupos de mentoria, maior proximidade. A área de RH está bastante preocupada em criar um espaço para ouvir os funcionários. Hoje, o que acontece? Você tem novos concorrentes, novos modelos de negócios sendo implementados, novos hábitos dos consumidores. Mas, se o vendedor que está na frente do cliente não conseguir passar esse insight para a empresa, não dá para ela reagir rapidamente.

“No mundo virtual, as empresas precisam potencializar a colaboração, a empatia e a humanização”

● Tudo isso representa uma enorme mudança, que ocorreu em poucos meses, para as empresas e para os trabalhadores. Agora, como o sr. disse, será preciso ampliar o treinamento das pessoas, avaliar melhor as ferramentas disponíveis, incorporar a cultura da empresa ao processo. Como será feito isso?

No Brasil, quando a gente pensa na digitalização interna nas empresas, tem de levar em conta que 80% da mão de obra são trabalhadores que não têm uma mesa, que estão na linha de frente, em centros de distribuição, no chão de fábrica. É uma população que até agora não tinha um canal digital dentro da empresa para se comunicar. Eles não têm as mesmas ferramentas que alguém da sede, do administrativo, tem. Durante a pandemia, essas pessoas precisaram se conectar e a partir do momento que se conectaram elas trouxeram novos insights e também as suas necessidades. Essa população não era servida e passou a ser. Agora, a gente vai ter dar suporte, motivação, direcionamento estratégico para essas pessoas. Apesar de o Brasil já ter as plataformas disponíveis, as empresas estão em níveis de maturidade distintos nessa questão.

● De qualquer forma, essas mudanças representam uma enorme redução de custos. Primeiro para os funcionários, com corte de despesa de combustível, de tempo no trânsito, de viagens de trabalho, de transporte público. Para as empresas, também, com corte de gastos de energia, telefone, segurança e até do espaço destinado aos escritórios. Que impacto isso está tendo na produtividade?

De repente, você pode até economizar com o trabalho remoto, mas a criatividade pode estar se reduzindo. Quando colocamos as pessoas para trabalhar em casa, a gente tem de dar um ambiente que propicie a elas continuar tendo criatividade, colaboração, aquela experiência de troca que tinham no escritório. Acredito que tem de haver um equilíbrio aí. Qual será depois o papel do escritório? O papel do escritório pode passar a ser aquele em que você vai ter experiências corporativas, espaços de criação, para reuniões mais colaborativas, dentro desse sistema híbrido. Como é que a gente faz para ter dentro do mundo virtual a mesma sinergia que tinha anteriormente? No mundo virtual, as empresas precisam de plataformas que potencializem a colaboração, a empatia e a humanização que nós tínhamos no escritório, para não ter uma perda do outro lado.

● Pelo que o sr. está dizendo, a digitalização do trabalho representa uma solução, mas traz também novas questões que terão de ser endereçadas para manter a roda girando. É isso?

Exatamente. Por isso, a parceria entre a TI, o RH e a comunicação, que mencionei há pouco, é super importante, porque temos de cuidar das pessoas. Temos de nos preocupar com o que vamos conceder às pessoas quando elas estiverem no trabalho remoto nesse modelo híbrido, com o que precisamos fazer para continuar a escutá-las, para realizar enquetes, para saber os desafios que elas estão tendo regionalmente, para elas poderem nos passar insights que permitam a realização de mudanças na organização.

“Há uma tendência de os millenials e os Zs resolverem tudo pelo WhatsApp ou por chamada de vídeo”

● Mesmo levando isso em conta, não dá para ignorar que os trabalhadores vão despender menos horas improdutivas em deslocamentos e coisas do gênero e se concentrar mais no business. O sr. não concorda com isso?

Sim, se você pensar na conta do homem-hora, em quanto você gastava com deslocamento, fazendo uma série de atividades que não precisa fazer mais, realmente agora nossos índices de produtividade estão maiores. Agora, o que estou dizendo é que a tecnologia vai ajudar bastante a democratizar o mundo corporativo. Os executivos vão poder interagir com os consumidores. Os eventos, que eram puramente presenciais, também vão mudar bastante, para um misto de evento presencial e virtual. Qualquer pessoa que se interesse por aquilo poderá participar. É possível amplificar muito mais um evento, um road show, para diferentes audiências. O que pandemia trouxe é que as pessoas hoje estão extremamente familiarizadas com o consumo de vídeo, ferramentas virtuais e lives. Agora, para o mundo corporativo se conectar com essas audiências é muito mais simples. Com tudo isso, a gente consegue fazer com que as empresas continuem ampliando o uso desse formato para aumentar a produtividade.

● Agora, imagino que o networking continuará a depender do contato presencial. O que o sr. pensa sobre essa questão?

Hoje, no ambiente de trabalho existem cinco gerações distintas, os baby boomers, a geração X, os millennials, os Zs. Os hábitos de consumo e as experiências delas são bem distintos. Tem pessoas extremamente orientadas ao tête-à-tête, a querer estar presente, querer tomar um café para fazer networking. Agora, a gente observa uma tendência de os millenials e os Zs quererem resolver tudo online, pelo WhatsApp ou por uma chamada de áudio e vídeo. Isso ainda vai depender muito das particularidades dessas multigerações. Então, os eventos, webinars, ainda deverão ter formato presencial e vão ter transmissão por streaming e on demand.

● O sr. acha possível fazer networking digital, sem aquela conversa olho no olho num café da manhã, num almoço de negócios ou num seminário presencial?

Isso faz muito parte da nossa geração, porque nós tivemos essa experiência no decorrer da carreira. Nós conhecemos pessoas incríveis e tivemos acesso a uma rede muito ampla fazendo isso. Nós vamos continuar a demandar por isso. Agora, se você pensar nos nossos filhos, nas novas gerações, eles não têm nem e-mail. Têm uma conta no WhatsApp, no Facebook, no Instagram. São os nativos digitais. Eles vão procurar fazer seu networking de forma 100% digital. Vão ter os grupos, os fóruns, as suas comunidades digitais, nas quais vão criar esses relacionamentos, esses vínculos. Eles vão suprir essa nossa necessidade de forma diferente, porque a experiência deles foi digital desde que nasceram. Vão chegar no mesmo objetivo, só que com outra plataforma e com outra ferramenta.

● Para concluir, gostaria que o sr. um breve balanço de como essas mudanças ocorridas na pandemia vão moldar o nosso futuro na área do trabalho.

Nós sofremos um processo de digitalização intensa. A gente acredita que esse futuro será uma combinação de uma nova cultura, mais humanizada, com muitas novas tecnologias digitais. Do ponto de vista de tecnologia, a gente verá uma imersão cada vez maior no vídeo e o uso cada vez maior da inteligência artificial, porque está todo mundo conectado, e depois uma onda de realidade virtual que vai transformar a forma como a gente trabalha, deixando-a um pouco mais aberta, flexível. Do ponto de vista do ser humano, a gente vai ter uma demanda para que os profissionais tenham mais criatividade, mais empatia, e mais habilidades interpessoais, porque de nada adianta a gente ter essas ferramentas incríveis se a gente não souber lidar com o ser humano. Então, nós vamos passar por um processo intenso de digitalização, mas a gente vai ter de começar a trabalhar essa parte cultural e esses valores.


Fernando Pedro,
DIRETOR MÉDICO DA AMIL

 


“Na pandemia, passamos de 15 para 2.800 consultas virtuais por dia”, diz Pedro.DIVULGAÇÃO/AMIL

‘A TELEMEDICINA CONTRIBUIU MUITO PARA GARANTIR ASSISTÊNCIA NA CRISE’

José Fucs

O diretor médico da Amil, Fernando Pedro, responsável pela área de telemedicina da empresa, acredita que a consulta remota cumpriu um papel fundamental na pandemia e que o seu uso deve se ampliar daqui para a frente, como um complemento ao atendimento presencial.

Segundo ele, a revogação pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) da Resolução 22.718/18, que disciplina a prática da telemedicina no País, no começo da pandemia, permitiu a aceleração do uso da ferramenta no País, ao viabilizar o atendimento de pacientes atingidos pelo isolamento social. “A telemedicina contribuiu muito para garantir tranquilidade e segurança na prestação de assistência médica durante a crise”, afirma. “É outra realidade que a gente está vivendo hoje.”

● A Amil é uma das empresas que tem se destacado no uso da telemedicina no Brasil. Como foi a experiência da empresa com a telemedicina durante o período da pandemia?

A gente já tinha algumas funções de telemedicina em andamento desde o ano passado. A pandemia, na verdade, acelerou essa mudança. O que a gente percebeu é que existia uma demanda por parte dos nossos usuários, que tinham as restrições impostas pelo isolamento social, mas precisavam dar continuidade a tratamentos de doenças crônicas ou de orientação médica sem que fosse necessário o atendimento presencial. Então, a telemedicina contribuiu muito para garantir tranquilidade e segurança na prestação da assistência médica, porque foi um complemento do atendimento presencial.

● Como foi a aceitação da telemedicina pelos pacientes nesse período?

Houve uma grande aceitação não só por parte dos pacientes, mas também dos médicos. Nós completamos recentemente meio milhão de acessos ao sistema e mesmo a população acima de 65 anos, que poderia ser entendida como um desafio, representa 16% dos usuários da telemedicina. Antes, no pré-pandemia, a gente realizava uma média de 15 atendimentos por dia. No começo da pandemia, passamos para 150 e depois de um mês para mil por dia. No fim de setembro, chegamos a 2.800 atendimentos por dia. É uma diferença exponencial. É outra realidade que a gente está vivendo hoje. Para a nossa capacidade instalada, isso nos permite manter um nível de atendimento, de espera, de triagem, com segurança. Aqui, estou falando tanto de consultas agendadas, que nos permitem trabalhar com uma margem ajustada, porque representam uma demanda fixa, como de consultas de urgência. Nós temos uma equipe que está preparada para atender esse grupo, mas temos condições de ajustar isso durante o dia, conforme a demanda.

● O sr. está se referindo a equipe própria, terceirizada ou de livre escolha do paciente?

No atendimento da urgência, a gente tem principalmente equipes de atenção primária, médicos de família que já tinham um modelo de contrato com a Amil. Com a pandemia, nós só expandimos a parceria, para que eles também atendessem de forma remota. As equipes de atendimento eletivo também já tinham modelos de contratação com a Amil e já atendiam os pacientes nas nossas unidades próprias e de rede contratada. O que a gente fez foi a expansão do modelo presencial, que já existia, para o modelo remoto.

● Como o sr. analisa essa explosão da demanda pela telemedicina?

A gente trata a telemedicina como mais um canal de comunicação entre médico e paciente. Ela estabeleceu um novo vínculo entre o profissional de saúde e o paciente. Do lado do profissional de saúde, ele tem uma plataforma segura para o exercício da medicina. O paciente, por sua vez, tem a sua demanda atendida. Então, a gente vê isso cada vez mais como uma estratégia viável e necessária, que entrega valor para a população e para o prestador de serviço. A telemedicina entra como mais uma ferramenta para contribuir para organização do sistema de saúde. Ela tem de ser vista como um conceito integrado ao sistema de saúde. Não pode ser entendida como uma solução única.

Do ponto de vista da conveniência, também há uma grande contribuição, porque os pacientes e os médicos não precisam se deslocar. Todo mundo ganha tempo. Às vezes, o paciente está numa cidade e quer ser atendido por um médico que está em outra. Isso faz muita diferença, não?

Sem sombra de dúvida, o principal ganho é a possibilidade de ampliar o acesso ao sistema de saúde. Realmente, a telemedicina proporcionou acesso a uma população que muitas vezes tinha limitação de tempo, de deslocamento, para buscar atendimento. Isso ajudou muito.

“A telemedicina deve manter toda a liturgia do ato médico”

● O sr. acha que a telemedicina veio para ficar, mesmo sendo só mais um canal do sistema de saúde?

Durante a pandemia, a gente teve a revogação da Resolução 22.718/18, que disciplina a prática da telemedicina no País. Desde o começo do ano, em função da pandemia, sua prática está autorizada legalmente. Neste período, a gente conseguiu amadurecer alguns conceitos. A telemedicina deve ser vista como uma extensão, uma ampliação do serviço tradicional, com consulta presencial. Não pode ser entendida como uma substituição, porque ela tem suas limitações. Mas a telemedicina empoderou o usuário, porque ele consegue ter acesso mais fácil ao sistema e consegue ver o valor da solução. Além de garantir mais acesso, você consegue engajamento, melhorar o autocuidado. Temos algumas situações que eram muito mais difíceis de controlar no pré-pandemia, como a de pacientes com diabetes e hipertensão, que graças à telemedicina e a esse acesso mais rápido tiveram um monitoramento médico mais tranquilo. O médico percebeu que a nossa ferramenta é segura e permite a ele, inclusive, ter contatos mais frequentes com o paciente, dentro dessa visão de medicina integrada.

● No Brasil, as entidades de classe e muitos profissionais de saúde sempre tiveram um preconceito muito grande com a telemedicina e procuravam evitar a sua expansão. Hoje, há uma aceitação maior do sistema?

A nossa experiência é que a gente tem um altíssimo nível de aceitação da ferramenta da telemedicina. O médico precisa e deseja é um ambiente seguro para exercer a profissão – e hoje a gente oferece isso para ele. Então, acredito que este período contribuiu para haver um melhor entendimento do que realmente a telemedicina é capaz de oferecer, quais as suas limitações, onde ela pode contribuir e onde não pode. Mais do que isso, contribuiu para o entendimento da telemedicina como uma ferramenta integrada ao arsenal que o médico já tinha para fazer a condução de um caso clínico.

● Considerando tudo isso, o sr. acredita que a telemedicina deve se ampliar e se consolidar aqui para a frente?

Exatamente. Aí é importante também – e a Amil tem procurado fazer isso – promover a sua regulamentação, para que a gente consiga garantir o acesso, mas também qualidade e segurança para os usuários.

● De uma forma ou de outra, só com a redução do tempo perdido nos deslocamentos a telemedicina aumenta a produtividade do sistema de maneira sensível.

Esse é um ponto com o qual nós nos preocupamos muito. O treinamento do médico é baseado em quatro pilares: legal, técnico, comportamental e tecnológico. O comportamental é muito importante. A telemedicina é um ato médico. Então, tenho de ter o comportamento adequado ao ato médico. A gente não pode correr o risco de o médico fazer um atendimento remoto no carro ou ser interrompido pelo seu filho ou por sua mulher durante uma consulta. Nós focamos muito no treinamento dos médicos para entender que esse modelo de atendimento deve manter toda a liturgia do ato médico. Você tem de estar num ambiente em que o paciente se sinta seguro e crie um elo de confiança com o médico. Este é um grande desafio. No consultório, o elo de confiança fica mais fácil, porque o médico está ali, olhando para você. Agora, o médico não pode prestar um atendimento e de repente o paciente ver que ele está atendendo o telefone, respondendo mensagens de WhatsApp ou tendo um comportamento que quebra a confiança do paciente.


FONTES

Ademir Corrêa Júnior (diretor de investimentos do Bradesco), Adriano Marcandali (diretor para a América Latina do Workplace), Adriano Pitoli (ex-diretor de análise setorial e regional da Tendências Consultoria e ex-chefe do núcleo da Secretaria de Indústria e Comércio do Ministério da Economia em São Paulo), Alice Ferraz (CEO da F*Hits), Ana Maria Diniz (fundadora do movimento Todos pela Educação e presidente do conselho do Instituto Península), Carlos Langoni (diretor do Centro de Economia Mundial da FGV), Carlos Melles (presidente do Sebrae), Creomar de Souza (CEO da Dharma Political Risk & Strategy), Enrique Dans (professor de Inovação na IE Escola de Negócios, em Madrid), Felipe Salto (diretor executivo do IFI), Daniel Susskind (professor da Universidade Oxford, Inglaterra) Fernando Gambôa (sócio da KPMG no Brasil), Fernando Pedro (diretor médico da Amil),  Gabriel Pinto (economista e consultor), Gustavo Franco (sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central), Ingrid Devisate (diretora executiva do IFB), Jeffrey Cole (pesquisador na Universidade do Sul da Califórnia e diretor do Centro para o Futuro Digital, EUA), João Carlos Basílio (presidente executivo da Abihpec), José Roberto Afonso (professor do Instituto de Direito Público e pesquisa na Universidade de LIsboa), Júlio Sérgio Gomes de Almeida (diretor-executivo do IEDI e ex-secretário de Política Econômica do antigo Ministério da Fazenda), Leonardo Tristão (presidente do Airbnb no Brasil), Mansueto Almeida (ex-secretário do Tesouro Nacional), Mônica Lee (diretora da Jones Lang LaSalle), Paulo Engler (diretor executivo da Abipla), Ricardo Dias (vice-presidente de marketing da Ambev) e Tony Volpon (ex-economista-chefe do banco UBS no Brasil e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central).