domingo, 1 de novembro de 2020

MARCA DO PAPA: DESCENTRALIZAÇÃO, REJUVENESCIMENTO E PLURALIDADE

 

Como papa Francisco nomeia seus cardeais e vai levando a Igreja rumo às periferias

 

Edison Veiga, especial para o Estadão


Com os 13 novos cardeais anunciados pelo papa Francisco no domingo passado – que serão empossados no consistório marcado para 28 de novembro –, consolida-se na cúpula da Igreja Católica uma tríade que se torna marca deste pontificado: descentralização, rejuvenescimento e pluralidade.

Dentre os purpurados que assumem, nove são eleitores em um eventual conclave – ou seja, têm menos de 80 anos. As vozes da periferia seguem bem representadas. Torna-se cardeal o bispo Cornelius Sim, o único de Brunei, país muçulmano onde a evangelização cristã é proibida. Também recebem o barrete cardinalício o arcebispo Antoine Kambanda, sobrevivente do genocídio de Ruanda — praticamente toda a família morreu no massacre de 1994 — e o arcebispo filipino José Advincula.

“Um cardeal viaja várias vezes em sua vida a Roma – pelo menos uma vez por ano. Ao nomear o bispo Cornelius Sim cardeal, administrador apostólico de uma diocese com apenas três padres em Brunei, uma monarquia muçulmana, o papa torna essa realidade ‘periférica’ da Igreja ainda mais presente no Vaticano”, afirma ao Estadão a vaticanista argentina Inés San Martín, diretora do escritório romano da Crux Catholic Media. Para ela, isso proporcionará ao Vaticano uma “experiência muito diferente” se comparada com a trazida pelos purpurados de um país onde católicos são maioria.


Papa Francisco em audiência no Vaticano Foto: EFE

Americanos

Altamente simbólicas foram as indicações de dois arcebispos de grandes dioceses do continente americano. Ex-presidente da conferência episcopal dos Estados Unidos, o arcebispo de Washington, Wilton Gregory, será o primeiro negro americano cardeal – em um momento em que o país vive onde de protestos raciais (mais informações nesta página). Olhando para um Chile também tomado por manifestações e vandalização de igrejas, Francisco tornará purpurado o espanhol Celestino Aós Braco, arcebispo de Santiago.

Para o vaticanista italiano Andrea Gagliarducci, o nome de Braco “foi uma escolha quase óbvia”, já que a Igreja chilena “passa por forte mudança após o escândalo de abusos” e “precisa de um cardeal, um guia”. No caso do norte-americano, Gagliarducci acredita que “não é o fato de ele pertencer ao Black Lives Matter que conta, mas sim o desejo do papa de “mudar o perfil dos cardeais americanos”. O vaticanista entende que o recado é que a Igreja busca, no episcopado dos Estados Unidos “não guerreiros culturais, mas construtores de pontes, mesmo em questões candentes como as de vida e gênero”.

Europeus

Este é o primeiro papado em que os europeus não compõem a maioria do colégio cardinalício. Em 1903, no primeiro conclave do século 20, 98,4% dos cardeais eram originários da Europa. No entanto, essa cifra chegou a 42,9% no consistório do ano passado e cairá para 42,2% a partir do dia 28, considerando os cardeais eleitores. Quando o argentino Jorge Mario Bergoglio se tornou papa Francisco, em 2013, a Europa detinha 60,9% do colégio.

“A geopolítica de Francisco é pautada pelas periferias. Vemos isso nas suas viagens, nas pautas que defende e nas nomeações, tanto de cardeais quanto de bispos”, comenta ao Estadão a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de História do Catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. “Foi a lugares que jamais tinham sido visitados por um papa ou onde os cristãos são minoria, como Mianmar, Bangladesh, Tailândia e Emirados Árabes. Escolhe cardeais de países que nunca sonharam em ter um.”

“O papa Francisco pensa de forma poliédrica. Ou seja, várias facetas para compor o cenário multilateral da Igreja e do colégio de cardeais. Todos precisam ouvir a todos para realizar a sinfonia”, afirma o teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Junior, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


Vista geral da Basílica de São Pedro durante consistório de cardeais Foto: Vatican Media

Tornou-se comum no pontificado atual a nomeação de cardeais já com mais de 80 anos. É o caso de quatro dos nomes anunciados no último domingo. Francisco costuma fazer isso como forma de reconhecimento. “Em muitos casos, a trajetória pastoral da pessoa, bem como o povo sofrido que ela representa, pesam muito mais do que o currículo acadêmico na hora da escolha”, diz Mirticeli.

Na lista, nenhum representante de Brasil e Amazônia

Havia uma expectativa de que o papa Francisco, atento às questões ambientais e na sequência do Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia realizado no ano passado, fizesse cardeal algum bispo amazônico. Da lista dos 13 anunciados pelo pontífice, contudo, não consta nenhum novo nome brasileiro ou da região.

Com nove cardeais, o País segue bem representado no colégio cardinalício. Quatro deles ainda são eleitores: o arcebispo de São Paulo, d. Odilo Pedro Scherer; o do Rio, d. Orani João Tempesta; o de Salvador, d. Sérgio da Rocha; e o atual prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica no Vaticano, d. João Braz de Aviz.

“Por que nenhum brasileiro?”, indaga-se o teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Junior, da PUC-SP, ao ver a lista dos novos indicados por Francisco. “Creio que algum bispo amazônico poderia ser nomeado em um próximo consistório…”

O papel de representante amazônico dentre os purpurados do Vaticano vem sendo cumprido por um amigo pessoal do papa Francisco, o cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo e presidente da recém-criada Conferência Eclesial da Amazônia. “Olhando para o atual colégio, o Brasil tem um número adequado de representantes”, analisa o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

 

A ELEIÇÃO DE TRUMP É UM RISCO PARA A DEMOCRACIA?

 

Disputa entre Trump e Biden testa fôlego da ascensão populista no mundo

Especialistas apostam que nova vitória do presidente significaria o fim de alianças que os EUA ainda mantêm com alguns países; de acordo com eles, republicano não vê diferença entre firmar parcerias com líderes democráticos ou autoritários

 

Beatriz Bulla / Correspondente, O Estado de S.Paulo

 

 

WASHINGTON - “Donald Trump é um risco para a democracia?” O título do artigo de Steven Levitsky no jornal The New York Times, em dezembro de 2016, levantava a preocupação sobre o futuro dos EUA no mandato do presidente eleito. Quatro anos depois, a eleição é um teste não só para a resiliência das instituições americanas, mas para a ordem democrática global.

 

Em seu mandato, Trump se aproximou de líderes autoritários, como Kim Jong-un, preferiu o isolacionismo ao multilateralismo, rompeu com aliados históricos, conduziu os EUA a um nível de tensão inédito com a China e virou inspiração de adeptos do populismo nacionalista, como Jair Bolsonaro.

“Trump não liga se o país é autoritário ou se é democrático. É uma política muito transacional. Ele não quer uma Europa forte, não gosta da arquitetura multilateral. Um ‘G-zero’ escalaria mais rápido em um segundo mandato de Trump do que em um governo Biden”, diz Ian Bremmer, fundador da consultoria de risco política Eurasia.

 

Estudantes de Haddonfield, localidade de 11 mil habitantes em New Jersey, durante último debate presidencial   Foto: Michelle Gustafson/The New York Times

O conceito de G-zero pressupõe um vácuo de poder no cenário mundial por ausência de um país que paute a agenda internacional e vem sendo apontado por Bremmer há quase uma década. Após a 2.ª Guerra, os EUA tomaram dianteira na reorganização mundial, com a criação da Organização das Nações Unidos (ONU) e do sistema de Bretton Woods. Em um mundo “G-zero”, os EUA passariam longe disso. Sob Trump, também.

“Trump enfraqueceu o que já vinha enfraquecendo e acelerou o fato de que há hoje poucos líderes no mundo que admiram o sistema político americano e desejam replicá-lo. Muito do ‘soft power’ dos EUA foi corroído”, afirma Bremmer. A instituição americana Freedom House aponta o papel do “retorno da rivalidade entre grandes potências” e da “nítida falta de liderança na governança democrática de defensores tradicionais como os EUA” na deterioração da democracia mundial.

Thomas Wright, diretor do centro de EUA e Europa do centro de estudos Brookings, sustenta em artigo que, se Trump ganhar, os próximos quatro anos serão mais disruptivos para a ordem global do que os últimos quatro. “Ao confirmar que os EUA rejeitaram seu papel de liderança tradicional, um segundo mandato de Trump causaria impacto duradouro na direita mundial em um momento vulnerável. As alianças dos EUA provavelmente desmoronariam, a economia global fecharia e a democracia e os direitos humanos entrariam em declínio rápido.”

Trump entrou em atrito com França e Alemanha e retirou o país de boa parte dos fóruns e tratados multilaterais dos quais os americanos foram protagonistas. Na lista estão o acordo nuclear com o Irã, o acordo climático de Paris, a paralisação do órgão de apelações da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o anúncio durante a pandemia do coronavírus de que os EUA sairão da Organização Mundial da Saúde (OMS).

PARA ENTENDER

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A cada dia fazemos 10 mil eleições simuladas, com dados das pesquisas mais recentes, para estimar o resultado mais provável em cada Estado e no colégio eleitoral

 

Seu desprezo pelas soluções multilaterais é explícito nos discursos e nas imagens do presidente em encontros entre potências, como a foto da reunião do G-7 no qual Trump encarava os demais líderes de braços cruzados e cara fechada. Ex-assessores que deixaram o governo, como o ex-conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, traçam a imagem de Trump como um presidente que não se interessa por geopolítica e toma decisões que influenciam os rumos do mundo motivado por ambições eleitorais.

Steven Levistky, autor do livro Como as democracias morrem, vê no fato de os americanos deixarem de ser modelo para o restante do mundo um vácuo que dá espaço a governos não democráticos. “Estamos mais próximos de uma vergonha mundial do que de um modelo mundial”, diz. “Trump basicamente parou de promover democratas para abertamente apoiar autocratas.”

Para ele, o fato de Trump ter se alinhado a países como Índia, Hungria e Rússia, em detrimento de relações com Alemanha e França, por exemplo, tem grande impacto sobre o liberalismo global. Reconstruir canais com aliados europeus e recolocar o país na mesa dos debates multilaterais – e em pactos como o Acordo de Paris – está entre as prioridades de um eventual governo de Joe Biden, que promete discutir temas como resposta à pandemia e mudanças climáticas de maneira conjunta.

“É preciso lembrar que os líderes mundiais não gostam de Trump. Alguns fingem que gostam. Outros não. A maioria ficará muito feliz se Trump perder”, diz Bremmer. Mas, mesmo antes de Trump, diz, os EUA já vinham reduzindo seu protagonismo no palco mundial.

Já a escalada de tensão com a China permanece em um eventual governo Biden. Mais de 70% dos americanos veem de maneira negativa as relações com o gigante asiático. Embora a percepção seja pior entre republicanos, os democratas também têm visão desfavorável sobre o país.

PARA ENTENDER

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Um dos conselheiros da campanha democrata para política externa afirma que a pressão sobre temas de tecnologia, comércio e direitos humanos continuará, mas Biden terá abordagem menos isolada no confronto com a China. Entre as promessas de política externa não cumpridas por Trump estão o muro com o México e a redução do déficit comercial com a China. Mas Trump deu resposta aos apelos de sua base eleitoral.

“Ele reduziu a imigração, buscou trazer as tropas militares de volta e pressionou aliados a gastar mais em defesa”, afirma o especialista. “Trump foi consistente no que propôs para sua política externa”, diz Bremmer. “Mas também causou muitos prejuízos.”

As relações exteriores desempenharam um papel importante e obscuro na presidência de Donald Trump antes mesmo do início do mandato. A intromissão da Rússia na eleição que resultou em sua vitória inesperada e o ânimo com que Trump dispensou as descobertas de seus próprios serviços de inteligência sobre o assunto criaram um contexto desagradável para tudo o que se seguiu.

 

Sua tentativa de obter favores políticos de Volodimir Zelenski, o presidente da Ucrânia, fez com que ele se tornasse o primeiro presidente a enfrentar um processo de impeachment por sua conduta em política externa. Só o apoio republicano no Senado o livrou de perder o cargo.

Essas coisas não passam despercebidas. A reputação dos EUA no exterior despencou durante a presidência de Trump. Em todo o mundo, a julgar por uma pesquisa com 13 países publicada em setembro pelo Pew Research Center, a proporção de pessoas com uma visão favorável aos EUA está, em muitos casos, no nível mais baixo desde que o Pew começou a fazer a pesquisa, há quase duas décadas. No Reino Unido, o índice de aprovação do país caiu de 61% em 2016 para 41%; no Japão, despencou de 72% para 41%.

 


Trump é mal visto por estrangeiros, diz pesquisa em 13 países  Foto: Alex Brandon/AP

A confiança de que Trump pode fazer a coisa certa nos assuntos mundiais é ainda menor, especialmente na Europa: sombrios 11% na França e 10% na Alemanha, em comparação com os 84% e 86%, respectivamente, de Barack Obama em 2016. Os personagens da política externa europeia não medem as palavras.

“Calamitosa, cataclísmica, catastrófica, patética”, disse François Heisbourg, da Foundation for Strategic Research, um think-tank francês, quando lhe pediram para descrever como a história julgará a política externa de Trump. Em casa, muitos especialistas republicanos têm opiniões semelhantes; dezenas estão apoiando seu adversário democrata, Joe Biden.

Algumas pessoas que observaram de perto a maneira como Trump foi dominado pela bajulação e pela ganância acham que dignificar sua política externa com algum tipo de análise convencional é conceder a ela o peso estratégico e ideológico que lhe falta. Sob esse ponto de vista, as grandes decisões de Trump foram impulsionadas pelo narcisismo e por um desejo de ganho pessoal: Trump Acima de Tudo, não América Acima de Tudo. Mas quem o apoia tem uma versão diferente.

Esses apoiadores são consequencialistas. Argumentam que os detratores dão muito peso às provocações e aos tuítes impróprios de Trump; um foco em suas ações e em seus resultados prováveis – alguns ainda não sentidos – contaria uma história diferente, que ficará mais clara e parecerá mais sábia com o passar do tempo, mas para a qual os críticos ainda estão cegos.